‘Eu componho samba. Pagode é festa na casa de pobre’ – disse Bezerra da
Silva. Sendo honesto, eis aí uma daquelas distinções desafiadoras, meio
frouxas, meio fixas. Para diminuir o caráter especulativo da discussão
não irei recorrer à etimologia. Quem quiser ler se contente. Alguém mais reservado pode diminuir as chances de errar
definindo a diferença entre pagode e samba pelos instrumentos. Um explora com
mais intensidade o trabalho de grupo do violão, da voz do cavaquinho, da
flauta, piano, enquanto seu parente pobre recolhe as sobras musicais
abandonadas com a ajuda da percussão quase improvisada e o cavaquinho só.
Provavelmente essa caracterização herda, junto com a vantagem de ser simples, a
desvantagem de ser incompleta. Por que o acréscimo de um ou outro instrumento deveria
ser tão decisivo na composição da linha de tons que caracteriza o ritmo, o seu
sentimento fundamental, sua raiz melódica? Boa pergunta. Quem usa essa distinção
seriamente, no entanto, quer dizer algo mais: quer dar uma ideia do abismo que
separa o amadurecimento do samba, paralelo ao do jazz e de outras influências
estruturalmente elegantes, do histórico carente do pagode, feito apenas de
paixões cruas em estado de ebulição popular, muitas vezes baratas. A meu ver
essa divisão tem um pouco de cruelmente aleatório: esses dois elementos não precisam
estar separados, subsistiram, na verdade, e contribuíram por muito tempo para
um mesmo destino artístico. Mesmo o samba e o choro mais finos carregam
elementos populares irrevogáveis, a carga barata de sensações faveladas indispensáveis
a sua nutrição, e os preservam misturados em seu interior como se permitissem
assim integrá-los à sua substância, perdoando um pouco complacentemente a sua
existência. Há momentos de descanso onde aparecem marcas de sua diferença: o
samba de fundo de quintal, que revela uma tendência mais enfática de alguns traços
do que viria a ser o pagode. Mas logo se acorda do desmaio e não se encontra o
pretexto para criar um nome exclusivo, uma nova história e um novo nascimento
para essa versão do samba curtido na laje da comunidade. Se, de uma hora para
outra, o samba olhasse com olhos injetados e dissesse a uma parte de si “agora
você é pagode”, desconfia-se de uma crise de autoestima, um esgotamento de
paciência e de tolerância, uma insegurança sobre as suas próprias capacidades
de continuar sendo uma unidade entre todos os seus componentes. Ameaçado por
qualquer indício que rumoreja seu fim e morte, o ritmo orgulhoso já não pode
tolerar essas cadeias pervertidas de tons que permeiam o seu organismo, que
degeneram sua pureza, que gritam o samba grosseiro interpretado por suas linhas
salientes, como o desenho de um artista ruim que delineia a cópia dos olhos e
dos ouvidos, do perfil e da boca, porém sem absorver a matéria sutil que
percorre as veias e artérias. Pode-se imaginar que a crise demanda uma
cláusula. Exige a identificação de um culpado. O pagode, que não passava então
de um nome alternativo, um apelido carinhoso para fazer justiça a uma parte do caráter
do samba, ao seu estado dionisíaco, como sua segunda personalidade, bêbada,
cambaleante, exultante, torna-se o bode expiatório de uma degeneração que
exige medidas de segurança. Torna-se o culpado, aos olhos do mundo que anseia
nostalgicamente a volta das eras clássicas, a saudade da poesia inigualável. A mutação, a rigor, corre de ambos os lados.
Sentindo-se excluído, esse velho irmão que se descobre de repente tachado de
bastardo também passa a repugnar aquele que o rejeitou. E não é mentira que em
casos particulares tenha virado de fato um monstro. Juntando o pandeiro, a
percussão e o cavaco, o pagodeiro por vezes esboçou uma triste violência ao
samba, cometeu um desacato, promovendo um festival de emoções baratas
transformados em melodias bregas e arrastadas, chorosas e desgarradas, sem
aquela energia penetrante do verdadeiro choro, apenas pobre e exagerado.
Quando, enfim, essa diferença se tornara reconhecível por qualquer um, o nojo
se instalou. Mesmo um gringo percebe logo a diferença: “não, esse não é o
samba, o ritmo que me fez quase chorar e agir como uma criança, débil e
impressionado. Não, isso é outra coisa”. E ninguém mais ignora, apesar de não
poderem contar a diferença apenas de acordo com o número de instrumentos. Mas é
tudo ainda parte de uma grande injustiça. A crise existe, o pagode virou o bode
expiatório. Nas rodas de samba do rio de janeiro o grande fundamento é o que se
aprendeu do pagode, contudo. O mundo acadêmico, com efeito, aprende muito mais
com as cores da favela do que o contrário. E, afinal, se pode sempre perguntar: "por que o samba precisa de um nome?".
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