... seguiu
naquela noite para casa sozinho, carente até mesmo da companhia da lua, preço
do pedágio de nuvens inflacionando a moeda lunar. Mastigava despeitos e
consumia alergias durante o trabalhoso aclive. Integrava uma nova cadeia de
preconceitos à sua identidade pessoal, novas repulsas e orgulhos. Mas se
tornando assim um pouco mais vacinado, mau e malicioso, queria sobretudo punir
o mundo pela sua injustiça. Desagravava uma egoísta sede de justiça ao invocar o cinismo. Sequestrava a razão ao alvejá-la de desconfianças maliciosas, prometendo que ela não teria defesa contra seus projéteis de ceticismo e esclarecimento armargurado. Quando foi a última vez que teve motivos para confiar em alguém?
Nem se lembrava. E assim seu espírito colhia a
cultura da experiência, quando a atenção da escalada de rotina foi roubada pelo
vulto branco que vibrou num assomo de pânico em cima do telhado vizinho à sua
casa. Era o Romeu gatuno, sobressaltado pelo aparecimento do menino.
Os olhos
do bicho engataram com os do homem, numa troca fluvial de mensagens indizíveis,
um mergulhando na alma do outro. Em um único impulso o gato voltou a si e
disparou com uma leveza que encrespava cachos de seda de inveja, calçando solas
de algodão e queimando o carvão sutil das calorias etéreas. Era como um fluído
em movimento. Aquela noite era dele mais que de qualquer homem e, em
Florianópolis, “hoje” – pensou Laio – havia pelo menos a presença de um genuíno boêmio, desafiando a simbologia
estrangeira, resgatando o valor da ideia por trás do distante estrangeirismo e
a aplicando a um caso que não pertence aos célebres bares de Paris: o caso do delinquente
animal brasileiro vandalizando as convenções do dia em sua carreira noturna. O
namorador fluía na escuridão como um líquido alcoólico, projetado para injetar
paixões embriagadas nas gatas felizes.
Mais
alguns passos em direção a casa e divisou outra aparição avultando veloz
junto aos caules que preenchiam o caminho entre a casa do vizinho e a sua.
Dirigia-se na mesma direção que ele, para cima, mas numa velocidade muito mais
acelerada. O rapaz continuou batalhando a subida lenta e aferrou-se enfim ao
portão, atravessando a última barreira entre ele e consolo do descanso, quando
encontrou velando ao lado de fora, na pequena área que preludiava a porta,
a gata, como uma esfinge absorta em regiões da imaginação. A gata gravitava
nas bolhas das representações. Fora Montaigne quem, observando um cavalo de
batalhas tremendo durante o sono como se estivesse em ação, concluíra que o
animal sonhava e, portanto, reservava uma vida interior onde tiros de canhão
não precisam de pólvora e o fio das lanças não precisam de amolador, onde, em uma
palavra, os detalhes materiais são descontados face à imaculada forma das imagens e afigurações. Esse
submundo simbólico misterioso visitado durante o sono é a prova de que os
animais não humanos também sofrem o castigo da gramática. E, inclusive, é a prova
de que inferem, uma vez que inferir não é mais que explorar as possibilidades e
alternativas de combinação autorizadas pela interdependência entre as formas, cujas combinações sólidas e
infalíveis nos tornam cativos de mundos semânticos, mitologias analíticas. Mas
isso é, sobretudo, a prova de que os desejos e vontades das bestas, além da
carga instintiva vulgar, também invocam o crédito para uma ambição maior, o
financiamento de uma clareza angelical, algo digno da transcendência das
preces: eles também querem a Verdade. Se isso parece metafísica vulgar aplicada
aos bichos, é porque não pode ser diferente. Seus desejos são mais que meros
desejos: são paixões como as nossas, oscilando entre o barato e o profundo. Era
essa elevação espiritual que se filtrava na expressão de transe da gata na
soleira da porta.
Laio
experimentou um segundo e meio de ressentimento. Apontou para a gata com olhos
de gancho. Ele sabia agora, sem dúvida, quem era o vulto de cores desbotadas e
dissolvidas nas cores do fundo que corria pelas árvores em direção à República.
Estava demais desconfiado, infeliz, envenenado, para que se deixasse enganar
pelo silêncio dissimulado de uma gata eufórica. A densa amargura vertida
recentemente sobre si lhe acoplou aos órgãos uma nova habilidade intuitiva, um
olho de lince para os segredos da felicidade ilícita. Era a habilidade dos
ressentidos; que é, pelo menos, um instrumento de faro realmente útil, uma vez
que dificilmente erra. E não errava: era mesmo a gata correndo como cinderela
antes da carruagem virar abóbora. Foi veloz o bastante para evitar que o menino
chegasse primeiro. Mas o que a acusou sem apelo, o seu sapatinho de cristal
esquecido, foi a vagueza pintada na expressão, a profundidade de abismos
secretos e paixões virulentas vivificadas no fundo do seu olho reverente.
Comparando esses suspiros da sua alma jovem com a imagem do boêmio branco
elegante e flexível nas telhas do vizinho, era inevitável induzir que ela
estivesse com ele. O resto das pistas eram somente confirmações adjacentes.
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