statcounter

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Permissão para falar da beleza perdida de Florianópolis...


A natureza às vezes é tendenciosa. Não teme ser desmascarada beneficiando seus favoritos, quando, despendendo tanta atenção engordando alguns cantos do globo, deixa a outros uma aparência magra e mesquinha. Florianópolis é reconhecida por um público mais ou menos desinformado e influenciável, muito conhecido pela sua sensibilidade fraca e a euforia turística, como um éden, um desses locais onde a natureza fez seu ninho, esperando fecundar um prodigioso leque de tesouros em cheiros, cores, reflexos e gostos. Um espetáculo para a visão. Mesmo um veterano visitante dos confins desse enorme mundo pode, sem recaída, admirar o trabalho do sol pintando sombras e distribuindo as perspectivas pela paisagem quando a fita pela primeira vez de cima do morro da Lagoa.  E isso é só o começo. Porém, o escândalo é inimigo da beleza. Mesmo a mulher mais linda não terá fibra o bastante em seus traços para resistir à expectativa de um virgem escandalizado. Aqui na ilha não é diferente. Uma multidão plebeia de pseudo-milionários barulhentos e desengonçados há algumas décadas tem indiscretamente se vangloriado da oferta da natureza nessas paragens, atraindo o hálito da cobiça e cegando o homem comum com promessas falsas de prazeres gratuitos. Hoje, ainda há uma sequela de hippies endinheirados mal resolvidos e novos empreendedores bem aventurados que se recusam a ver o que a cidade se tornou, e o que ela já avisou se tornar, crentes de que o crédito investido pelos espíritos é de tal maneira inesgotável que ignora os custos da prostituição. Se há ainda quem pense que o espírito da cidade é imune às transformações em sua superfície estrutural, pense a segunda vez, quando estiver no trânsito agressivo, olhando o horizonte se fechando pela perspectiva do concreto predador que vai colonizando o céu, oprimindo as ideias. Florianópolis já não precisa de prognósticos aterradores que nos previnam sobre seu futuro calamitoso, pois ela já é a cidade estreita e neurótica que os sonhos das Cassandras sociológicas e ecológicas profetizaram. Parecia impossível, eu também confesso. Mas os morros estão ficando pequenos, os matos escassos, as garapuvus cada vez menos imponentes, toda a expansiva energia da vastidão, do mistério escondido em cada galho, que faz o homem voltar a ser criança na sua prostração ao infinito, está se esvaindo, maculando a experiência. Não tendo sequer a desculpa da proporção, como o Rio de Janeiro, Florianópolis vai se tornando um medíocre aquário de hotel, uma maquete de amostras artificiais, compacto demais para que possa fecundar as inspirações da alma. Os cariocas ganharam alguma coisa ainda estética - e em muitos casos sublimes - em troca do aniquilamento perpetrado no último século, uma simbiose artesanal das pedras e favelas, das raízes de árvores seculares e os prédios beirando a areia; nós, infelizmente, não vamos ter nada que possa se aparentar à beleza. Ninguém se toca de quanto Florianópolis é sensível até vê-la do assento de um avião: um pedacinho de terra, de fato, como diz a música. Seu espírito não sobreviverá a essa violação. Alguns locais da ilha, à semelhança do que já são os bairros marginais à universidade, competem em feiúra com as mais provincianas e insípidas cidadezinhas do interior, daquelas em que o ônibus estaciona e nos desperta para uma angústia sem fim, torcendo aos céus para levantarmos âncora. Em breve não se poderá mais ver a beleza com os olhos, e dependeremos de outros artifícios da sensibilidade, da linguagem, dos acontecimentos, da ajuda da noite, das trevas, quem sabe, para reproduzir a poesia mística que habita cada grão de matéria do universo. Assim já é em São Paulo: se não houvesse lá a mágica soturna da noite, todos os seus cidadãos já teriam concordado com a ideia de suicídio coletivo. E já não será assim nessa ilha? O próprio turismo é apenas retórica, linguagem, experiência fabricada pela boca profana de uma necessidade especulativa e técnica. Em breve o último refúgio será o mar, para roubar o que ainda resta de impronunciável na garganta do infinito. Aqui em terra, só buzina e asfalto.  

Ps. Usei o título como pedido de permissão, uma vez que há assuntos que não se perdoam facilmente.