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quinta-feira, 17 de setembro de 2015

As barracudas acadêmicas

 O orientador geral da turma com que Tércio viera se destacava na área com suas incontáveis publicações, inumeráveis participações em congressos, mais a sua experiência já meio maliciosa da dinâmica das interações nestas festas. Continha aquela leviandade que distingue tão bem o professor universitário moderno daqueles carrascos bem alimentados dos templos medievais, e dos mal pagos pedagogos das escolas públicas. 
 Na segunda noite se encontraram novamente todos os seus pupilos em uma democrática mesa de bar onde todos tinham o mesmo direito à opinião, mas com pesos diferentes, naturalmente, que onde fala o galo não pode provocar o mesmo efeito a palavra do pintinho. Assim é o mundo: meio injusto, e sem remorso. Há pouco crédito em risco na objeção do excluído, o pobre aluno que ainda não conquistou a proteção da instituição acadêmica. Por outro lado havia muita coisa em jogo cada vez que se pronunciava o orientador: era preciso lhe captar o sentido, entendê-lo, fazer-se íntimo, rir com ele e mesmo daquilo que não tinha graça. 
 Na noite de quarta feira o assunto versava sobre os peixes e algas vistos durante o dia, no mergulho de turismo feito no passeio de barco. Tércio apenas por acaso estava com seus óculos de natação na mochila, e ainda expunha sua surpresa com a fartura de beleza pulverizada em matizes infinitos de cores e movimentos: a dinâmica da submersão aquática, cada gesto cadenciado em um ritmo de sonho, de um lado para o outro, vagarosos como a sutileza mitológica de passos de valsa no aquário da noite estrelada. Pareciam imitar a flexibilidade de um rebolado extraterreno; como bundas oscilando em um planeta com menor força gravitacional. Cada peixinho um membro involuntário da coreografia. O entusiasmo dos encantamentos ainda povoava o seu espírito, e como uma criança ele despejava suas impressões na mesa, sob a fiscalização complacente do professor: 
 – Nossa, nunca vi tanta enchova junto, e sem medo nenhum de mim, só  faltou me deixarem passar a mão nelas como se faz com um cachorro domesticado... 
 – Enchova não, Barracudas, Sphyraena barracuda, volveu o mestrando – que conhecemos também por Diego – ligado à mesa pela ponta. Disse isso relanceando os olhos para o professor. 
 – Tá, obrigado – continuou sem temperar o fôlego – aquele coral lindo, e aquelas árvores lá embaixo, dançando em esbeltos pares ao embalo das correntes marítimas... – foi interrompido neste ponto, não sem enraizar na mesa uma impressão de estranheza que refletia o efeito de indigestão gerado pelo conflito de regiões discursivas. Os cientistas, acostumados ao freio do discurso acadêmico, não viam nessas expressões de entusiasmo líricas senão a carreira desvairada de um palavreado vácuo, uma promiscuidade confusa para escolher as palavras.  
 – Árvore não, uma alga, uma Cianophyta, por favor, isso é uma mesa de fitólogos, foi como lhe interrompeu a prolixidade Diego, e olhou em volta esperando a aprovação dos “fitólogos”, com um sorriso maquiado no rosto de puxa saco; depois olhou para o professor, disparando súplicas subentendidas ao venerando mestre, mas não foi correspondido nem por uns nem pelo outro. 
 Tércio parou, ponderou, pensou em voltar à sua viagem pela memória das árvores marinhas, mas percebeu que não tinha mais caminho livre; o mestrando havia jogado caules, galhos e animais, cada qual com o seu nome em latim, obstruindo o meio da pista em que corria a sua ingênua eloquência. O seu silêncio durou muitos segundos de reflexão, mas queria desaparecer, em um tom novo, darwinianamente adaptado. Pensou consigo: 
 “Realidade é o nome pomposo que vocês dão para a dimensão artificial do seu laboratório. Todo esse alfabeto de definições enciclopédicas não passa de um exercício de musculação intelectual: quanto mais catalogados bichos e vegetais, mais fácil aguentar o peso do discurso nos seus braços e adquirir a autoridade para falar e falar, palestrar e palrar, pesando a verdade em uma balança intuitiva fabricada. Mas também isso só vale nos limites do seu encerramento acadêmico... Que, de onde eu venho: helicóptero é avião de rosca e lagartixa é jacarezinho de parede. O que vocês chamam de errado, para mim, é a poesia ordinária da vida real, para a qual lhes falta talento” – mas nada disso falou. Encerrou como um tumor no seu âmago. Quem quer brigar precisa de pretexto. E se a caça de pretextos está fraca: espera-se até a próxima estação!

Olhou para o professor que continuava com um sorriso complacente, um traço que não lhe sabotava a reconhecida supremacia, nem ofendia a ninguém. Levantou o copo em uma mensagem de abandono formulado em brinde, e encabeçou de volta para a sua turma, onde o recolheram com pressa e o receberam com as saudades de quem já não o via há muito tempo. “Afinal, uma teoria da roda tem que ser melhor que a teoria do quadrado para pôr um carro em movimento; e comer de garfo sempre é mais fácil do que comer de pauzinhos, não importa o quão poéticos sejam os orientais” – pensou ainda Tércio, retratando-se de si para si mesmo pela covardia cancerígena. 

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Os tesouros férteis de uma experiência artesanal

Já não faz pouco tempo que cheguei e o tema de minhas impressões não mudou junto com o clima. Pois ele é o próprio clima, que não muda.
            A cadeira que sobrava no meu quarto eu pus para fora, e embora prometendo-lhe resgate breve, debitei mais um valor junto com a conta abismal dos juramentos não cumpridos, cedendo à regra da procrastinação. Lá fora ela toma a água da chuva interminável. Muitas vezes pensei que aquilo ia tomar cheiro de mofo e outras, respondi a mim mesmo dizendo que ia tirá-la de lá logo. Mas nunca fui. Hoje percebi que quanto mais eu prorrogo, mais vai a cadeira se ambientando ao dilúvio sorrateiro que se conspira no céu de Florianópolis. Fui assistindo ela tornar-se um artigo orgânico, as suas pernas se desenvolvendo como raízes pantanosas, como o fóssil de um sambaqui imemorial dando à paisagem a aparência de um cemitério de mobílias naufragadas. Enfim, desisti de tirá-la de lá. Já é o novo lar de centenas de fungos que prosperam na umidade. Como um navio que virou coral no fundo do mar. Foi absorvida pela chuva interminável, que a nada poupa. Meu medo é sair na rua e ter meus pés dilatados em ventosas de polvo.
            Mas é bom estar de volta à minha cidade, como um marinheiro com novas estórias. Preparado também para ouvi-la com novas orelhas. As cidades têm personalidades, disse alguém que provavelmente entrou em diálogo com elas. Ou teve uma discussão, um desacordo; tanto faz. Quanto mais personalidade, mais brigona. Eu também o diria, mas hesito em cometer mais um desgaste em um texto que já vai se cansando de tanto efeito. Apesar disso, confesso que o falei, embora transferindo a responsabilidade para a boca de um alguém.
            A vantagem dos simulacros sobre as definições científicas é que aqueles têm peso, tom, e até cheiro, enquanto estas são insípidas e neutras como a vida privada de um banqueiro. Se os primeiros são instrutivos ou não é matéria de controversa. Os cientistas vão sempre caluniá-los, acusá-los de enganadores. Eu gosto mesmo é da linguagem gorda, criativa, que confunde, mas romanceia, e não essa formalidade amarga de leis e princípios, que define, mas desilude. Por isso repito: as cidades têm personalidades. Acredito que algo parecido já foi dito em muitos lugares e por muitas pessoas; e não é à toa, se todas elas apenas dependessem de ter dialogado com uma cidade para elaborar o enunciado. Há vozes que nunca se calam nas esquinas e endereços. Ninguém fica sem assunto. Basta, pois, ter ouvidos para suas sugestões. Há cidades convidativas e hostis, senis e joviais, doentes e saudáveis, determinando as perspectivas que nela podem nascer, os conflitos e armistícios que nela se podem assinar, as convulsões artísticas provocadas pelas suas dores estomacais, seus espasmos culturais. Há uma diversidade rica de possibilidades discursivas e de leis e ideias presas nas malhas da polis.
            E a sensibilidade fica mais aberta, porosa, quando as habitamos na qualidade de hóspedes. Quando podemos medir o modo como ela trata as visitas. Porém, é nesse estado que estamos mais sujeitos a cometer más interpretações, esperando um conforto pacífico e uma recepção pouco agitada, incapaz de sacudir o espírito. O turismo geralmente tem esse efeito: comprar a hospitalidade de lugares estranhos, anular as suas vozes e esterilizar aquela mesma estranheza. Há pessoas que são eternamente turistas, pois vivem pagando a hospitalidade alheia. E vencer completamente esse estado é muito difícil, pois é vencer um inimigo poderoso: a inclinação a preservar as fronteiras de nossa zona de conforto, nossa economia íntima, onde administramos nossas dívidas e cobranças. É preciso ser amplo e abrangente na administração dos próprios preconceitos, para curtir os lugares estranhos em vez de apenas estranhá-los.
            Nas colheitas de outros mundos, não haverá senão estéril refeição de vivências se o viajante não souber ver toda a riqueza humana encerrada dentro das possibilidades domésticas de sua própria experiência. A areia do deserto, o gelo da montanha e os animais silvestres serão apenas redundâncias. Não sou do partido contrário ao de Marco Polo e nem advogo contra a frase de Fernando Pessoa (“viajar é preciso...”), que mesmo depois de desgastada em clichê não perdeu a pimenta e nem deixou de estimular faíscas. Só lembro que o cego do espírito não pode tirar vantagem da velocidade de um avião para compensar a lerdeza tardia dos olhos. Nenhuma palavra será tirada de outras cidades se a sua própria, e quiçá sua casa, não for uma estufa igualmente poderosa para fermentar o álcool embriagante da vida. Não foi a pressa insensível de certos europeus míopes que enterrou a cultura dos índios? Queriam caminhos mais econômicos, os brutos de vanguarda, e inventaram o trânsito, foram precursores apenas da marginal Pinheiros. Posso não dar o exemplo da minha própria doutrina, e disso me recrimino. Mas se alguém tem consigo a cobiça das horas leves e calmas dilatadas, não ligará para a diferença mesquinha de alguns séculos, nem invejará a rapidez artificial da indústria de velocidades. E há imponderáveis eternidades adormecidas no tesouro lerdo das horas artesanais.  

            Voltei cheio de novos cenários, mas é com o conteúdo artesanal da minha própria sensibilidade com que tenho que me preocupar.  Durante essa viagem passei por diversas cidades, mas não me sinto tão modificado a ponto de ter aprendido algo a mais, ou escalado novas etapas do monte das ideias. Há muito turismo invencível em mim, que me impede de navegar abertamente pelas correntes e fluxos de perspectivas ofertados pelas cidades. E só não menciono os museus e as cabines enferrujadas do passado, motorizadas a dinheiro, aceleradas por pontos de vista estapafúrdios, e explodidas por combustíveis de ganância. A experiência que se nutre dos bares e da rua mantém a identidade romântica in corrompida, se alimenta da noite e do dia durante os momentos em que uma trama típica dos contornos citadinos pode acontecer ou repetir-se, reacendendo o espírito do lugar na encenação dos seus personagens.