É porque o Fábio é o que sempre foi: uma espécie de coroinha que passou da idade, um ingênuo romântico utópico desmiolado, que ainda por cima mistura requintes de cavalheirismo antiquado aos ingredientes do seu coração tolinho...
Mas
não é mentira: ele até conseguiu o que queria... só a condição
que pode parecer demais cara, para pessoas como nós, pelo menos, eu
acho.
O
que todo mundo sabia da Ludmila é que a irmã dela causava em todas
as festas, e as histórias nunca paravam. Uma vez, na minha casa,
quando tocou a banda de samba-rock do pantanal, o que dizem os
linguarudos é que ela fez com dois na piscina. Não, eu não vi.
Essa conversa demorou um pouco para chegar em mim, já era uma
história meio sem tronco, um complexo selvagem de
vegetação indisciplinada. Mas eu não tinha motivos para
duvidar. Por amor ao rigor cético, aprendi a podar os galhos
das fofocas muito engenhosas, e especulo que pelo menos com um
ela fez alguma coisa em público, o que já é picante o suficiente
e, para o gosto de Fábio, algo que beira o escândalo.
Mas
se ele até preferia que a Ludmila tivesse outra irmã, isso não lhe
impedia de descer em queda livre em arroubos de paixão adolescente
por ela. Quem é que ia fazer ele mudar de ideia? A guria era
discreta, isso eu não nego. Parecia o oposto da irmã. E bonitinha.
Sempre com sua luva preta, no calor ou no inverno. Voltaremos à luva
preta. Eu também paguei um pau para ela, durante um tempo. Mas a
minha vaidade não é mais forte que a sinceridade: sim, confesso que
ela sempre arrastou uma asinha para o Fábio. Por que, não me
pergunte.
Essas
silenciosas profundidades supersticiosas até que não são tão
secretas: pedem ouvidos, precisam de interlocução. Para mim ele
sempre contou o que sentia. Um confidente malicioso, mas tinha a sua
confiança. Existe uma fórmula que os apaixonados ignoram, mas que
lhes seria extremamente útil recordar: é que ser indiferente e
grosseiro, nos assuntos do coração, é sempre mais fácil e
natural. Quando se pegam abatidos e esmagados pelo que sentem por
alguma menina, poderiam lembrar que o mais difícil eles já fizeram:
que é estar desse jeito. Voltar ao original, a ser como eu, é o
mais fácil. Custa-nos muito admitir, é verdade, mas a nossa
malandragem, mesmo a mais refinada, nunca dá tanto trabalho. Se eu
quisesse ser como Fábio, talvez não conseguisse. Mas ele precisaria
de bem pouco para ser como eu.
Ludmila
era, como eu disse, reservada, tímida e parecia envergonhada de
alguma coisa. Parecia carregar uma culpa, uma manchinha da
consciência. Como era uma sombra da irmã, que chegou um ano antes
na universidade e deixou um rastro difícil de superar, ninguém
jamais desconfiou que essa personalidade não estava ligada a ela.
Todos suspeitavam que ela tinha interesse em deixar sua diferença
com a irmã bem marcada. Por isso ensaiava ser o oposto. Imaginava-se
que ela queria subverter o espelho, e quando olhassem para ela,
veriam refletido o oposto da irmã.
Fábio,
paladino branco consumado, como jurasse que precisaria muito mais do
que uma irmã escandalosa para afastá-lo do objetivo, nunca
esmoreceu. Ofereceu guerra à resistência da menina, que julgava
existir por vergonha da família.
Estavam
no bosque depois de um dos almoços do RU, ela
sempre mexendo encabulada em sua luva preta, e sempre
furtiva, evitando muitos contatos, tímida, quando Fábio resolveu
lançar mão de um acesso de heroísmo gratuito e discursar sobre o
que julgava ser seu grande instinto de sacrifício, o tolo,
orgulhoso:
-
Sabe que a sua irmã nunca foi e nem nunca será obstáculo para o
meu sentimento né?
Quanto
foi sua surpresa quando a menina fez uma cara de nojo e desgosto,
retorquindo que ele era um machista presunçoso. No auge de sua
indignação, Ludmilla mostrou o verdadeiro motivo do seu recato.
Nada tinha que ver com sua irmã, que para ela era a mais saudável e
normal das pessoas vivendo sob a lua e as estrelas, mas era o que
havia por trás de sua luva. Um braço falso, desses de plástico,
explicava alguns de seus maneirisimos. E explicava sua personalidade.
A menina perdeu um braço quando nova, e desenvolveu uma
personalidade que era, sim, o oposto da irmã, mas não por qualquer
moralismo barato, que isso ela não tinha, mas por um secreto medo de
rejeição, que cultivou desde muito nova, apesar de ser tão linda.
Mas nisso eu e Fábio continuamos diferentes: perdi toda minha
vontade por ela quando soube disso, enquanto ele permaneceu fiel ao
seu sentimento de coroinha ingênuo, o que, de fato, não lhe invejo.
A
briga no bosque deu lugar a novas conversas, todos os dias, até que,
como já se sabe, os dois começassem a namorar. Fábio uma vez
disse, e desse vez, uma única, lhe admirei o senso de humor, apesar
de desconfiar que quem viu a frase com ironia fui eu, e ele estava
apenas a ser honesto:
"Talvez, se ela tivesse o braço, não seria mesma Ludmila..."
"Talvez, se ela tivesse o braço, não seria mesma Ludmila..."