O apartamento que me hospeda
no Rio de Janeiro pertence à família de vizinhos da Rua Sá Ferreira. Parece que
o carteiro fica profissionalmente satisfeito situando o local em Copacabana. O
metrô mais próximo, entretanto, e bem próximo, para dizer de passagem, é o último
ponto dessa linha, convencionalmente entendido como o ponto de Ipanema, o
General Osório. A controvérsia dura,
seja como for. Certamente é um lugar fronteiriço, e os dois hemisférios concorrentes
estão equilibrados: não há, de fato, motivo coerente para comprar a guerra.
Fico feliz de estar em um como no outro. Se estiver em Ipanema é a memória da
Bossa Nova que roubo em minha experiência grata, se estiver na Princesinha do
Mar, ainda não saí do cenário de tanto tumulto humano singular, de tanto vulto
de expressão carioca. Aliás, ali é o berço da Bossa, segundo Ruy Castro. E as
praias, ambas, são lindas. Na verdade, desdenham sorridentemente do juízo do
olhar, como se desprezassem os ângulos, as linhas de perspectiva, que parcelam a
completude inefável de sua beleza. São imponentes, sob a custódia de seus pedregulhos
robustos.
Que não se pode negar a divergência de
espírito entre essas duas regiões, contudo, é um fato. Há diferentes espíritos camuflados nos
lugares? Não será uma emboscada da nossa própria visão, que empresta a eles associações,
que às suas partículas de situação junta as sutilezas dos desejos, sonhos e assombrações?
Não, há sim. Já não hesito em dar essa resposta. Há diferentes espíritos inculcados
nos sítios. São bagagens de experiências disponíveis que como que pairam em uma
performance de contágio, e mudam o comportamento de quem pisa nessas margens. Quando
saio do apartamento e enfio à direita, é uma cadeia de gestos coletivos que
predomina. Quando enfio à esquerda, é outro. E não preciso da credibilidade de
uma metodologia acadêmica, ou da enganação retórica de um estilo científico,
para que despeje essa interpretação como fato. Ninguém o nega, mesmo que não o
explique. São tão poucos metros de distância, algumas ruas apenas, mas Copacabana
e Ipanema representam mais que distintas localidades geográficas. São também
diferentes conceitos.
Avultando como um inimigo se
projetando de um esconderijo, um terceiro espírito se manifesta às costas de
ambos os bairros. Da minha posição na sala não há outra vista. O
apartamento fica no fundo dos prédios, e as janelas se abrem para a favela de
Pavão-pavãozinho. Há quem alardeie inveja da vista espetacular oportunizada à
gente do morro, mas suspeito desse disfarce barato da condescendência dos
ricos, essa cilada dos valores, de quem joga biscoitinhos ao cachorro
domesticado ou bate palmas exageradas ao perdedor. Dizer que o favelado da zona
sul é privilegiado é como o tapinha nas costas egoísta que o vencedor
prodigaliza, em sua ofensiva prodigalidade. Seja como for, lá de cima deve ser
com orgulho intransferível que os moradores tomam posse da paisagem,
reivindicando-a como sua. Imagina-se que Copacabana e Ipanema tornam-se suas
concubinas especiais, posando com posições eróticas às lentes sofridas do povo,
que com isso se vingam suavemente dos elevadores de serviço que frequentam cá
embaixo - com a satisfação do o jardineiro que come a mulher do patrão. Eu confesso que nesse comércio há retribuição. As casinhas
enfileiradas e encavaladas devolvem outra beleza, que é só delas. São mil
janelas encaixadas em um conjunto de torreões, formando um imenso castelo
medieval de lajes, enfeitado com as cores elencadas nos varais de roupas que
desfilam como oferendas ao sol da tarde. Ah, verão infinito. Isso também
determina o espírito, muda o humor. O que mais me impressiona na vista é,
contudo, a singular emanação de uma euforia que reúne o efeito de muitas agitações, uma algaravia que nunca passa, seja de manhã, de tarde ou de noite. Há tantas vozes e
tumultos como cores. Os gritos lembram antigos puxadores de escola de samba alugando as cordas vocais ao serviço de feirantes, durante o resto do ano
ocioso. E sobe e desce a escadaria uma heterogeneidade de carne e espírito
humano, uma fauna que seduz os olhos, porque uma coisa que nunca deixa de
entreter o homem é o próprio homem, em todas as suas expressões.
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