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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O caso (nunca encerrado) do Naturalismo

Nós, homens, invariavelmente ficamos velhos e com a velhice, moderamos nossa opinião. Porém, nem sempre é saudável guardar cancerigenamente um juízo que anseia por sair radical e pesado, com a força incidente de uma pedrada. Há algumas vertentes teóricas vivas atualmente que chegam a gastar o fundo do bolso da minha paciência, principalmente porque guardam um ar pacífico e descansado, como se houvessem arrumado ingresso para alguma Shangri-la ficcional muito disputada. Na verdade, são versões novas do famigerado naturalismo. Ademais, porque são baseadas em desencaminhamentos de leituras, pecado que só os leigos têm a desculpa de cometer. A nova discussão da neurociência a respeito de problemas como o da “consciência” e do “espírito” é o exemplo disso. Arrumaram um jeito de reavivar essa discussão milenar, e com ar muito satisfeito de quem tem um ponto de observação privilegiado – proporcionado talvez pelos progressos da ciência – acreditam que podem por um golpe de tinta ou da tecla “enter” decidir e resolver esse que, mais que um problema, é um embaraço metafísico insolúvel. As críticas que poderia fazer a eles são muitas, mas, francamente, não acredito que eles mereçam a homenagem de uma discussão moderada e séria. Isso diminuiria a pedra de escândalo que eles representam. Basta lhes lembrar Tolstói, em uma citação que já usei para outros propósitos nesse mesmo blog: “Não há alma nem liberdade, porque a vida de um homem se traduz no movimento dos músculos e os movimentos destes estão submetidos às atividades dos nervos. Eis o que dizem, escrevem, imprimem sem suspeitar que há mil anos todas as religiões e todos os pensadores não só reconheceram  como nem sequer se lembraram de ter negado essa mesma lei da necessidade que com tanto zelo tratam de demonstrar agora por meio da fisiologia e da zoologia comparadas. (...)A pergunta de como se pode concordar a lei da necessidade[natural] com a lei da liberdade [cultura] não pode resolver-se através da filosofia nem da zoologia comparadas (...) Os naturalistas e seus adeptos que esperam resolver esse problema fazem-nos lembrar pedreiros a quem tivessem mandado rebocar um dos lados da parede de uma igreja e, aproveitando a ausência de contramestre, num excesso de zelo, rebocassem as janelas, as vigas, as imagens e as paredes (Tolstoi, Guerra e Paz, 2007, p.1466/67).” O tom do autor me agrada enormemente, pois não se humilha a um diálogo de igual para igual, e mantém a altura, tratando de ridicularizar e expor o que é ridículo. Eu, de minha parte, não almejo mobilizar uma campanha para que cientistas fossem estudar livros de metafísica, ou pelo menos sobre a história da epistemologia. Não, nem iria tão longe. Seria mais fácil apenas apontar para o fato de que, quando um neurocientista escreve um tratado reducionista e naturalista defendendo que “a cultura e a consciência não passam de secreções do cérebro”, esquece a obviedade de que essa mesma teoria científica – elaborada por uma lógica e uma metodologia – são produtos da consciência e da cultura e, portanto, seguindo sua mesma regra, são redutíveis a “secreções do cérebro”. Ora, fiel à mesma regra, o seu próprio livro e todos os seus artigos acadêmicos não são senão “secreções do cérebro”, e sua contribuição cultural e acadêmica é nula como a nutrição de um vegetal. Por que, então, o "pequeno gênio" se dá o trabalho de escrevê-las, pensá-las, examiná-las e avaliá-las? O fato de que ele a escreve conscientemente e com uma pretensão de verdade, com uma lógica e um valor metodológico, entra em direta contradição com sua própria tese. E vamos mais além: todas as leis neurológicas retiradas de princípios mais firmes de outras ciências mais abrangentes, como a Biologia, serão, por essa lógica profana, meras secreções do cérebro – sem valor teórico, lógico, metodológico, cultural.  Supondo que algum ousado realmente estivesse disposto a defender a teoria de que todas as teorias, inclusive as da Biologia, estão submetidas a leis naturais - por exemplo, as da evolução - ele deveria ser capaz de explicar como a própria teoria da evolução escapa a essa regra, ou expor a que nova regra natural a teoria da evolução se subordina, o que o levaria a uma regressão ao infinito. O naturalismo científico tem uma semente de estupidez, embora seus defensores não sejam estúpidos e nem vegetais, e a pior ramificação desta é a cegueira, a ausência de desconfiança geral desses cientistas a respeito da atitude filosófica que eles mesmos incorporam e pressupõem para investir crédito metodológico em seus paradigmas. Oscilam entre uma ingenuidade dogmática e um cinismo cético, mas escondem isso de si mesmos. E veja que aqui nesta crítica não incluo o brilhante (dessa vez sem ironia) Quine, que no seu naturalismo não é ignorante da discussão filosófica em que está inserido e nem descuidado quanto ao terreno dramaticamente lamacento da metafísica que está atravessando. Além disso, Quine escapa à redução ao absurdo pois é um holista, e fica alheio justamente de uma teoria natural - como substituta de uma epistemologia fundacionista - que tentasse explicar a natureza e o caráter de validade das outras ciências. Refiro-me a uma classe remanescente do positivismo, que ainda ganha nobels e tem prestígio acadêmico, embora sejam vítimas de um simples desencaminhamento teórico de calouros. Nesse assunto, por sinal, mesmo os religiosos estão mais avançados que os naturalistas e podem olhar os seus erros de cima, com pena e ironia. O que disse aqui, selecionando a neurociência como alvo, vale com o mesmo tom para o reducionismo psicológico, antropológico, e daí por diante.E agora algum malicioso poderia perguntar-me: "Lucas, você acredita mesmo que existe um mundo platônico onde as ideias competem, concorrem, se refutam e verificam, complementam e solidarizam, movimentando a cultura e a história? Acredita que existe em nós um órgão capaz de localizar as essências, o mito do 'olho do espírito', acessível àquele que vive a retidão moral e a pureza espiritual?" Ora, obviamente essa pergunta é para me pôr em embaraço. Não acredito em nada disso, mas sei que essas estão entre as questões insolúveis que fazem parte da inclinação inevitável da razão à metafísica. E sei que, a experiência dessa reincidente tentação a se colocar questões impassíveis de resolução, isso, sim, NÃO é uma secreção do cérebro. Nossos problemas existenciais definitivamente não aceitam o reducionismo: a "experiência" é e sempre será um mistério, mais fácil de ser elucidada pela literatura e a poesia que por um microscópio de laboratório.