O orientador geral da turma com que Tércio
viera se destacava na área com suas incontáveis publicações, inumeráveis
participações em congressos, mais a sua experiência já meio maliciosa da
dinâmica das interações nestas festas. Continha aquela leviandade que distingue
tão bem o professor universitário moderno daqueles carrascos bem alimentados
dos templos medievais, e dos mal pagos pedagogos das escolas públicas.
Na segunda noite se encontraram
novamente todos os seus pupilos em uma democrática mesa de bar onde todos
tinham o mesmo direito à opinião, mas com pesos diferentes, naturalmente, que
onde fala o galo não pode provocar o mesmo efeito a palavra do pintinho. Assim
é o mundo: meio injusto, e sem remorso. Há pouco crédito em risco na objeção do
excluído, o pobre aluno que ainda não conquistou a proteção da instituição
acadêmica. Por outro lado havia muita coisa em jogo cada vez que se pronunciava
o orientador: era preciso lhe captar o sentido, entendê-lo, fazer-se íntimo,
rir com ele e mesmo daquilo que não tinha graça.
Na noite de quarta feira o assunto
versava sobre os peixes e algas vistos durante o dia, no mergulho de turismo
feito no passeio de barco. Tércio apenas por acaso estava com seus óculos de
natação na mochila, e ainda expunha sua surpresa com a fartura de beleza
pulverizada em matizes infinitos de cores e movimentos: a dinâmica da submersão
aquática, cada gesto cadenciado em um ritmo de sonho, de um lado para o outro,
vagarosos como a sutileza mitológica de passos de valsa no aquário da noite
estrelada. Pareciam imitar a flexibilidade de um rebolado extraterreno; como
bundas oscilando em um planeta com menor força gravitacional. Cada peixinho um
membro involuntário da coreografia. O entusiasmo dos encantamentos ainda
povoava o seu espírito, e como uma criança ele despejava suas impressões na
mesa, sob a fiscalização complacente do professor:
– Nossa, nunca vi tanta enchova
junto, e sem medo nenhum de mim, só faltou me deixarem passar a mão nelas
como se faz com um cachorro domesticado...
– Enchova não, Barracudas, Sphyraena
barracuda, volveu o mestrando – que conhecemos também por Diego – ligado à mesa
pela ponta. Disse isso relanceando os olhos para o professor.
– Tá, obrigado – continuou sem
temperar o fôlego – aquele coral lindo, e aquelas árvores lá embaixo, dançando
em esbeltos pares ao embalo das correntes marítimas... – foi interrompido neste
ponto, não sem enraizar na mesa uma impressão de estranheza que refletia o
efeito de indigestão gerado pelo conflito de regiões discursivas. Os
cientistas, acostumados ao freio do discurso acadêmico, não viam nessas
expressões de entusiasmo líricas senão a carreira desvairada de um palavreado
vácuo, uma promiscuidade confusa para escolher as palavras.
– Árvore não, uma alga, uma
Cianophyta, por favor, isso é uma mesa de fitólogos, foi como lhe interrompeu a
prolixidade Diego, e olhou em volta esperando a aprovação dos “fitólogos”, com
um sorriso maquiado no rosto de puxa saco; depois olhou para o professor,
disparando súplicas subentendidas ao venerando mestre, mas não foi
correspondido nem por uns nem pelo outro.
Tércio parou, ponderou, pensou em
voltar à sua viagem pela memória das árvores marinhas, mas percebeu que não
tinha mais caminho livre; o mestrando havia jogado caules, galhos e animais,
cada qual com o seu nome em latim, obstruindo o meio da pista em que corria a
sua ingênua eloquência. O seu silêncio durou muitos segundos de reflexão, mas
queria desaparecer, em um tom novo, darwinianamente adaptado. Pensou consigo:
“Realidade é o nome pomposo que
vocês dão para a dimensão artificial do seu laboratório. Todo esse
alfabeto de definições enciclopédicas não passa de um exercício de musculação
intelectual: quanto mais catalogados bichos e vegetais, mais fácil aguentar o
peso do discurso nos seus braços e adquirir a autoridade para falar e falar,
palestrar e palrar, pesando a verdade em uma balança intuitiva fabricada. Mas
também isso só vale nos limites do seu encerramento acadêmico... Que, de onde
eu venho: helicóptero é avião de rosca e lagartixa é jacarezinho de parede. O
que vocês chamam de errado, para mim, é a poesia ordinária da vida real, para a
qual lhes falta talento” – mas nada disso falou. Encerrou como um tumor no seu
âmago. Quem quer brigar precisa de pretexto. E se a caça de pretextos está
fraca: espera-se até a próxima estação!
Olhou para o professor que continuava com
um sorriso complacente, um traço que não lhe sabotava a reconhecida supremacia,
nem ofendia a ninguém. Levantou o copo em uma mensagem de abandono formulado em
brinde, e encabeçou de volta para a sua turma, onde o recolheram com pressa e o
receberam com as saudades de quem já não o via há muito tempo. “Afinal,
uma teoria da roda tem que ser melhor que a teoria do
quadrado para pôr um carro em movimento; e comer de garfo sempre é
mais fácil do que comer de pauzinhos, não importa o quão poéticos sejam os
orientais” – pensou ainda Tércio, retratando-se de si para si mesmo pela
covardia cancerígena.