É uma polêmica datada de 2002, quando o autor Yan Martel recebeu
o cobiçado premio internacional Booker pelo livro Life of Pi, e
em seguida foi confrontado a responder por uma possibilidade de plágio. A entrega do Oscar viu renascer a controvérsia. Na ocasião, o autor
admitiu ter se inspirado em uma estória de Moacir Scilar, cujas semelhanças com
sua obra não podiam ser ignoradas, pelo menos em uma ideia chave, gancho para explorar
ricos desdobramentos narrativos. De fato, a ideia do personagem isolado com uma
besta no mesmo barco no oceano era muito boa para ser desperdiçada. Por que não
torná-la, portanto, pública? Não tenho nada contra isso. Segundo o Guardian, o canadense admitiu ter
gostado de uma premissa do livro Max e os Felinos, de Scilar, ao lê-la em uma
resenha, e tê-la usado para contar sua própria história. Disse também que não achava
ter feito nada de particularmente desonesto, e, por fim, deu com a língua nos dentes, dizendo que não
via motivos para ler o livro, porque acreditava que ele continha uma ótima
ideia estragada por um lesser author (escritor menor).
Apesar do suposto arrependimento do canadense, que incluiu um agradecimento a Scilar no prefacio das novas edições, penso que ele expôs suficientemente o caráter, dando uma ideia mais ou menos inteligível desse episódio, e destacando bem as vitimas e os vilões no quadro exposto ao público. Não nos enganemos pela falta de combate de Scilar. O gaúcho de fato renunciou
a qualquer pleito de direitos autorais, mas nisso vem apenas mostrar a classe
que faltou ao seu plagiador. No livre Life of Pi, em vez de emprestar a
ideia no que ela tinha de geral, ou fazer uma
releitura da premissa de Scilar, o canadense empresta somente a imagem do barco, do
menino e da besta,para contar uma estoria completamente diferente. Já não
importa se o menino é agora indiano, e a besta um tigre. Não se trata aqui de
uma ideia reutilizada, reinterpretada, mas de uma simples muleta a uma
imaginação preguiçosa. Como se não fosse o bastante, o canadense afirmou que só
leu uma resenha do livro de Scilar e que não via motivos para ler e estragar o
encanto de uma ideia boa estragada por um “autor menor”. Provavelmente, com isso
ele quer dizer que está corrigindo uma falha do correio internacional das
Ideias, que entregou cá no Brasil por erro uma Ideia que estava destinada ao
Canadá, mais especialmente, a sua brilhante e bem aventurada cabeça canadense. Ou talvez ele
queira dizer que as pobres Ideias são ingênuas e confusas virgens inexperientes
que acabam, por acidente, nas mãos abusivas de “autores menores”. Nada mais
justo do que restituí-las a um “autor maior”, portanto, e, não mais por acidente,
esse autor seria: ele.
Não exploramos a opção de que ele
estivesse simplesmente sendo traído pela vaidade, envergonhado por
ter sido surpreendido em dívida com um autor de terceiro mundo, e, por fim,
inventando uma desculpa para o flagrante. Isso seria psicologicamente
degradante: desmascararia o caráter covarde de um ingrato esnobe que, para parecer
mais original do que é, tenta desvalorizar e desmoralizar aqueles a quem, na
verdade, inveja. A covardia se acentua quando se pensa que se trata de um autor
superstar aproveitando sua recente fama para jogar lama gratuita em um autor
mais ou menos desconhecido pelo público e a crítica da língua Inglesa, cujo
único erro foi ser bom o suficiente para agradar e inspirar alguém sem muito
escrúpulo. E, enfim, quando se pensa na quantidade de vaidade presente em
alguém que não hesita em se candidatar a “autor maior”, mais o menosprezo profissional de quem tenta jogar lama em um companheiro de ofício, ficamos com a imagem
de um grande imaturo que sequer calcula o risco de se pronunciar a favor de si
mesmo na discussão infinita
da literatura. Parece-me que esses defeitos tornam o canadense bem pouco
interessante, e isto me põe predisposto contra qualquer Ideia que saia de sua
cabeça – mesmo as “carinhosamente” emprestadas.
O tempo irá dizer quem é maior e
quem é menor. Não é um autor egocêntrico, autoindulgente e sem humildade, que vai colocar ponto final na
discussão sem fim a respeito do que é boa e o que é má literatura. Seria,
todavia, menos suspeito se ele não estivesse tão bem cotado no seu próprio
ranking. Parece um juiz um tanto parcial. E seria, no mínimo, surpreendente se
descobrirmos que ele estava certo. Nesse caso, o maior teria copiado o menor. Alguma coisa não estaria errada
nessa matemática? Seria muito curioso se os grandes autores não tivessem
capacidade de usar suas próprias Ideias, e ainda mais se estivessem reduzidos à
condição de usar Ideias de autores piores!
O que essa estória nos ensina, e isto agora, é a suspeitar desses
fantásticos prêmios internacionais. Se fosse o contrário, e o “autor menor”
roubasse a ideia do “autor maior”, o escândalo seria enorme, e a própria
discussão sobre propriedade seria muito mais simples: ora, a Ideia é do
“maior”, ponto final. Não haveria espaço para cortejar ou raptar a Ideia, como
se ela fosse a esposa indefesa de um mau marido. Pobre do Scilar, se o seu
livro houvesse sido publicado depois por algum acidente de terceiro mundo.
Uma breve reflexão sobre os direitos autorais
Vimos que Yan Martel ganhou um dos maiores prêmios literários da
língua Inglesa usando uma ideia presente em outro livro, do brasileiro Moacir
Scilar, Max e os Felinos. Não
mencionei se ele roubou, emprestou, alugou ou reciclou a ideia. Não há nada tão
difícil de definir do que o endereço e a data de nascimento de uma ideia, e se
estiverem certos os filósofos mais tradicionais, ideias não pertencem à espécie
de coisas que se pode identificar por um registro psicológico documentado no
momento em que elas aparecem na mente de seu pai. O tempo exato e a localização
são supérfluos, porque Ideias tem um conteúdo, e, além disso, uma relevância.
Pertencem ao contexto da experiência de seu autor, pesam com maior ou menor importância no seu sistema global de crenças e, se tiradas do contexto, correm o
sério risco de virarem outra Ideia – e assim elas crescem, prosperam e se
transformam nas avenidas da comunicação e da história. É a natureza desse saque
de contexto que importa, portanto, quando queremos julgar o débito de um autor
que usou a Ideia de outro. Nesse comércio, contudo, tudo se passa sem cobiça e não
se paga juros. O que são os trabalhos acadêmicos, afinal, senão os esforços arqueológicos
para descobrir dívidas intelectuais entre tradições e autores?
As Ideias não são mercadoria, portanto.
E roubar uma ideia parece uma classificação um pouco severa demais; melhor
seria chamar o feito de apropriação. A vergonha apenas aparece quando o roubo é
tão transparente, que carrega somente a parte superficial da ideia, isto é,
justamente aquela parte dela que está presa na circunstância particular de seu
aparecimento, como um lance de criatividade que se deve inteiramente à energia
intelectual de uma pessoa ou grupo. Nesse caso é plausível começar a falar de
direitos autorais, porque se trata da parte da ideia elaborada com um fim
financeiro, isto é, o modo de apresentá-la ao público, ou de torna-la
agradável, sedutora. Tudo isso envolve um esforço menos intelectual que
publicitário, e seria injusto negar ao autor os frutos de seu talento
profissional e sua despesa de energia laboral. Ideias não têm idade nem data,
mas os modos como escolhemos apresentá-las exigem um gasto de tempo pessoal e,
portanto, são passiveis de serem convertidas em uma espécie de capital.