Os documentários são desafios. Chega a admirar a
coragem do diretor que dispensa o conforto fácil da ficção e, destemido, alista para seu filme habitantes enfadonhos da realidade. A vida real carrega uma complexidade
infecunda, uma ausência de claridade na divisao entre vilões e heróis. Essa falta não permite
que dela se extraiam facilmente enredos e histórias. Em A
Rainha de Versalhes, entretanto, os personagens fictícios não poderiam competir lealmente com as qualidades típicas e estereotípicas do elenco de
criaturas reais. O documentário explora a frágil linha de demarcacão entre a paródia e a seriedade através do retrato de uma família bilionária que incorpora uma caricatura do sonho
americano, símbolo da decadência dos valores na sociedade do fast food. A crise econômica que a
colhe desprevenida aparece como uma peripécia digna da fantasia, com uma força
moralizante e ao mesmo tempo trágica. O personagem central é o da mulher e
esposa. Uma ex-miss de algum estado, que
se envolveu com o magnata do ramo hoteleiro por efeito gravitacional do clichê,
essa força da natureza que regra a vida de grande parte da população. Hoje com
quarenta e sete anos, adota uma aparência de objeto industrial, um produto
manufaturado à base de plástico. Lembra uma bruxa disfarçada por elixires e
magia: uma pequena ruga, um traço incongruente, uma mão mais grossa, é tudo que
o público precisa para desmascarar o monstro por trás dos truques. O problema
das mágicas é que, mesmo quando não podemos lhe denunciar a trapaça, sobra no
ar o cheiro de falsidade. Caso não fosse assim, os mágicos seriam mais
poderosos que políticos, os acadêmicos narrariam a história, e os artistas
criariam por suas mãos a experiência, tomando o lugar de deus. Nossa Rainha de
Versalhes americana é, em aparência, uma réplica mal feita de um padrão de
mulher vendido pela cultura de massa, um simulacro que, por força de honestidade,
deveria vir assinado pelo cirurgião plástico competente. Sua condição artificial
reflete a situação forçada da família como um todo, que luta bravamente para
pagar sua dívida de existir tentando enganar o tempo com o dinheiro. Curiosamente,
o filme mostra um efeito inusitado, embora conhecido, do dinheiro: quem mais o
tem, mais dele depende. O efeito viciante da moeda fica finalmente redundante quando
a crise chega, como um traficante de drogas cortando o suprimento de amostras
grátis. Mas o verdadeiro valor do filme
está no modo como envolve o expectador com o lado cômico, traindo um sarcasmo inevitável
ao ver o jeito implacavelmente cego com que os membros da família descrevem às
câmeras a sua lista de sapatos, bicicletas para os filhos, e o tamanho dos
quartos na casa em construção. Essa, é uma cópia de mau gosto do palácio de
Versalhes, no meio de Miami, que por si só já vale uma multidão de risos. E
ainda há os quadros, onde o casal posa em tronos, vestidos com capas de veludo,
um tributo completo ao brega. Os entrevistados não percebem estarem sendo
sacrificados pelas câmeras ao altar do sarcasmo, e a sutileza da música
escolhida garante que aqui não é uma manipulação do diretor: só irá rir quem
realmente ver o lado absurdo da situação. Mas as risadas irão fluir como uma evasão
torrencial de honestidade, e poderá, sem embargo, envergonhar os menos autoindulgentes,
que não acharão pretexto para sentir aquela superioridade falsa de costumes que
alguns brasileiros sentem pelos americanos.
Trailler: http://www.youtube.com/watch?v=txdz5xuSW_c
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