Já não faz pouco tempo que cheguei e o
tema de minhas impressões não mudou junto com o clima. Pois ele é o próprio
clima, que não muda.
A
cadeira que sobrava no meu quarto eu pus para fora, e embora prometendo-lhe resgate breve, debitei mais um valor junto com a conta abismal dos
juramentos não cumpridos, cedendo à regra da procrastinação. Lá fora ela toma a
água da chuva interminável. Muitas vezes pensei que aquilo ia tomar cheiro de
mofo e outras, respondi a mim mesmo dizendo que ia tirá-la de lá logo. Mas nunca fui. Hoje
percebi que quanto mais eu prorrogo, mais vai a cadeira se ambientando ao
dilúvio sorrateiro que se conspira no céu de Florianópolis. Fui assistindo ela tornar-se um artigo orgânico, as suas pernas
se desenvolvendo como raízes pantanosas, como o fóssil de um sambaqui imemorial
dando à paisagem a aparência de um cemitério de mobílias naufragadas. Enfim,
desisti de tirá-la de lá. Já é o novo lar de centenas de fungos que prosperam
na umidade. Como um navio que virou coral no fundo do mar. Foi absorvida pela
chuva interminável, que a nada poupa. Meu medo é sair na rua e ter meus pés
dilatados em ventosas de polvo.
Mas
é bom estar de volta à minha cidade, como um marinheiro com novas estórias.
Preparado também para ouvi-la com novas orelhas. As cidades têm personalidades,
disse alguém que provavelmente entrou em diálogo com elas. Ou teve uma
discussão, um desacordo; tanto faz. Quanto mais personalidade, mais brigona. Eu
também o diria, mas hesito em cometer mais um desgaste em um texto que já vai se cansando de tanto efeito. Apesar disso, confesso que o
falei, embora transferindo a responsabilidade para a boca de um alguém.
A
vantagem dos simulacros sobre as definições científicas é que aqueles têm peso,
tom, e até cheiro, enquanto estas são insípidas e neutras como a vida privada
de um banqueiro. Se os primeiros são instrutivos ou não é matéria de
controversa. Os cientistas vão sempre caluniá-los, acusá-los de enganadores. Eu
gosto mesmo é da linguagem gorda, criativa, que confunde, mas romanceia, e não
essa formalidade amarga de leis e princípios, que define, mas desilude. Por
isso repito: as cidades têm personalidades. Acredito que algo parecido já foi
dito em muitos lugares e por muitas pessoas; e não é à toa, se todas elas
apenas dependessem de ter dialogado com uma cidade para elaborar o enunciado.
Há vozes que nunca se calam nas esquinas e endereços. Ninguém fica sem assunto.
Basta, pois, ter ouvidos para suas sugestões. Há cidades convidativas e hostis,
senis e joviais, doentes e saudáveis, determinando as perspectivas que nela
podem nascer, os conflitos e armistícios que nela se podem assinar, as
convulsões artísticas provocadas pelas suas dores estomacais, seus espasmos
culturais. Há uma diversidade rica de possibilidades discursivas e de leis e
ideias presas nas malhas da polis.
E
a sensibilidade fica mais aberta, porosa, quando as habitamos na qualidade de
hóspedes. Quando podemos medir o modo como ela trata as visitas. Porém, é nesse
estado que estamos mais sujeitos a cometer más interpretações, esperando um
conforto pacífico e uma recepção pouco agitada, incapaz de sacudir o espírito.
O turismo geralmente tem esse efeito: comprar a hospitalidade de lugares
estranhos, anular as suas vozes e esterilizar aquela mesma estranheza. Há
pessoas que são eternamente turistas, pois vivem pagando a hospitalidade
alheia. E vencer completamente esse estado é muito difícil, pois é vencer um
inimigo poderoso: a inclinação a preservar as fronteiras de nossa zona de
conforto, nossa economia íntima, onde administramos nossas dívidas e cobranças.
É preciso ser amplo e abrangente na administração dos próprios preconceitos, para
curtir os lugares estranhos em vez de apenas estranhá-los.
Nas
colheitas de outros mundos, não haverá senão estéril refeição de vivências se o
viajante não souber ver toda a riqueza humana encerrada dentro das
possibilidades domésticas de sua própria experiência. A areia do deserto, o
gelo da montanha e os animais silvestres serão apenas redundâncias. Não sou do
partido contrário ao de Marco Polo e nem advogo contra a frase de Fernando
Pessoa (“viajar é preciso...”), que mesmo depois de desgastada em clichê não
perdeu a pimenta e nem deixou de estimular faíscas. Só lembro que o cego do
espírito não pode tirar vantagem da velocidade de um avião para compensar a
lerdeza tardia dos olhos. Nenhuma palavra será tirada de outras cidades se a
sua própria, e quiçá sua casa, não for uma estufa igualmente poderosa para
fermentar o álcool embriagante da vida. Não foi a pressa insensível de certos
europeus míopes que enterrou a cultura dos índios? Queriam caminhos mais
econômicos, os brutos de vanguarda, e inventaram o trânsito, foram precursores apenas
da marginal Pinheiros. Posso não dar o exemplo da minha própria doutrina, e
disso me recrimino. Mas se alguém tem consigo a cobiça das horas leves e calmas
dilatadas, não ligará para a diferença mesquinha de alguns séculos, nem invejará
a rapidez artificial da indústria de velocidades. E há imponderáveis eternidades
adormecidas no tesouro lerdo das horas artesanais.
Voltei
cheio de novos cenários, mas é com o conteúdo artesanal da minha própria
sensibilidade com que tenho que me preocupar.
Durante essa viagem passei por diversas cidades, mas não me sinto tão
modificado a ponto de ter aprendido algo a mais, ou escalado novas etapas do
monte das ideias. Há muito turismo invencível em mim, que me impede de navegar
abertamente pelas correntes e fluxos de perspectivas ofertados pelas cidades. E
só não menciono os museus e as cabines enferrujadas do passado, motorizadas a
dinheiro, aceleradas por pontos de vista estapafúrdios, e explodidas por
combustíveis de ganância. A experiência que se nutre dos bares e da rua mantém
a identidade romântica in corrompida, se alimenta da noite e do dia durante os
momentos em que uma trama típica dos contornos citadinos pode acontecer ou
repetir-se, reacendendo o espírito do lugar
na encenação dos seus personagens.
Nenhum comentário:
Postar um comentário