O humilde instalado em seu leito
mortuário provavelmente não desconfiava de seu papel no desenrolar dessa
história. Como poderia? Mestre Ismael Silva. Por pouco então a natureza não
ceifara esse tesouro de uma cultura em gestação. Nossa sorte consiste em que,
vez ou outra, coincidem os interesses dessas duas dimensões, e a doença desiste
sem prejuízo da ideia que ela apagaria dos registros. Viveu muito, graças a
deus. Gravou até vídeo. Hoje em dia posso ver vídeos no youtube com
o mestre em pleno embalo de locomotiva, fôlego cheio de energia, mostrando com
os braços a origem simbólica de suas melodias. É possível desenterrar de seus
gestos, o sotaque do seu corpo, a raiz dos tons que o moço ventilara ao mundo.
E que conjunção mágica de acentos na sua assinatura!
Lembro-me de escutar “Se você
jurar...” a primeira vez em uma festa de pandeiro e tamborim da Lagoa
da Conceição, e no furdunço de vozes e doces euforias, distinguir muito mal a
letra. A força da melodia, portanto, me tinha indefeso. A voz e a língua, o
português miscigenado do país com nome de árvore, somava-se ao acento da
melodia para desfalecer minha alma naquele misto de alegria e tristeza
indefinível dissolvido numa solução harmônica que caracteriza uma das
mais fortes contribuições do samba para o estilo. E Ismael o tinha como
ninguém. Vinícius de Morais dissera que “a grande força do samba [de Ismael] é
a melodia”. De fato, o é. Difícil imaginar maiores evoluções das escalas
enfáticas em uma música tão suave e simples. É como se um carro freasse e
fizesse curvas de surpresa. Por isso que o seu samba é seguido pelo próprio
estômago, que não menos que o pé calcula tonturas e enjoos no interior da alma.
Mas paramos de falar da substância do samba, que é inefável, “nem se atreva
a me dizer”.
Diz a anedota que o moço doente
de 1924 foi interrompido em sua cama de hospital pela notícia de que um tal
Alcebíades Barcelos o queria ver. Aquele que viria a ser posteriormente autor
de “Escola de Malandro” – junto com Noel – provavelmente seguiu algum escrúpulo
de deixar entrar alguém na sua paz. Visitas de hospital, o malandro sabe, só
compensa a aporrinhação se for para cobrar dívida. Mas se a morte o esperava
tão de perto, que mal havia em dar uma última chance aos seus credores? Ismael
o deixou falar, e recebeu a notícia de que Francisco Alves queria comprar a sua
música “Não me faz carinhos...” por cem mil réis. Não faço ideia de
como converter esse número para um valor atual. Mas certamente era dinheiro
para motivar um doente malandro, um incentivo moral que dava à cultura uma
oportunidade nova contra as garras da natureza severa. Porque se diz que depois
disso o mestre regenerou, como jurou em sua música (desde que ela jurasse lhe
ter amor). Virou a página do hospital para a rua, vendeu sem ciúmes a cobiçada
melodia e convalesceu com honras.
A anedota continua, contando que
Ismael, bom novamente, na sua famosa escola de samba do Estácio – (o mestre se
nomeia ironicamente o inventor das escolas de samba) – foi surpreendido com uma
turma de pagode por um carro suspeito espreitando a esquina da música como se
procurasse por alguém. Polícia? Até quem não devia nada ficou tenso, paralisado
como um lagarto esperando a águia passar. Estacionado, o carro deu saída ao
próprio Francisco Alves. Este foi cercado pela turma atônita e sem cerimônia de
celebridade agarrou o violão, dando ao niteroiense e o seu bando uma de suas
noites mais inesquecíveis, de samba vivo, pujante, anunciador, que foi até a
emergência da alvorada. Ao fim, aproveitando o encantamento, o visitante
ofereceu a Ismael seu contrato. A parceria todos nós conhecemos. Silva, fiel,
teve a energia de não esquecer Newton Bastos na assinatura do novo
projeto. E atrás dessa alvorada inesquecível, outras tantas se seguiram.
Nossos ouvidos gemem de saúde graças a esse episódio de convalescência.
Para colocar um pouco de água na sua conversa ,há pesquisas cientificas como ''teses acadêmicas ''..em que os pesquisadores juram que o samba nasceu em São Paulo no vale do tietê, precisamente em em SALTO de PIRAPORA, já li sobre o assunto ,e não sou ùnico ..e também já ví num show do Martinho da vila, ele mesmo dar esse depoimento dizia ele.'' nós os sambistas não temos certeza de uma identidade do samba quanto a sua regionalidade'' e foi enfático quanto ao local de oriegem ser duvidoso....para mim isso é tudo... .. sem o samba não posso ficar...que venha de qualquer lugar...
ResponderExcluirtony-dartes
Bem interessante tony. Quero ler também sobre isso, vou pesquisar. Gosto das estórias, e um pouco de incerteza é sempre bom... Abraço.
ResponderExcluir