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quarta-feira, 30 de maio de 2012

Chael Sonnen e a semântica


A comissão atlética de Nevada concedeu a Chael Sonnen, lutador do Ufc e desafiante de Anderson Silva, cuja apresentação hoje em dia é mais ou menos supérflua, o direito a usar um tratamento de reposição de testosterona na preparação para a luta no dia 7 de julho. O motivo é a alegação de hipogonadismo, uma condição médica que afeta o nível de testosterona do organismo. Tudo parece legítimo quando é embasado pela sabedoria impecável dos médicos. Porém, esse caso especial acorda as pulgas detrás dos ouvidos, pois se trata de um lutador dessas jaulas de violência que ganharam repercussão nos últimos anos e que, para todos os efeitos, exigem do corpo do atleta uma resistência e uma estrutura corporal extraordinária. O fato de faltar testosterona a um homem para habilitá-lo a lutar no Ufc, longe de causar espanto, apenas concorre com o esperado, uma vez que a grande maioria de humanos vivos hoje não tem a média necessária para competir naquele nível de agressividade. Por sorte, lutar no Ufc não é uma determinação médica, mas uma condição que depende da liberdade do arbítrio, e por essa razão muito cara ninguém é obrigado a receber reposição de hormônios para entrar em jaulas com monstros de fisiologia anômala até para a ciência médica mais heterodoxa.
            Mas Chael Sonnen parece estar se beneficiando da confusão entre uma condição médica e uma condição para lutar. A primeira constitui uma determinação de especialistas fundamentada em um conceito geral de saúde corporal, enquanto a segunda é apenas um esporte, e sua condição varia dependendo contra quem você vai lutar, o nível da competição, etc. Para entrar em uma jaula com o Anderson Silva, não basta ter uma condição médica satisfatória, é preciso se basear na saúde de super-humanos, e se munir com as drogas do super-soldado ou com uma dose de exposição a raios gama. O assunto põe em questão muito mais do que a simples saúde de Sonnen, mas sim a sua capacidade de superar Anderson Silva. Ora, mas então os senhores médicos são aqui outra coisa: são senhores da retórica. Na medida em que sua decisão afeta menos a saúde do paciente do que sua condição profissional, os médicos fazem aqui um papel político, não científico.
            De qualquer forma, uma condição médica pressupõe uma deficiência involuntária, e lutar profissionalmente não é uma obrigação. Chael Sonnen é livre para escolher outra profissão. Seu índice baixo de hormônios não afetará suas relações conjugais ou os outros empregos que ele decida exercer. Seu problema se limita a lutar, mas socar outra pessoa obviamente não é uma condição médica, e o profissional da saúde que se atreva a dar opinião sobre isso está atravessando os limites impostos por seu diploma: não é mais médico, mas sim um estrategista de combate. Pela mesma lógica, poderíamos trocar as mãos de lutadores com pouco poder de knockout por outras mais duras, quem sabe com um implante de metal nos dedos. Não apenas médicos, como engenheiros e técnicos de todo gênero poderiam ser chamados para suplementar as pobres carências de galos de briga.
            Nem falei ainda do que mais sofre o prejuízo dessa decisão da comissão atlética: a própria justiça. Pois, pensemos juntos, o que é justo e o que é injusto em uma luta profissional? Alguém dirá que uma luta vale tanto como uma guerra, não podendo ser injusta ou justa: tudo vale. Mas aqui falamos de uma luta profissional, onde alguns sinais servem como a expressão absoluta da voz dos participantes, como os famosos tapinhas, que significam pedir água, desistir. Portanto, é uma modalidade de luta que ainda se submete à política. Como nos outros campos políticos da vida, é a natureza das leis que protege a justiça. Não há outro jeito de decidir o que é justo em uma luta, senão como se decide o mesmo no contexto doméstico ou público: as leis devem ser cumpridas sem exceções para os ricos ou para os pobres, para os negros ou para os brancos, etc. Ora, há regras no Ufc. Se através de retórica a interpretação dessas regras começa a ser feita cheias de exceções, concessões, não há mais a justiça. A falácia de Sonnen consiste em transformar com um golpe corrupto de semântica a palavra “esteroide/anabolizante” na outra mais suave, aliciante: “tratamento de reposição de testosterona”. Dessa maneira ele consegue inserir a semente da injustiça, que jamais cresce saudável: mas fecunda contágios doentios nas negociações humanas.
            A alternativa é argumentar que o tal tratamento é como uma “ação afirmativa”. Mas comparar galos de briga com pouco testosterona com personagens civis paralisados socialmente por preconceitos arraigados na interpretação das leis é, no mínimo, uma manobra ridícula. Ao cabo, não é diferente de compará-los com deficientes físicos. Seja a alternativa que for, Sonnen não pode desmentir sua irrestrita liberdade para não lutar, procurar outra coisa para fazer. E por mais triste que isso seja para um lutador, não é nem de perto triste como não poder andar, ou não ter chances na competitividade social. Em uma luta profissional, provavelmente se alguém tem uma habilidade maior, ou a capacidade de explorar suas vantagens melhor, ele sairá o vencedor, mas se, por outro lado, ele não puder fazer isso, não é razoável que ele possa compensá-lo através de uma maneira artificial, um golpe de semântica com ajuda de médicos, ou uma ação afirmativa. Isso fere o próprio conceito que temos de esporte.
  

segunda-feira, 28 de maio de 2012

A eterna rinha dos boêmios com os moralistas


            Passei os olhos pelos jornais dos últimos dias e me deparei com o mais novo assalto contra a própria reputação cometido por Ronaldinho Gaúcho, sempre mais leal à sua inclinação boêmia que ao desejo de satisfazer as chefias, ou quem quer que seja. Lembrei-me então de Romário em sua fase memorável. Dizem que o carioca barganhava com o técnico sua saída do campo para o carnaval, e quando interrogado sobre sua volta ao Brasil, durante sua melhor fase no exterior, apenas sugeriu ao repórter: “você não sabe o que é morar no Rio de Janeiro”.
            Vi em seguida outra enxurrada de reações dos cronistas indignados erigindo promessas de inferno contra o jogador. Houve quem o chamasse de vagabundo, outros de farsa. O que esses muito respeitáveis velhos encalhados em sua ilha de decência têm de superar é o fato de que nascerão sempre versáteis moleques cheios de molejo e vida, talentosos o bastante até para desperdiçar seu talento. Têm de aprender que o seu comportamento escandaloso não é uma questão de domínio público, ou uma exploração da confiança civil, e muito menos a carga de uma dívida que eles fazem com os invejosos. Pode parecer uma injustiça dos céus, mas não há no mundo cláusula alguma reputando aos jovens levianos a responsabilidade de indenizar a amargura de anciões reprimidos que sofrem entediados com a própria memória. A propósito, é de desconfiar do moralismo de quem cobra essa dívida inexistente. Parecem aqueles infelizes que xingam de vadia a mulher que não concedeu em dar-lhes a felicidade.
            Por outro lado, o moleque e a menina muito encantados por sua própria liberdade não deveriam tampouco tentar desmentir a existência da palavra experiente, a voz da idade, que ganhou a confiança de falar mais alto e cravar na terra o valor de sua lei e censura. Por mais modelos em que a sociedade possa se camuflar, permanece fixa a condição de fidelidade exigida de seus membros. Os vários modos de credibilidade que estruturam a coexistência social são mapeados justamente pelo sistema de débitos instaurados dos antigos para os novos, e não se deve jamais subestimar o poder de sua cobrança. É essa verdade simples, porém capital, que falta à inteligência de uma camada de descontentes sociais. Ou aquela que eles preferem não ver.
            Eu, que me considero um boêmio até onde posso, acredito que a boemia é a vida como ela deve ser vivida, porém não dissimulo ignorar que a sua energia prazerosa nasce de um abuso do crédito social, não da conformidade com a regra do dia. O boêmio vive, justamente, ao avesso da regularidade diária.  E se não fosse assim, ainda seria bom?

domingo, 20 de maio de 2012

Noriel Vilela - O Umbanda, o samba e o funk

Não se pode calcular numa doutrina exata a quantidade inumerável de formas com que os ambíguos elementos da cultura africana se dissolvem no submundo das sutilezas musicais. Porém, a assinatura de sua origem é feita com letras fortes. E seu sangue negro continua a ser filtrado e semeado na estrutura fina do estilo, pela ordem de uma regra incompreensível capaz de soletrar a cifra do continente-mãe seja em blues, seja em samba, em salsa ou em mambo. Noriel Vilela traduz o espírito das religiões afro-brasileiras na tristeza e na alegria do samba, aproveitando em contrapartida a inteligência de cintura emprestada dos sopros de influência norte-americana, os abraços elétricos do balanço ritmado do funk. A sua música narra uma constelação de sensações, dando a elas fluidez e fluxo. Mistura uma vibração que vêm dos cantos repetitivos aliterando sílabas rebeldes de escombros de dialetos tribais, balbucios desenterrados do fundo da infância negra: “Ororum dá ah haha ah há”. Noriel era um homem religioso, violentamente envolvido com os poderes de invocação de sua alma. Não podia ser diferente, sabemos quando ouvimos sua obra. É difícil dizer de onde vem o gênio de um homem, de que fonte nasce sua pulsação de energia elementar, seu talento para oferecer num gesto pessoal toda a invocação de uma fase da cultura, da história, da música. Teria vindo, em Vilela, da sua compreensão do Umbanda? Deixemos essa dúvida fútil de lado. Outra coisa é mais importante. É que se vê logo que candidato ao título de gênio assim sub-repticiamente, sem segundas explicações, um homem que é uma incógnita da música brasileira. Mas não me podem criticar o pressuposto do texto, é essa tese, afinal, da genialidade incontestável do homem, que peço ao leitor como uma hipótese garantida pelo benefício da tolerância. Tenho meus motivos para gastar minha credibilidade em alguns eleitos do meu gosto. Mas me surpreendo de ter procurado mais sobre ele e nunca achado uma bibliografia mais substanciosa, nem uma homenagem mais expressiva, tendo visto o alcance intuitivo de sua realização no cenário da música. Até hoje não vi o que o rivalizasse: inigualável não apenas pela voz de baixo, mas pelo tom geral que ele dava ao som. E tudo isso em apenas uma gravação de álbum (“Eis o ôme”), o que nos deixa a insinuação dos milagres interrompidos, nunca feitos, pelo mago intérprete de divindades cheias de molejo. Morreu cedo demais. Cedo demais para que fosse reconhecido pelas toneladas de seu espírito, apesar de ter conhecido uma fama efêmera que era inevitável pelo caráter popular de suas canções. Não será, entretanto, injustiçado pela burocracia tardia do tempo: cada vez que o escuto em meu carro com uma carona ou amigo um novo ouvido é alistado, invariavelmente perguntam o que é aquilo, e se dão o tempo de uns momentos de reflexão pelo sambista de tão singular sonoridade, dono de tanta marca autoral. Há gente que não acredita que passou tanto tempo sem conhecê-lo – a não ser pela música gravada pelo Funk como le gusta e que, a rigor, é a que menos transmite a regra de seu valor musical. E há muito pouco parecido no labirinto confuso das influências musicais, embora a época tenha dado outras expressões similares de sua arte. Até esse texto apenas se redime pela humilde ambição de fazer mais pessoas procurá-lo e ouvi-lo. Quem sabe possamos esperar com um otimismo ingênuo que a repetição incansável da sua produção miúda, agora que novas gerações podem lançar os olhos sobre ela com a ajuda da distância, imprima em novos músicos a carga de suas sensações lidas através dos sons, e quem sabe o futuro guarde o fruto das sementes africanas que o grande regou. E que novos fatos concorram para exumá-lo do anonimato. Que sejam desvelados sinais e vestígios da vida misteriosa desse tesouro do estilo brasileiro. 

terça-feira, 8 de maio de 2012

A humilhação pública do autor na era das novas políticas editoriais


Francamente: não se pode deixar todo mundo feliz. Os blogs hoje são um símbolo de como o conceito de “publicação” é adaptável e relativo. Junto com a onda do progresso na forma de divulgar literatura, entendida da forma mais ampla o possível, as antigas juízas solenes do que será e o que não será lido também adotaram modelos reformados. Há agora um grupo de editoras que abriga aquelas de pequena tiragem. Basicamente, são as editoras que cobram ao autor o custo de sua publicação. Se isto começou ou não como um modelo elegante de golpe já não é possível avaliar, mas hoje a difusão da prática já lhes deu o direito de se arvorarem com a mais descarada das faces inocentes. Estão quase sufocadas com seu ar de legitimidade. Qualquer que seja a verdade, de todos os que aproveitarem alegremente dessa facilidade nova na história do mercado editorial, não se pode deixar de mencionar quem sobra: a própria dignidade do autor, que sofre essa sumária defasagem da confiança básica que, antes de tudo, deveria ser investida pelo patrocínio da editora.  Pois sem ela, sobra apenas o autor; e ninguém é mais suspeito que o próprio autor do livro na propaganda de sua obra: é suspeito porque é pressuposto, e o fato de fazer uma boa crítica de si mesmo não será jamais um evento surpreendente. Com mais frequência será tomado por arrogante, ou autocomplacente. Imaginem se os prefácios do próprio autor deixassem de usar o tom de respeito e humildade, e passassem a usar o tom predador e desrespeitoso dos pregadores e conversores religiosos! Impossível imaginar boa literatura escrita assim. Essa nova política, porém, considera as vantagens de submetê-lo à humilhação de ser o único a investir em si mesmo, traindo seus sonhos pela raiz. A editora tira habilmente o seu corpo fora, e sequer atesta a qualidade da obra com o seu próprio exemplo: afinal, se nem a editora patrocina a qualidade do texto, que exemplo oferece ao possível comprador?  É uma boa distorção do conceito editorial. O autor agora deve carregar um papelão de mendigo escrito: “me compre”. Não se pode deixar todo mundo feliz, como disse. E não há que culpar um lado ou outro, a verdade inapelável é que se depender do mercado a editora que aposta em literatura com a ajuda do próprio faro irá fatalisticamente ser condenada às chamas da falência. As opções são restritas: trabalhar apenas com planejamentos de mercado, que devem levar em conta sempre os tratados de psicologia infantil que reduzem o ser humano ao seu complexo de fetiches e vaidades pueris; ou pedir que o próprio autor arque com as despesas e o risco de seu fracasso, devassando preliminarmente o benefício da dúvida e colocando a nova literatura em uma perigosa encruzilhada: a de ser suspeita até que se prove o contrário. Mas: sem advogado de defesa!