A
comissão atlética de Nevada concedeu a Chael Sonnen, lutador do Ufc e
desafiante de Anderson Silva, cuja apresentação hoje em dia é mais ou menos
supérflua, o direito a usar um tratamento de reposição de testosterona na
preparação para a luta no dia 7 de julho. O motivo é a alegação de
hipogonadismo, uma condição médica que afeta o nível de testosterona do
organismo. Tudo parece legítimo quando é embasado pela sabedoria impecável dos
médicos. Porém, esse caso especial acorda as pulgas detrás dos ouvidos, pois se
trata de um lutador dessas jaulas de violência que ganharam repercussão nos
últimos anos e que, para todos os efeitos, exigem do corpo do atleta uma
resistência e uma estrutura corporal extraordinária. O fato de faltar
testosterona a um homem para habilitá-lo a lutar no Ufc, longe de causar
espanto, apenas concorre com o esperado, uma vez que a grande maioria de humanos
vivos hoje não tem a média necessária para competir naquele nível de
agressividade. Por sorte, lutar no Ufc não é uma determinação médica, mas uma condição
que depende da liberdade do arbítrio, e por essa razão muito cara ninguém é obrigado
a receber reposição de hormônios para entrar em jaulas com monstros de fisiologia
anômala até para a ciência médica mais heterodoxa.
Mas Chael Sonnen parece estar se
beneficiando da confusão entre uma condição
médica e uma condição para lutar.
A primeira constitui uma determinação de especialistas fundamentada em um
conceito geral de saúde corporal, enquanto a segunda é apenas um esporte, e sua
condição varia dependendo contra quem você vai lutar, o nível da competição,
etc. Para entrar em uma jaula com o Anderson Silva, não basta ter uma condição
médica satisfatória, é preciso se basear na saúde de super-humanos, e se munir
com as drogas do super-soldado ou com uma dose de exposição a raios gama. O
assunto põe em questão muito mais do que a simples saúde de Sonnen, mas sim a
sua capacidade de superar Anderson Silva. Ora, mas então os senhores médicos
são aqui outra coisa: são senhores da retórica. Na medida em que sua decisão
afeta menos a saúde do paciente do que sua condição profissional, os médicos
fazem aqui um papel político, não científico.
De qualquer forma, uma condição
médica pressupõe uma deficiência involuntária, e lutar profissionalmente
não é uma obrigação. Chael Sonnen é livre para
escolher outra profissão. Seu índice baixo de hormônios não afetará suas
relações conjugais ou os outros empregos que ele decida exercer. Seu problema
se limita a lutar, mas socar outra pessoa obviamente não é uma condição médica,
e o profissional da saúde que se atreva a dar opinião sobre isso está
atravessando os limites impostos por seu diploma: não é mais médico, mas sim um
estrategista de combate. Pela mesma lógica, poderíamos trocar as mãos de
lutadores com pouco poder de knockout por outras mais duras, quem sabe com um
implante de metal nos dedos. Não apenas médicos, como engenheiros e técnicos de
todo gênero poderiam ser chamados para suplementar as pobres carências de galos
de briga.
Nem falei ainda do que mais sofre o
prejuízo dessa decisão da comissão atlética: a própria justiça. Pois, pensemos
juntos, o que é justo e o que é injusto em uma luta profissional? Alguém dirá
que uma luta vale tanto como uma guerra, não podendo ser injusta ou justa: tudo
vale. Mas aqui falamos de uma luta profissional, onde alguns sinais servem como
a expressão absoluta da voz dos participantes, como os famosos tapinhas, que
significam pedir água, desistir. Portanto, é uma modalidade de luta que ainda se
submete à política. Como nos outros campos políticos da vida, é a natureza das
leis que protege a justiça. Não há outro jeito de decidir o que é justo em uma
luta, senão como se decide o mesmo no contexto doméstico ou público: as leis
devem ser cumpridas sem exceções para os ricos ou para os pobres, para os
negros ou para os brancos, etc. Ora, há regras no Ufc. Se através de retórica a
interpretação dessas regras começa a ser feita cheias de exceções, concessões,
não há mais a justiça. A falácia de Sonnen consiste em transformar com um golpe
corrupto de semântica a palavra “esteroide/anabolizante” na outra mais suave,
aliciante: “tratamento de reposição de testosterona”. Dessa maneira ele consegue
inserir a semente da injustiça, que jamais cresce saudável: mas fecunda
contágios doentios nas negociações humanas.
A alternativa é argumentar que o tal
tratamento é como uma “ação afirmativa”. Mas comparar galos de briga com pouco
testosterona com personagens civis paralisados socialmente por preconceitos arraigados
na interpretação das leis é, no mínimo, uma manobra ridícula. Ao cabo, não é
diferente de compará-los com deficientes físicos. Seja a alternativa que for,
Sonnen não pode desmentir sua irrestrita liberdade para não lutar, procurar
outra coisa para fazer. E por mais triste que isso seja para um lutador, não é
nem de perto triste como não poder andar, ou não ter chances na competitividade
social. Em uma luta profissional, provavelmente
se alguém tem uma habilidade maior, ou a capacidade de explorar suas vantagens
melhor, ele sairá o vencedor, mas se, por outro lado, ele não puder fazer isso,
não é razoável que ele possa compensá-lo através de uma maneira artificial, um golpe de semântica com ajuda de médicos, ou
uma ação afirmativa. Isso fere o próprio conceito que temos de esporte.
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