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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Velho oeste medieval

Pelos meados do século XV os reis de Espanha, nação cuja reputação de superstição e intolerância durou séculos, expulsaram de suas terras sob decreto de morte todos os Judeus. Este povo, acostumado às movimentações diaspóricas, encontrou um asilo insincero nas graças suspeitas de Dom João de Portugal, que pelo favor lhes cobrou oito escudos por cabeça. Sem alternativa, os escolhidos de deus não puderam sequer participar da pechincha, e como o são todos os mais fracos, explorados, cederam sem reclamar. A condição não incrimina o rei: pondo preço em sua bondade, deixava expresso o caráter comercial de seu interesse e não se pronunciava como aliado de nenhuma parte, evitando desmoralizar a autoridade do vizinho castelhano. Assim funciona o mercado: é preciso medir o seu preço pelo dos outros comerciantes para competir. Negociando o que é certo ou errado, no entanto, o rei endividava a própria consciência. É o peso da coroa, tomar decisões difíceis.
 Como bom vendedor, para todos os efeitos, prometeu além do asilo o transporte para a África. Que satisfação pessoas nascidas na Europa poderiam ter com essa proposta de despejo? Quem pergunta esquece talvez a motivação independente fornecida pela carinhosa e abençoada instituição religiosa conhecida pelo nome invocativo de Santa Inquisição. Seu eco sugeria calafrios mesmo em não-Judeus da época. De modo que pagar para estar longe dela não podia ser assim um mau negócio na mente de um, ainda que tivesse que abordar a África selvagem e muçulmana para livrar-se da condenação histórica perene que lhes fazem os cristãos pela responsabilidade da morte de seu precursor espiritual. A proposta, a princípio desencorajadora, podia ao fim do raciocínio soar mesmo imperdível.  
Dom João lhes impôs um prazo, após cujo vencimento os reduziria à condição conveniente para terras de sectários fanáticos de cristo: a escravidão. Afinal, não era de se esperar que o interesseiro monarca fosse arriscar-se a uma controvérsia com o vizinho por causa de meros Judeus. Na contagem final do tempo concedido, verificou-se, entretanto, que o número de embarcações era escassa e precária. A frota se distribuía desorganizadamente ao longo do porto de Lisboa no dia da viagem. Em seu convés porco, fitando maliciosamente os novos passageiros de sua majestade, se empoleiravam vulgares marinheiros de sensibilidade engrossada pela força da circunstância, gordos e sujos, ou robustos de trabalhos braçais, criaturas de profundos preconceitos e vasta ignorância. Grandes gigantes de roupas largas e rosto moreno lascado pelo sol, animais de gestos bruscos e voz forte, displicentes e comediantes profanos, sem respeito por nada exceto por suas superstições marítimas e religiosas. Observando seus companheiros de viagem, a grande população de exilados, como cães maltratados habituados à desconfiança, reconhecia-os como essa classe de homens simples e obedientes que há em todo povo, até mesmo inofensivos, mas sempre prontos para tirar vantagem sem remorso das margens permitidas pela sua própria tradição. E o que eram eles, Judeus - o nome diz tudo - naquelas embarcações, senão mercadorias de menor valor que as comercializadas? Quem notaria ou cobraria uma avaria em seu corpo?
Viajar embalados de um lado para o outro como ciganos anônimos era o seu resignado destino. Os que puderam embarcaram; os que sobraram esperaram. A data de expiração fora prorrogada. E enquanto isso os deixados para trás fundavam raízes em Portugal com seu talento sempre louvado para o cálculo e o dinheiro, sua intimidade com as nuances virtuais da moeda, sua face viciosa, capaz de gerar inflações e levantar riquezas através da sacrílega economia de promessas e juras, modificações do crédito. Séculos de servidão lidando com a contabilidade da casa de fidalgos lhes antecipou a vocação para especuladores, que hoje tanto se aplaude nos operários de Wall Street. Para os cristãos, fazer dinheiro nascer do dinheiro daquela maneira não poderia parecer menos que bruxaria, pacto com o demônio. Explorar o valor do valor, o crédito da moeda, coisa blasfema de anticristos, vendendo a fé que só se deve a deus. Motivos e superstições para odiar Judeus fecundavam.
Os que conseguiram embarcar rumo à África sofreram o peso das humilhações, maltratados como vira-latas indesejados, fretados tal qual um pacote de má sorte forçosamente tolerado. A primeira nuvem de ruins agouros levantou na tripulação o desejo de arremessa-los ao mar. Eram responsabilizados por qualquer empecilho. O que era uma viagem ao continente encostado se transformou em uma ida e vinda interminável, posto que os passageiros ilustres do rei fossem tudo menos prioridade. Submeteram-se a um elenco pródigo de escalas comerciais enquanto seu suprimento pessoal ia chegando ao fim. Como não tinham exatamente o direito a uma opinião, nunca lhes fora dada uma estimativa do destino. E com a resignação e paciência hebraica de quem espera ser desagravado por um deus vingativo, singraram mares pagando caro para comer e beber da provisão dos seus carrascos pilotos. Essa condição se estendeu até o ponto absurdo de desembarcar com apenas a camisa do corpo: um figurino atraente para começar a nova vida em um terreno hostil, não bastando já o estigma do povo execrado – e escolhido.
A notícia do transporte abominável chegou aos ouvidos dos que ficaram e os conformou com a alternativa de se estabelecer em Portugal, como servos. O sucessor de João, o célebre Manuel patrono das navegações, aboliu a sua miserável situação concedendo o benefício dos direitos políticos. Porém, a liberdade não os converteu a cristãos e o povo de Abraão permanecia instanciando as leis como estrangeiros sem raízes, o que seria a sua tragédia até o século XX. Faltava sempre a confiança, o benefício da dúvida, para que lei pudesse ser interpretada da mesma maneira com relação a eles e os outros súditos. Sua presença instaurava essa desproporção na distribuição do crédito social que cativa os pobres e alimenta a impunidade dos ricos, faz escravos mesmo numa democracia. O rei esperava ingenuamente que o apego pela Europa e a terra de Portugal, onde já tinham granjeado riquezas, mais a intimidação dos marinheiros e o conforto de uma terra conhecida, houvesse lhes influenciado ao cristianismo. Subestimou a reconhecida obstinação de ânimo religioso desses herdeiros inveterados do antigo testamento. Não demorou a que, mudando de opinião, Manuel lhes ordenasse a saída do reino. Nem assim ganhou o monarca novos súditos. Os perseguidos infelizes preferiram enfrentar o temperamento imprevisível dos piratas que decepcionar seu deus antigo.       
     Manuel, frustrado, suprimiu dois dos portos assinalados ao transporte dos estrangeiros. Assim radicalizava as consequências da decisão dos firmes circuncisados, os forçando a colher apenas desvantagens dela. E qual a vantagem disso para o rei? Por um lado intimidava mais passageiros, temerosos de compartilhar uma nave pequena com ambiciosos e agressivos animais do mar em um percurso agora ainda maior. Com efeito, alguns judeus, encantados pelos seus próprios tesouros, não temiam nada mais que um saque. Por outro lado, dessa maneira facilitava a execução de seu plano de separar os pais dos filhos menores de quatorze anos, os aglomerando todos em um mesmo cais. O projeto macabro envolvia a possibilidade de recrutar os jovens ao cristianismo em um período mais liberal da educação.  
Novamente fora subestimada a paixão e fidelidade dos banidos. Ou talvez fora superestimada a incondicionalidade do seu amor à vida dos próprios filhos. Cercados pela milícia do Estado, percebendo que lhes roubavam dos braços os primogênitos, por egoísmo e compaixão, essa miscigenação insana de emoções, se lançaram aos fossos do mar junto com os filhos, deixando-se esmagar pelos navios que descansavam rente aos muros do porto. Um espetáculo horroroso de sacrifício calculado, resignado e cruel registrado por Bispo Osório, historiador latino. Poupavam os filhos da violência que não conseguiram impor aos pais, os banindo da própria vida, sentença radical talvez demais para quem não teve sequer opção do livre-arbítrio ante os dilemas sufocantes que acometiam aquele povo de compleição estóica. É como se arrastassem uma lógica maldita: se houvesse algum futuro cristão entre os precoces projetos de homem, os pais não faziam mal em vingar a desonra os chacinando e, a respeito dos firmes moleques que em circunstância normal não negariam as raízes, lhes prestavam o serviço de salvá-los de uma vida imperceptivelmente vivida na fé errada. Portanto, praticavam essa regra fatídica dos pais: decidir sabendo que os filhos lhe agradecerão no futuro. Exceto que nesse caso não haveria ocasião futura de agradecimento, a não ser na outra vida, aquela de felicidade eterna, para onde as almas iriam na condição de não aceitarem o falso Messias, o cristo. Vê-se que o egoísmo dos pais vale fácil por altruísmo.  Finalmente, esgotado o prazo de partida e sem meios de transporte, os Judeus remanescentes retornaram à servidão, condição na qual construíram sua micro-história e sua participação na rede de negociação da liberdade, deixando seu testamento paralelo aos séculos e ciclos de ideias que nós, muito orgulhosos, lemos nos livros e documentos contados pela versão dos vencedores, convencidos de que nasceu tudo de uma peregrinação espontânea do espírito livre da humanidade.
Uma minúscula fração se converteu ao cristianismo. Nunca se pôde acusar hipocrisia à fé e identidade desses assolados.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Montaigne e suas histórias

O autor dos Ensaios nunca pára de me surpreender com o volume inesgotável de contos, sua inclinação para testemunha, registrando causos que vão desde relatos populares até  detalhes de batalhas épicas. Comungando da intimidade de provincianos de feira como da de reis antigos e generais ilustres, Montaigne é o verdadeiro contador de estórias, o pescador do universo filosófico. Com efeito, seria preciso muito ouvido, muito tempo dispensado ao mundo, para colecionar tanto assunto e matéria de sucessos dispersos e desconectados. Talvez não bastassem menos que cinco ouvidos, tímpanos esponjosos para a voz de mais de um mundo, uma vocação extradimensional. E não era o autor o dono exclusivo de uma sensibilidade caótica, como ele mesmo reconhece ao se identificar com um escritor de rapsódias? Mas sobretudo, que fez delas o seu talento, ajudando a parir um gênero literário, uma nova maneira de tabalhar nessa oficina de recortes, cola, costuras de letras, imagens e formas. Sua mais extraordinária ferramenta de espírito é justamente essa receptividade para o fragmentário, sua fecundidade de perspectiva e ubiquidade regional. Quem tem ouvido para tantas vozes não pode jamais ser um provinciano.
E é por isso que muita gente há de ficar cismada, pasma, de ler as pitorescas coisas que esse aristocrata do século XVI tinha para contar. Seu exemplo deixaria sempre um pouco constrangidos esses historiadores das ideias que nos garantem que até o conteúdo da imaginação tem data de vencimento e de nascimento. O que diria, pois, do que tinha Montaigne a dizer de suas formigas? Está documentado em um de seus ensaios que, observando os dois formigueiros sedidados em seu terreno, acompanhou o cadáver de uma formiga do formigueiro A ser carregada ao formigueiro B – o contador não diz nada sobre a morte da conduzida. Em seguida jura ter observado uma comissão de membros do A indo negociar o cadáver, levando folhas e gravetos como um gênero rudimentar de propina para o resgate. Tudo isso é contado sem a menor sombra de absurdo. De modo que fico a imaginar que espécie de sensibilidade e inteligência era essa. Sua interpretação meio louca dos fatos passados no microcosmos de seu quintal deveria ser o indício de uma mente aberta até demais, até o ponto de deixar os pressupostos rigorosos da ciência parecendo preconceituosos e intolerantes.
             Em outro momento soletra a bonita estória de um leão e um desertor, cuja veracidade ele assevera como um caso comum e difundido na tradição popular da antiga Roma. Durante uma das campanhas de César, um soldado mais cheio de espírito artístico que gana de guerra abdicou de sua farda e cargo, fugindo pelo deserto. Seu destino, porém, não foi favorável e uma tempestade o forçou a improvisar pouso em uma providencial caverna onde, despertado no meio da noite, assombrado pela sombra difusa de uma criatura movimentando-se nas trevas, terminou descobrindo em sua companhia um leão enorme . O acuado cavalheiro não tinha para onde fugir, e com surpresa verificou que o felino não o assediava como um prato de boquinha da madrugada. Sua feroz catadura dissolveu-se em uma misteriosa fisionomia de súplica. Aproximando-se como um gato serpenteando a calda amistosa, deu a ele a pata dianteira como uma dama esperando a cortesia de uma etiqueta. Hesitando um pouco, porém sem alternativa, avaliou as condições muito avariadas da pata do leão, vítima de um espinho que havia se encravado com a intensidade trágica de um prego da cruz. O solidário ex-soldado de temperamento sensível cuidou das chagas do leão e, dizem, viveu com ele pelos próximos anos, compartilhando comida e bebida, até que foi capturado pelos policiais do exército que patrulha os rastros dos desertores. De volta a Roma como um cativo, sua sentença era o coliseu. Passou um ano preso esperando a prodigiosa lista de espera para uma audiência pública com o dedo polegar de César. Quando finalmente chegara sua vez de ser comido pelos leões, a platéia histérica do grande circo de horrores romano com surpresa observou que a investida do animal contra o cativo indefeso desembalou inexplicavelmente a apenas um passo de distância de seu almoço. Frustrados em sua ambição de sangue, uivaram contra a clemência audaciosa do irracional, protestando aquela abstinência repentina, aquele arbítrio disciplinado da fome animal. Quem perdoa é só César! Os que morrem na arena apenas o saúdam - aqui acabam seus direitos. Maior foi a surpresa quando homem e animal entraram em uma estranha carreira de abraços e afagos, ronronando um e chorando o outro com a energia sensível de velhos conhecidos que se haviam dado por mortos. A emoção da audiência não podia ter sido maior em um desfecho de Eurípedes, e o grande polegar do imperador se pronunciou virado para o céu, expressando grande entusiasmo e correspondendo ao desejo do povo.  Montaigne conta, com seu habitual tom de normalidade e indiferença, que leão e homem foram libertados e viveram o resto de seus dias de mortais na Roma como dois amigos inseparáveis, verdadeiros retratos de uma fábula impossível, muito estimados e celebrados pela vizinhança como personagens autênticos de um final feliz.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Mais sobre a defesa de uma nova emancipação da filosofia (sobre os efeitos administrativos de um anti-naturalismo)

Existe uma economia geral dos sucessos do conhecimento: consiste na totalidade dos modos como ele valida a si mesmo ou administra recursos de validação, instituindo moedas fundamentais do comérico acadêmico, a saber, paradigmas fundados em instituições universitárias poderosas. Em algum ponto da história esse processo geral tinha pressupostos metafísicos mais nítidos; sua ligação com a religião, com os interesses do Estado, ou simplesmente a sua raíz linguística era mais transparente. A filosofia em todas as suas nuanes foi por muitos séculos a disciplina onde se discutia todas as formas dessa transparência, fosse fundando novas metafísicas, fosse discutindo ideias políticas ou os pressupostos epistemológicos e linguísticos subjacentes a um padrão paradigmático bem sucedido – hoje a Física, a Química, a Antropolgia, etc. Até pouco tempo atrás, a natureza geral da negociação entre a produção de conhecimento e seus instrumentos de validação faziam parte de uma mesma mistura, de modo que não se distinguia ciência da filosofia do mesmo modo como hoje se tornou trivial. Newton fazia um tratado de filosofia natural. O conteúdo das teorias era imiscuído com a semente da especulação filosófica, de modo tão inseparável, que seria difícil filtrar onde terminava um e onde começava o outro. Mas o tempo passou, os próprios filósofos começaram a desconfiar demais de si mesmos e reconhceram sem demora que toda aquele dejeto metafísico não passava de um reflexo objetivo das formas da experiência humana. O positivismo logo se aproveitou de tal constatação, pedindo sem reserva a emancipação completa das ciências. E mesmo agora que não se encontra mais positivistas pela rua ou pelos corredores, a ciência se acostumou tanto com o seu confortável lugar que não admite mais qualquer interferência externa à sua metodologia. Suas bancas e departamentos universitários são verdadeiras máfias a serviço de um paradigma, uma zona de conforto muitas vezes degradante. O naturalismo filosófico predominante nas últimas décadas é reservado o bastante para não defender teses positivistas, mas preserva e protege as suas conquista ao questionar o suposto poder de um método alternativo e alienígena que pretendesse dar regras primitivas – como categorias puras – para ler a experiência e interpretar a cultura, controlando de fora a economia inteira do comércio acadêmico do conhecimento. Isso seria quase como um socialismo! Um despeito, um ataque dos inimigos da sociedade livre. Abaixo à filosofia!  Assim são suas palavras de ordem: “nós cientistas fazemos nossa própria revisão. Não existe lógica, gramática, metafísica ou epistemologia, a não ser a epistemologia consorciada com a nossa própria metodologia. O essencialismo e a analiticidade são mitologias opressoras! Se precisarmos de apoio, temos tudo de que precisamos na própria ciência. Apelamos à teoria da evolução, à psicologia, à psicanálise, até à antropologia. Em último caso, tudo se explica pelas teorias mais gerais da Física, a mãe ciência. Não temos a explicação para tudo, mas não precisamos dela. Revisamos a nós mesmos”. E, no entanto, não vejo hora melhor para atacar esse funesto naturalismo, reivindicando contra ele uma tese administrativa. Não tenho propensão para revolucionário e provavelmente nunca irei me engajar em lutas. O que não me custa a despesa de pedir uma volta da filosofia em versão administrativa, uma plantação severa de instituições que zelem pelo interesse filosófico – regulada por pessoas saídas do curso de filosofia – em todas as camadas da academia. É natural que isso soe falso e um pouco pretensioso. Hoje, no entanto, não vejo nada mais ao qual pudesse aplicar minha energia e estou bastante disposto a me engajar nisso, pelo menos elaborando textos de blog - o que é um início.

sábado, 12 de novembro de 2011

A situação política do departamento de filosofia na universidade


Por filosofia não se entende mais o mesmo que na Grécia antiga, na Idade Média e nem mesmo no século XIX. É verdade que essa disciplina talvez seja hoje mais ou menos como um país sucateado ao qual permitem continuar com o nome, porém não tem mais exército e nem consciência de sua própria unidade. É uma peça de museu conservada por condescendência. Para não aprofundar o assunto, especulo que a perda de sua peça mais fundamental de artilharia foi a causa principal dessa tolerância condescendente com que é abordada nos departamentos da universidade. Que peça? A metafísica. Desde que Kant fez sua cirúrgica incisão nas asinhas dessa – a salvando, porém, do ataque de açougueiro de Hume, que queria comê-la no jantar – é impossível formular as suas questões sem um laivo de vergonha íntima. Quem irá aprofundar os interesses da razão até suas perguntas mais fundamentais, agora, especulando sobre deus, a liberdade, a alma, etc? Ninguém. A não ser os religiosos e seus derivados, que sempre tiveram a vantagem da falta de vergonha.
O projeto de Kant era tão prometedor, limpando o terreno rugoso e ilusório das pseudo-questões, encarregando a filosofia com novas maneiras de cuidar dos interesses da razão, uma função  talvez muito mais nobre como fiscalizadora “Crítica” dos fins da Cultura, que não se podia imaginar – pelo menos à época – que os positivistas o usariam de pretexto para reivindicar a autonomia vingativa das disciplinas científicas! – ciência entendida, agora, pela ênfase no seu caráter tecnológico (o que não é menos verdade nas ciências humanas). E isso, não se enganem, é uma questão apenas colateralmente filosófica. A manobra foi política. As repercussões dessa conquista ainda são sentidas hoje nas universidades: matemáticos, engenheiros, químicos, físicos, antropólogos, cientistas econômicos e sociais, historiadores e psicólogos, gritaram a sua independência e fazem dela o seu proveito político e administrativo - embora os benefícios intelectuais sejam bem mais suspeitos.
Porém, quando se pretende arquitetar, avaliar, julgar e criticar – assim como superar eventuais crises – os resultados cognitivos dessas disciplinas, os seus especialistas tentam sozinhos e a trote de cavalo, com grande estardalhaço de suas ferraduras, aprofundar a compreensão de suas perguntas e problemáticas. Procuram pontos cegos, investigam a história dos sucessos e fracassos, entram no debate da validade e projetam achar os pressupostos epistemológicos e semânticos de sua metodologia. Mas, quando fazem isso, estão justamente cuidando novamente dos fins últimos da razão. Será que estão fazendo infame "filosofia", ainda que como um barbeiro dançando balé? Mas isso é questão de nomenclatura. Chamem como quiser, a verdade é que existe e nunca deixou de existir – mesmo nas épocas de crise mais dramáticas – as perguntas que revelam um interesse da razão com seus próprios fins arquitetônicos mais típicos. Se elas são feitas através de metafísica vulgar, popular, ou através de epistemologia e uma compreensão da bases metodológicas, isso é outra questão. Eventualmente um grande gênio surge nas ciências tecnológicas, como alguns lógicos do nosso departamento saídos do curso de Engenharia, e o seu desembaraço técnico é tão grande porque a sua sensibilidade já ultrapassou desde o começo o paradigma particular de onde nasceu: o seu contato com a ciência já é sempre, também, filosófico, isto é, coincide com um envolvimento radical dos desafios da razão pura – da Cultura - que ele enfrenta. Ele nunca especula no vazio, como os matemáticos sem uma compreensão de número, os historiadores sem uma compreensão de história, os antropólogos com uma versão técnica de homem. Acaba, entretanto, mofando no departamento de Filosofia, embora sem prejuízo de sua celebridade, pois ninguém poderia prestar atenção a ele na engenharia – seu nicho original.
Apresento um quadro exagerado, propositalmente. Na realidade, há mais miscigenação de interesses e intersecção de negociações entre a filosofia e as ciências na universidade do que deixei parecer acima. Principalmente nas ciências humanas, estuda-se muita filosofia e os professores de ciências sociais e psicologia não ignoram essa necessidade. Muitas vezes, ainda assim, sinto como se essa condescendência não fosse uma homenagem, mas uma trapaça: é porque se equilibram em paradigmas imaturos e metodologicamente flexíveis que exploram uma aliança oportunista com a filosofia, de onde retiram apoio ad hoc sempre quando se sentem em perigo. Não é se de se esperar de trapaceiros como esses que, se um dia puderem consolidar seus paradigmas com tanto sucesso como os físicos, vão abandonar sem escrúpulos a sua muleta filosófica? Uma coisa que aprendi é que somente o próprio interessado deve cuidar dos interesses. O interesse da filosofia não será melhor considerado do que dentro do seu próprio departamento, por mais defeituoso, vaidoso, imaturo que seja. Não será preciso que, em uma resposta também política, o departamento de filosofia assuma suas responsabilidades e explore a dependência dos outros cursos com relação a ele? – pois é óbvio que essa dependência existe, mas por não ser explorada, ocasiona esse festival febril de besteiras intelectuais frequentes quando um químico, um historiador e um antropólogo se aventuram a criar e especular com mais ousadia sobre o próprio campo.
Ora, os cursos técnicos e científicos em geral mudam a sua abordagem quanto mais se tornam acadêmicos em sentido estrito, isto é, quanto mais escalam os compartimentos institucionais da academia, indo para o mestrado, o doutorado e a carreira universitária. Essa mudança de abordagem é proporcional a um gradual acréscimo de dependência e imaturidade, pois é deste momento da escada em diante que vão deixando o terreno seguro de seu paradigma e se expondo ao mundo da cultura e dos conflitos da razão em sua expressão selvagem. É natural: quanto mais o interesse técnico declina em favor de um interesse puramente cultural, mais inútil se torna tudo o que ele aprendeu. Nesse momento aparece claramente a dependência com a filosofia, que os filósofos de hoje – maus políticos, coitados – não exploram.

Naturalmente, para quem quer sair da universidade e correr para alguma empresa ganhar dinheiro de verdade, não precisa se preocupar com isso. Mas para quem almeja seguir a carreira intelectual, deveria – e muito  - considerar tal preocupação,  e se não o faz, é apenas por ausência de pressão de quem deveria lhes pressionar. O departamento de filosofia deveria de uma vez por todas assumir a sua responsabilidade na liderança da Universidade; e deveria meter o nariz com uma impertinência épica em todos os outros departamentos, plantando fiscalizadores que selecionassem com o rigor devido a ambição de ser “doutor”, ou philosophical doctor. Esse projeto levaria os filósofos a serem os legítimos chatos da universidade, a pedra no sapato monumental de todo cientista medíocre que almejasse ter um título gratuito de doutor no seu currículo. Não importa. Se a responsabilidade não for deles, será de quem? Não há outros mais interessado nem mais imbuídos com a responsabilidade de salvar a cultura do interesse mesquinho, seja do dinheiro, seja da simples vaidade gratuita de pseudo-intelectuais com sede de títulos.
A sociedade não precisa de tanta gente instituída na academia. Se quiser ser doutor filosófico (Phd), é preciso saber aprofundar filosoficamente as questões de sua própria disciplina, tratar com desembaraço suas questões, entender a raiz e se expor aos desafios mais elevados da Cultura. É preciso mais que isso: pagar tributo a quem pensou a nossa cultura de maneira mais radical: Platão, Aristóteles, Kant, Frege, etc. É preciso passar pelo crivo Crítico. Se não, há sempre uma opção: sair na graduação e render seu tributo à sociedade com seu trabalho. É tão digno quanto. Esse projeto parece inviável? Sim, mas apenas porque o departamento de filosofia tem uma tradição de docilidade e inofensibilidade marcante. Um conjunto de investidas, debates, meteção de nariz, nos levaria direto para uma posição estratégia na estrutura acadêmica, e não deixaria nenhum curso fora de nossa abrangência. Acuados, tentariam se defender apelando para recursos técnicos, e assim acusariam mais ainda suas fraquezas, mostrando que são tão competentes quanto pedreiros intelectuais, operários de ideias, como Quasimodo em Notre Dame: sabe tudo dentro de sua igreja, mas lá fora é como um tubarão em poça d´água. Pode parecer utopia, inviável do ponto de vista financeiro, mas eu penso que não: é mais fácil do que se pensa. Quem já viu a insegurança dos professores dos outros departamentos toda vez que um filósofo está presente na banca, sabe pelo cheiro de medo que a universidade não esqueceu essa dívida remota, e teme mais que tudo uma cobrança. É hora de cobrar. E não se trata de poder pelo poder: é questão de responsabilidade, dever; reassumir a posição que lhe convém como guardiã da cultura.


Apêndice

Agora uma questão técnica. A dependência entre as ciências e a filosofia parece ter uma estrutura simples, principalmente quando lemos teorias como a fenomenologia de Husserl e os projetos epistemológicos de Carnap. Mesmo as teses de Quine, que relativizam enormemente a força dessa dependência, clamando inclusive por uma naturalismo que enfraquece a influência da filosofia no pastoreamento das ciências, mesmo essas teses apresentam um quadro por assim dizer simples. Chamo-lhes de simples pois tratam a coisa teoricamente e não investigam a distribuição política das vozes envolvidas no diálogo moderno. É preciso entender que na universidade hoje há departamentos cujos alunos e professores que nunca estudaram  sequer uma página de metafísica e epistemologia que, não obstante, sofrem a influência invisível de pressupostos não científicos. Como não sabem o que esperar deles, os mais inteligentes arrumam um jeito de agregá-los à sua rede teórica como se fossem da mesma natureza que todo o resto. Não fazem a separação entre filosofia e ciência. Isso leva a pensar que, na prática, a estrutura da negociação entre ciência e filosofia é bem mais complexa do Husserl, Carnap ou Quine deixam transparecer. No fundo, mesmo sem terem uma ideia dessa negociação, a prática a agrega e a torna invisível. Ora, a minha questão é, portanto, prática e segue para a política. Os autores mencionados deixam justamente de estudar a influência que a omissão ou a ação política tem no desenrolar desse diálogo. Por isso a minha proposta nesse post não é teórica. Não venho aqui sustentar um anti-naturalismo, um anti-positivismo ou uma volta aos preceitos Críticos de Kant. Venho na verdade defender que existe um espaço de negociação político que simplesmente não está ocupado: o dos filósofos. Ora, não seria preciso plantar autoridades institucionais para justificar a voz essa parte da discussão que, por falta de imposição, está calada? Acredito que, embora se saiba obviamente que um país de terceiro mundo tem influência sobre o sucesso de um de primeiro mundo, essa interdependência se torna invisível e irrelevante se não se criam vozes políticas, entidades institucionais (a ONU, etc) que zelam por seus interesses. É o mesmo que acontece com a filosofia hoje na universidade. Por algum motivo o filósofo se resignou com seu lugar subalterno. Mas eu acredito que com um pouco de "meteção de nariz", estaríamos claramente no centro da azáfama e, até mesmo, no lugar de liderança da universidade. Obviamente a dependência das ciências com a filosofia é bastante fraca na graduação dos cursos; mas, como eu disse em cima: quanto mais sobem os cargos, mais essa dependência começa a ficar visível e, acredito, é nesses pontos que quem sai do departamento de filosofia deveria cravar suas unhas e assumir um pedaço da fatia de voz. Para quem acredita que estou sendo muito ambicioso: ora, isso é uma tese administrativa! Obviamente, gênios que não precisam de universidade, autodidatas de elite, esses não precisam se subordinar a medidas administrativas que servem justamente para distribuir o policiamento intelectual e garantir - para os não gênios - um padrão de aproveitamento intelectual. Ora, um autodidata genial incluiria maneiras de reproduzir o diálogo entre a filosofia e a ciência dentro de si mesmo. Já na academia, é preciso criar, impor e até lutar pelo lugar no diálogo. Nesse nível administrativo, meu projeto é tão viável como o que está em vigência hoje: a liberdade irrestrita de pseudo-cientistas e a omissão filosófica. Portanto, não sustento aqui uma tese epistemológica sobre as maneiras como um autodidata ideal acumularia conhecimento. Minha tese se aplica à estrutura administrativa da universidade e a alunos e professores que se utilizam das garantias e regras acadêmicas para otimizar a produção de conhecimento.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

“Quanto mais conheço os homens, mais estimo os animais.”


 “Quanto mais conheço os homens, mais estimo os animais.”. Esta não é uma frase de que me posso gabar, não me pertence. Mas seu revestimento e efeito perfumado levam a julgar que o seu autor, Alexandre Herculano, não a construiu para guardar com direitos autorais, mas para vê-la gravitando de boca em boca sem fiscalização. Deixando-lhe intacto o mérito como epigrama espirituoso, empresto aqui o poder sugestivo de sua sua imagem e ajudo a propagar o seu resíduo semântico, seu célebre "significado", acrescentando com modéstia a sutileza furtiva de uma versão da minha própria boca - mais o assentimento e apoio de minha própria sensibilidade.

 

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A discussão da racionalidade e os animais (não humanos)

Em um de seus polissêmicos ensaios dizia Sr. Michel de Montaigne, o aristocrata francês lendariamente encerrado em sua torre, que como nós, os animais não humanos são dotados de paixões, sentimentos de solidariedade e mesmo a capacidade de inferir. Entre um de seus exemplos, recitava o do célebre cachorro que, tendo de escolher um entre três caminhos para perseguir um criminoso, precisou cheirar apenas dois para decidir-se pela terceira – e não farejada – rota. O comportamento do cão ilustra o uso de uma forma de tirar conclusões de premissas. Imediatamente surge a ideia de que o bicho não está preso a representações parciais e contingentes do instinto, mas pode explorar padrões de generalidade, abstraindo o conteúdo da representação. Dessa ideia alguém poderia sugerir que desvalorizamos os cães. Mas Montaigne é um ensaísta cínico e por mais apreço aos animais que tivesse, suspeito que estava menos interessado em aumentar-lhes o valor que em humilhar a nossa vaidade de “animal racional”. Confesso uma inclinação a compartilhar com ele deste interesse. A lógica é superestimada: o modo como formalizamos um argumento não necessariamente corresponde a um padrão de economia imutável, um reino ideal de arquétipos. Há provavelmente sempre mais do que uma maneira de resolver o mesmo problema e ainda quando há uma mais econômica solução – a mais lógica – há outras maneiras de se formular o problema que a tornam um pouco menos fundamental. A nossa concepção egoísta de racionalidade provém dos quebra-cabeças que nos impomos e, é preciso dizer, o homem foi até hoje um mestre pelo menos em construir labirintos particulares capazes de limitar sua experiência a um padrão de formas fixas. Quem não sabe “ver” dessa maneira é tido como burro, ou irracional. Vão mais longe e dizem: lhe falta espírito, lhe falta deus. Mas o que é deus senão a invenção metafísica que expressa o crédito total de um tipo de experiência? Com essa ideia  o homem fecha o círculo de sua experiência e a glorifica finalmente como Cultura. Pode parecer difícil sair desse círculo e abri-lo a outras espécies. A própria natureza dos órgão vocais, a incapacidade de articulação linguística, parecem desafiar essa ambição. Isso não significa muito, entretanto, uma vez que a mera presença de um gato ou um cachorro dentro de uma casa automaticamente o investe com uma espécie - ainda que pouco pronunciada - de papel subjetivo; muitas vezes o papel dominador. Quem permanece voluntariamente surdo à voz dos animais no mundo, com ou sem verbo, logos, forma, não passa de um procrastinador, muitas vezes oportunista.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Sr Pablo Neruda e as reflexões que ele me inspira

Sr Pablo Neruda é outro grande escritor que me ajudou a sedimentar a confiança em uma das teses diletantes que acalento com mais carinho. Porque é uma tese, e porque digo que é minha, não se segue que é original. A presunção da originalidade é só uma expectativa serpentina, que serve para desanimar as ambições modestas. Dar o crédito a quem falou primeiro por um lado é impossível e, por outro, enganoso: isso acontece porque a ideia foge do autor e tem a peculiaridade de se expor ao acesso por meios intuitivos independentes da sensibilidade particular de um único homem. Lembremos que pirâmides foram construídas no Egito, mas também no México, embora seja difícil de acreditar que o paradigma cientifico de um único homem tenha ensinado e orientado os preceitos da edificação de ambas – a menos, obviamente, que algum genial ET tenha escrito uma geometria mais fundamental que a de Euclides e divulgado pelos quatro cantos da terra nas eras antigas.
Mas vamos à tese. A prosa (sim, não a poesia) de Pablo Neruda é um verdadeiro milagre da forma, que realmente eleva a literatura ao estatuto de beleza atingido pela pintura e a faz rivalizar com a própria música. Isso me leva a pensar que a linguagem é uma arte de imagens e que a estrutura primitiva das combinações simbólicas não obedecem a um padrão gramatical fixo e nem a um esqueleto lógico canônico. A tradução entre as línguas naturais não se dá pelo emparelhamento justaposto entre sintagmas, proposições, sentenças, etc. Se dá, quando se dá, pela possibilidade de, através de símbolos, lapidar as margens da paisagem intuitiva, selecionando regiões da experiência e dando a povos diferentes, diferentes visões. 
O que lamento é que os gramáticos já tentam (há muito tempo) subsumir essa maneira improvisada e livre de distribuir o peso e graduar a substância do visível, praticado por mestres como Neruda, a regras de sua ciência de velhos enrugados sem criatividade. Fazem então um inventário do que chamam de “imagens do estilo”, as metáforas, metonímias, eufemismos, hipérboles, etc. Assim as tratam como anomalias cobertas pelo seu complexo de regras, inofensivas se utilizadas nos limites da licença poética. Isso pode ser muito útil para cientistas da língua sem talento e nem emoção, porém, esconde a perspectiva do fato de que a essência mesma da língua está aí (e essas imagens não são, portanto, um conjunto de exceções usadas por boêmios ociosos e poetas): a sintaxe outra coisa não é que a distribuição de peso pela estrutura seletiva que administra a relevância significativa. O vem depois é semântica - mas os dicionários são um feto tardio, completamente dependente do pai sintático que lhe nutre, lapida e decide a forma. Esta predominância da sintaxe sobre a semântica está presente tanto nos hieróglifos que combinam imagens de homens com bicos de papagaio, até na linguagem do cinema, que seleciona os ângulos para marcar o passo da argumentação narrativa. E isso não é uma simples questão de imaginação gratuita; mas sim de estilo. O estilo disciplina a imaginação. 
Ora, de que outra maneira isso seria feito melhor do que pelo modo de Neruda e Guimarães Rosa? São os mestres do estilo os verdadeiros pais da cultura, os juízes das perspectivas e inclusive da ciência – que só surge depois, como um corolário da metafísica e sua respectiva tentativa de colonizar a linguagem ordinária, lhe roubando a riqueza e a ambigüidade enquanto a torna rígida e precisa até o limite do matemático. Porém, mesmo os cientistas se enroscam com suas ambigüidades periódicas, e novamente são os bruxos do estilo que vêm para lhes salvar.  
Essa é a tese que sustento, que não é lá muito original, mas não importa: pois embora me ocorra o nome de um ou dois autores que lhe dariam suporte, não sei até onde esse suporte seria integralmente tolerante como é o amor de mãe e prefiro, dessa forma, ficar com a responsabilidade do que digo toda para mim. Quanto ao mestre Neruda, que me inspirou essa postagem e reflexão, vai aí uma citação que mostra a voracidade de sua criatividade estilística e a abismal energia de suas imagens. É uma tradução para o português, mas a construção não perdeu muito. Trata-se de um prefácio a Juan Rejano, onde faz uma homenagem a este cujo teor eu, coitado, gostaria de imitar para fazer a ele:
“Quando se refizerem as medalhas destruídas pela noite pestilenta destes tempos, só malferida pelas marcas valorosas da batalha espanhola e da eslava, recolheremos entre lodo e cinzas as lágrimas desta poesia, sua cauda de cristais, de tal maneira que estaremos orgulhosos pensando como passou a gaivota deixando uma estrela de platina sobre o céu escuro da tempestade terrestre, e escarvaremos essa minuciosa moeda,  flagrância estrita e esplendor, como um documento de antigos heróis, de muita idade, de muita aflição, de muita primavera também: sonetos, canções, edificados na pedra fresca do tempo ensangüentado. (...) Esta poesia não começa: havia um expectante lugar em nosso idioma para a sua diamantina estrutura.”(Neruda, 2002. P. 27)
E não haveria um lugar expectante na cultura também para as ondas de tons subsistentes propagadas por Pablo Neruda?

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O antídoto da filosofia

               O caráter dogmático, perseverante, radicalmente abismal e dramaticamente insolúvel das aporias filosóficas que vigem no mundo desde os gregos – e que talvez encontrem um ou outro análogo circunstancial nas doutrinas orientais como o budismo (e outras com as quais não sou familiar) – por mais que também a mim irritem profundamente, têm a seu favor pelo menos um indisputável fato: são as que mais afiadamente penetram a estrutura das questões e problemáticas. Matem-me também antes de me incomodar com a barba e as unhas ancestrais que não param de crescer no interior das tumbas dos grandes e milenares filósofos: Platão, Aristóteles, Kant, etc. E eu serei o último a mudar meu voto pela não exumação de seus cadáveres! Deixemo-los lá, aproveitando o sono da sesta irreversível. Mas, quando vejo como se debatem os professores e especialistas para entender sua própria época, repetindo fórmulas e sem a mínima compreensão de como administrar o envolvimento pessoal com os problemas, não tenho dúvida: ressuscitem os filósofos! Já é tempo.  Se possível, treinem novos filósofos, ou alguma espécie ligeiramente equivalente a eles adaptada aos novos tempos.
                Não prego aqui nenhuma anacrônica volta a questões muito cerimoniosas, como a do ser, de deus, da alma ou da liberdade. Refiro-me ao fato de que hoje a grande massa de acadêmicos e pretensos críticos não sabem senão repetir jargões desgastados, que já perderam há muito tempo qualquer vestígio de conexão com uma região da experiência. Já não afetam o homem, e este já não sofre por elas, não as compreende intimamente e não as integra à sua vida, de modo que não passam de passatempo de jornalistas e de acadêmicos ociosos.
           É normal culparem-se os bancos, o governo, ou o sistema econômico, pela atual crise. Mais de uma vez, no entanto, os analistas procuram definir melhor os fundamentos doutrinários que solidificam suas interpretações. Essa "descida aos primeiros princípios" não vêm com a carga de uma curiosidade metafísica, mas simplesmente o interesse, muito comum, em incrementar a credibilidade de suas teorias. Tenta-se achar, assim, o fundamento das leis econômicas e, como num círculo ao infinito, culpa-se então a psicologia de massa e, com diferenças na margem de atraso, chegam enfim à sociologia. Ou apelam para o conjunto misterioso de pressupostos – econômicos, psicológicos, metafísicos, etc – contidos na famigerada palavra “capitalismo”. E todos vão muito satisfeitos de terem entendido os mecanismos da inflação, enraizados em valores subentendidos na moral ou em erros institucionais, como o sistema bancário. Todos sabem tão firmemente a solução que o verdadeiro escândalo é, de fato, o problema nunca se dissolver. Já vi até mesmo dizerem que o problema é o papel-moeda, pedindo pela anulação dessa nefasta instituição: como se o problema do tempo, da historicidade da experiência, e todos os outros dos quais o dinheiro não é senão uma expressão circunstancial – na medida em que através dele administra-se justamente o atraso e o adiantamento das negociações humanas – pudessem magicamente sumir se alguém resolvesse voltar à instituição do ouro (ou à troca de mercadorias). 
                E a advertência que lanço aos últimos ingênuos, a lanço também aos preguiçosos intelectuais que usam o “capitalismo” como recurso metodológico ad hoc para explicar seja a regra, seja a anomalia. São posturas diferentes, mas a ingenuidade é a mesma, provém da mesma raiz. Naturalmente, não me refiro aqui ao gênio de K.Marx que, por bem ou por mal, pertence ao gênero dos filósofos aludidos no início desse post, e vinha de uma problematização radical e filosófica da economia – herdada de Hegel – que os economistas, sociólogos e historiadores de hoje não conseguem, malfadado esforço de cegos, sequer começar a visualizar. 
                  Nesta impossibilidade, comum aos mais dispersos setores acadêmicos – inclusive o departamento de filosofia – encontra-se a primeira fase da cadeia de obstáculos que precisa ser superada: a cegueira completa do cientista, do acadêmico e do pensador (mesmo o cronista e o boêmio) moderno a respeito da raiz filosófica subjacente a suas crises metodológicas. Enquanto a ciência carregar esse ar doce, esse sorriso infantil no rosto plácido, todos estarão sujeitos à opressão das teorias técnicas e suas soluções oportunistas e ocasionais, válidas até onde vai o paradigma. Mas a reconciliação da ciência com a problematização da metafísica, do alcance da razão, é justamente a reconvocação da problematização filosófica, e fico em dúvida se para isso temos saúde. Para isso dependemos de um novo filósofo, uma espécie de modesto messias. Permaneço em dúvida sobre se é possível treinar as próximas gerações para não serem estultos – como nós ficamos.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O caso (nunca encerrado) do Naturalismo

Nós, homens, invariavelmente ficamos velhos e com a velhice, moderamos nossa opinião. Porém, nem sempre é saudável guardar cancerigenamente um juízo que anseia por sair radical e pesado, com a força incidente de uma pedrada. Há algumas vertentes teóricas vivas atualmente que chegam a gastar o fundo do bolso da minha paciência, principalmente porque guardam um ar pacífico e descansado, como se houvessem arrumado ingresso para alguma Shangri-la ficcional muito disputada. Na verdade, são versões novas do famigerado naturalismo. Ademais, porque são baseadas em desencaminhamentos de leituras, pecado que só os leigos têm a desculpa de cometer. A nova discussão da neurociência a respeito de problemas como o da “consciência” e do “espírito” é o exemplo disso. Arrumaram um jeito de reavivar essa discussão milenar, e com ar muito satisfeito de quem tem um ponto de observação privilegiado – proporcionado talvez pelos progressos da ciência – acreditam que podem por um golpe de tinta ou da tecla “enter” decidir e resolver esse que, mais que um problema, é um embaraço metafísico insolúvel. As críticas que poderia fazer a eles são muitas, mas, francamente, não acredito que eles mereçam a homenagem de uma discussão moderada e séria. Isso diminuiria a pedra de escândalo que eles representam. Basta lhes lembrar Tolstói, em uma citação que já usei para outros propósitos nesse mesmo blog: “Não há alma nem liberdade, porque a vida de um homem se traduz no movimento dos músculos e os movimentos destes estão submetidos às atividades dos nervos. Eis o que dizem, escrevem, imprimem sem suspeitar que há mil anos todas as religiões e todos os pensadores não só reconheceram  como nem sequer se lembraram de ter negado essa mesma lei da necessidade que com tanto zelo tratam de demonstrar agora por meio da fisiologia e da zoologia comparadas. (...)A pergunta de como se pode concordar a lei da necessidade[natural] com a lei da liberdade [cultura] não pode resolver-se através da filosofia nem da zoologia comparadas (...) Os naturalistas e seus adeptos que esperam resolver esse problema fazem-nos lembrar pedreiros a quem tivessem mandado rebocar um dos lados da parede de uma igreja e, aproveitando a ausência de contramestre, num excesso de zelo, rebocassem as janelas, as vigas, as imagens e as paredes (Tolstoi, Guerra e Paz, 2007, p.1466/67).” O tom do autor me agrada enormemente, pois não se humilha a um diálogo de igual para igual, e mantém a altura, tratando de ridicularizar e expor o que é ridículo. Eu, de minha parte, não almejo mobilizar uma campanha para que cientistas fossem estudar livros de metafísica, ou pelo menos sobre a história da epistemologia. Não, nem iria tão longe. Seria mais fácil apenas apontar para o fato de que, quando um neurocientista escreve um tratado reducionista e naturalista defendendo que “a cultura e a consciência não passam de secreções do cérebro”, esquece a obviedade de que essa mesma teoria científica – elaborada por uma lógica e uma metodologia – são produtos da consciência e da cultura e, portanto, seguindo sua mesma regra, são redutíveis a “secreções do cérebro”. Ora, fiel à mesma regra, o seu próprio livro e todos os seus artigos acadêmicos não são senão “secreções do cérebro”, e sua contribuição cultural e acadêmica é nula como a nutrição de um vegetal. Por que, então, o "pequeno gênio" se dá o trabalho de escrevê-las, pensá-las, examiná-las e avaliá-las? O fato de que ele a escreve conscientemente e com uma pretensão de verdade, com uma lógica e um valor metodológico, entra em direta contradição com sua própria tese. E vamos mais além: todas as leis neurológicas retiradas de princípios mais firmes de outras ciências mais abrangentes, como a Biologia, serão, por essa lógica profana, meras secreções do cérebro – sem valor teórico, lógico, metodológico, cultural.  Supondo que algum ousado realmente estivesse disposto a defender a teoria de que todas as teorias, inclusive as da Biologia, estão submetidas a leis naturais - por exemplo, as da evolução - ele deveria ser capaz de explicar como a própria teoria da evolução escapa a essa regra, ou expor a que nova regra natural a teoria da evolução se subordina, o que o levaria a uma regressão ao infinito. O naturalismo científico tem uma semente de estupidez, embora seus defensores não sejam estúpidos e nem vegetais, e a pior ramificação desta é a cegueira, a ausência de desconfiança geral desses cientistas a respeito da atitude filosófica que eles mesmos incorporam e pressupõem para investir crédito metodológico em seus paradigmas. Oscilam entre uma ingenuidade dogmática e um cinismo cético, mas escondem isso de si mesmos. E veja que aqui nesta crítica não incluo o brilhante (dessa vez sem ironia) Quine, que no seu naturalismo não é ignorante da discussão filosófica em que está inserido e nem descuidado quanto ao terreno dramaticamente lamacento da metafísica que está atravessando. Além disso, Quine escapa à redução ao absurdo pois é um holista, e fica alheio justamente de uma teoria natural - como substituta de uma epistemologia fundacionista - que tentasse explicar a natureza e o caráter de validade das outras ciências. Refiro-me a uma classe remanescente do positivismo, que ainda ganha nobels e tem prestígio acadêmico, embora sejam vítimas de um simples desencaminhamento teórico de calouros. Nesse assunto, por sinal, mesmo os religiosos estão mais avançados que os naturalistas e podem olhar os seus erros de cima, com pena e ironia. O que disse aqui, selecionando a neurociência como alvo, vale com o mesmo tom para o reducionismo psicológico, antropológico, e daí por diante.E agora algum malicioso poderia perguntar-me: "Lucas, você acredita mesmo que existe um mundo platônico onde as ideias competem, concorrem, se refutam e verificam, complementam e solidarizam, movimentando a cultura e a história? Acredita que existe em nós um órgão capaz de localizar as essências, o mito do 'olho do espírito', acessível àquele que vive a retidão moral e a pureza espiritual?" Ora, obviamente essa pergunta é para me pôr em embaraço. Não acredito em nada disso, mas sei que essas estão entre as questões insolúveis que fazem parte da inclinação inevitável da razão à metafísica. E sei que, a experiência dessa reincidente tentação a se colocar questões impassíveis de resolução, isso, sim, NÃO é uma secreção do cérebro. Nossos problemas existenciais definitivamente não aceitam o reducionismo: a "experiência" é e sempre será um mistério, mais fácil de ser elucidada pela literatura e a poesia que por um microscópio de laboratório.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Mais um gole no antídoto da filosofia

 No meu último post discuti a possibilidade de que enfim existe algum uso, algum bom proveito que justifica a propaganda da filosofia e redime a existência daqueles extintos homens da Grécia antiga, cujo exemplo fundou essa espécie insensata e meio fora de estação de pensar, como um pensamento que explora os feriados mais que as ocupações do dia útil. Chego a pensar que fui exageradente severo com essa disciplina nas minhas épocas de graduação. Porque, afinal, sem essa última nos sobraria entrar na briga por algum dos lados do falatório científico, acadêmico, jornalistico, etc, na perpetuação de uma discussão sem fim cuja estrutura de réplicas se vê em toda parte como na intriga entre religiosos e cientistas. E também porque nunca deixaríamos de estar expostos ou ao policiamento das tradições, ou às escavações de revisores e reformistas ávidos por dar novas direções – nova base e fundamento – à história e à verdade. Quando não fossem pirâmides, viriam com boas evidências de vida extraterrestre. Para fugir do barulho desse zumbido célere, que maliciosamente disputa o respaldo consolador da ciência, que outra melhor maneira que adotando a regra dos “pretensos” sábios de outrora? Que melhor maneira do que suspendendo o juízo para os assuntos pelos quais se mata e se morre, reconhecendo neles o seu caráter supérfluo, o vazio circular do vício metafísico - a mesquinha ambição de verdade - que os cerca? Mesmo a versão enfraquecida, adoecida, do filósofo de hoje (seja o epistemólogo, o pragmatista, o semântico) consegue por meio de sua orientação formal discutir o assunto pela porta de fora, não, de fato, por cima ou por baixo, mas pelo menos paralela e independentemente. E já é melhor que nada. Estão mais próximos de entregar-se – como num protesto – à ociosidade do pensar. Seja como for, também para isso não é preciso seguir o exemplo da Filosofia. Para administrar o vazio e a angústia sem abandonar as palavras, talvez melhor modelo de entorpecimento nos dê a poesia, esse silêncio cantado, onde o emprego do discurso vem despido de doutrina e especulação.

domingo, 21 de agosto de 2011

Sobre a suposta 'Treta' entre o homem religioso e o científico



Esse post nada mais é que a exposição de uma curta coleção de oportunas citações. Oportunas com relação a quê? Como resposta a uma nova campanha de inteligência estreita que vai singelamente, com um ar de modéstia e indiferença, reivindicando um arrogante valor de triunfo. Comportam-se com a condescendência de quem ensina crianças, e, no entanto, ninguém sabe por que estão sempre tão incomodados e cheios de energia impaciente para responder ao que eles consideram tão inferior. São compostos de filósofos, cientistas e acadêmicos de todas as espécies. Sua origem é pródiga, porque nascem de um pressuposto de linguagem, um modo específico de falar, pensar, dialogar. E não me atrevo a indicar-lhes um nome abrangente, porque assim correria o risco de errar por generalização. Mas sei e não omito que são pacientes de uma das certezas do nosso tempo, que já dura e amadurece em versões cada vez mais confiantes e temerárias desde o século XIX. Estão em todas as partes, são desde criadores de stand up comedy até cientistas renomados, e, ainda com facilidade, se espalham pelos degraus menos prestigiados do grosso populacional. O característico no seu comportamento é um sentimento coletivo de inteligência que eles compartilham, dividem entre si, aquela complacência de quem sabe alguma coisa a mais. A irreverência é uma das suas armas, e eventualmente chegam a explorar esse talento tão bem que encantam. Para fazer-lhes justiça é preciso dizer que são engraçados e perspicazes, o que não muda o fato de assim vingarem-se do fato de serem muito grosseiros para abordar temas e problemas que ultrapassam os seus limites. Mas “de que serve hábeis sabichões e inábeis e honestos empíricos e mecânicos forçarem uma aproximação, como hoje é tão comum, tentando penetrar com ambição plebéia essa ‘corte das cortes’?” (Nietzche, 1998, p.121). Como lhes falta toda sutileza, adoram chutar cachorro morto, pois ali eles brilham: ridicularizam as pessoas religiosas, que são alvos fáceis e não podem se defender senão com sua fé ou com argumentos muito toscos. Ora, o que eles definitivamente não entendem na natureza do homem religioso é “quanta sabedoria existe no fato dos homens serem superficiais”. O que leva o homem a adotar uma interpretação religiosa da existência é justamente o “temor daquele instinto que pressente que não é bom ter a verdade cedo demais, antes que o homem se tenha tornado forte, duro e artista o bastante” (Nietzsche, p. 62). É forçoso reconhecer então a que instinto esse homem sarcástico e risonho obedece. Isso é simples, ele mesmo não esconde: é o instinto à verdade. É nesse envolvimento com a verdade que se situa a sua sensação de superioridade. É, porém, nessa mesma sensação que reside a sua falta de elevação, que se denuncia a sua guerra ao sentimento artístico, à máscara, ao flerte da cultura com o mundo natural. Nas suas econômicas leis usadas para ligar todas as cadeias de fatos em uma explicação global esconde-se a sua própria maneira de abstinência, a sua não-religiosa forma de limpar o mundo de sua beleza e abundância: “A esses pesquisadores compete tornar visível, apreensível, pensável, manuseável, (...), abreviar tudo o que é longo” (Nietzsche, 1998, p.118). A obsessão com a verdade é, antes, “a fé em uma valor metafísico, um valor em si da verdade”. (Nietzsche, Genealogia da Moral, 2007, p.139). É com a fidelidade a esse sentimento, que trás consigo o orgulho infantil de pertencer ao grupo da humanidade que usa a lógica e a razão, que evolucionistas hoje mostram as armas contra os cristãos, em uma vergonhosa luta que se assemelha a um jogo de futebol de crianças de doze anos, onde todas correm ao mesmo tempo atrás da bola e deixam o campo mal distribuído e a povoação dos pontos essenciais desmarcada. Confiam na aleatoriedade das direções da bola para marcar um gol por acaso; e não raro não sabem distinguir quem é do próprio time e quem é do outro. Pouco escandaliza que marquem gols-contra com frequência. Essa disputa recicla uma guerra antiga em que nem todos foram ainda vingados e é de supor que existe muita amargura, repressão, desejo de desforra escondido aqui. Afinal, cientistas foram queimados, amordaçados, calados. Se nos atermos a esse desejo de vingança e a essa animosidade infindável entre o homem da batina e o curioso experimental, portanto, não vamos chegar a lugar algum. Desviarei a atenção para uma única passagem veemente e espirituosa de Tolstoi, onde este arrebatou toda essa enferrujada discussão, em que não se sabe bem o que se disputa, e a vitória não tem valor nem prêmio a não ser uma satisfação narcisista e uma vingança mesquinha. Porque, afinal, além desses despojos emocionais, o que ganha um biólogo ao refutar um religioso? Será mesmo que o último é uma ameaça ao primeiro? Será que eles, de fato, disputam o direito da mesma coisa? De forma alguma. Aqui não temos senão uma confusão de esferas de investigação. Citemos o russo: “pois o fato de que, do ponto de vista da observação, a razão e a vontade não passam de secreções do cérebro, e o homem, seguindo a mesma regra, pode proceder de animais inferiores num remoto período de tempo desconhecido, não faz mais que explicar, por um lado novo, uma verdade não disputada a milhares de anos por todas as religiões e todas as teorias filosóficas... Que os homens descendam do macaco num remoto período desconhecido de tempo é tão compreensível como o fato de terem sido formados de barro num período determinado (no primeiro caso, x é o tempo; no segundo, o processo).” (Tolstoi, Guerra e Paz, 2007, p.1496 – [essa numeração parece, mas não é uma data!]). A mágica dessa citação é mostrar como é supérflua a disputa que hoje se faz em torno dessas infames polêmicas. Tão supérflua que a vitória de um lado não dá recompensa nenhuma, nem prova nada contra o outro. A desmistificação da crença nessa diferença entre ciência e religião precisa ser encorajada porque, apesar da aparente facilidade da demonstração de sua inutilidade, ambas ainda se combatem hoje acirrada e inflamadamente. Já passou da hora de ver que a ciência não é antagonista do ideal religioso, e nem o ideal religioso antipatiza com o ideal científico. Ambos convergem com relação ao destino perseguido, a saber, o ideal ascético, de redução, negação do que é grande e abundante; abreviação e economia de explicações. A relação da ciência com “o ideal ascético [da religião] não é antagonística em si, ela antes representa, no essencial, a força propulsora na configuração interna deste.” (Nietzsche, 2007, p. 141). De fato, não nos enganemos mais sobre a dependência nítida que a ciência tem de formas mitológicas de orientar a formalização de sua verdade, maneiras de enriquecer os seus pressupostos, sem os quais ela restaria sempre exposta e frágil, à beira da falência de seu crédito hipotético. Toda forma de metafísica, popular ou acadêmica, é uma maneira de antecipar a verdade com um molde subjacente, fortalecendo e adaptando o homem e a cultura para o seu acolhimento.  “Não existe, a rigor, uma ciência ‘sem pressupostos’, o pensamento de uma tal ciência é impensável: deve haver antes uma filosofia, uma ‘fé’, para que a ciência extraia dela uma direção, um sentido, um limite, um método, um direito à existência.” (Nieztche, 2007, p. 139).

terça-feira, 17 de maio de 2011

Vai aí uma apresentação técnica da minha dissertação (já que ninguém foi à defesa). Não tem nada de muito atraente, mas assim como ser feio nunca foi motivo para alguém ficar em casa sábado à noite, também eu não tenho pretexto para não publicar minha apresentação num blog, por indiscreto que isso seja. Acredito que a modéstia é um luxo de quem já tem fama. Aos coitados como eu, não há vergonha alguma em fazer uma auto-publicidade. Arrogância seria pressupor que ninguém poderia fazer um uso, às vezes melhor do que eu mesmo, disso aqui; afinal, é o temível Kant, explicadinho em miúdos. Alguém pode fazer proveito. Depois, o blog é um bom jeito de guardar um registro on-line para mim mesmo. Assim, pois, aqui a tenho: a dissertação apresentada sob o título de “Kant e a nova abordagem da Filosofia” é basicamente uma apresentação do problema da Crítica da Razão Pura à luz da reconstrução do seu sentido histórico.

O problema da obra é permutável com o problema da metafísica (que significa o problema da razão pura) e o seu sentido histórico corresponde ao seu papel específico no final da linha conduzida pelos antecessores. Por isso, em grande parte, esta dissertação trata do modo como as questões da filosofia transcendental modificam e englobam as interrogaçõe de Descartes, Leibniz, Locke, Hume, entre outros. A rigor, o processo observado utiliza diversos instrumentos argumentativos. Kant em parte refuta o racionalismo e o empirismo, em parte aproveita de ambos seus melhores pontos, administrando sutilmente os elementos disponíveis a fim de construir uma visão nova de toda a problemática, conhecida por dialética, e expressão máxima das ilusões da razão pura que caracterizam a metafísica.

Essa versão do problema, por sua vez, acompanha uma abordagem nova da metafísica, e uma subseqüente mudança de atitude filosófica. Uma vez que a filosofia é a idéia de uma ciência que explora a relação de todos os conhecimentos com os fins essenciais da razão humana (A839/B868), podemos concluir que a idéia dessa ciência assumirá um valor diferente para cada maneira de considerar a razão humana e seus fins essenciais. Com efeito, o racionalismo e o empirismo têm diferentes visões dos limites e do alcance da razão humana. Por conseguinte, chegam a diferentes perspectivas de filosofia. Para o primeiro a filosofia é dogmática, isto é, compromete-se com a soberania incontestada da razão pura no envolvimento com seus fins essenciais. Para o segundo a filosofia é cética, isto é, não acredita no alcance incondicional da razão pura sem interferência dos sentidos.

Através da caracterização dogmática e cética Kant descobre um sentido filosófico correspondente ao modo como se admite o alcance da razão pura para condicionar o conhecimento. Desse modo, o centro da questão torna-se a respeito dos limites do conhecimento. E a questão chave usada por Kant para discuti-la é a questão sobre a possibilidade dos juízos sintéticos a priori, que dão conhecimentos pertencentes à classe da Física, da Matemática e da Metafísica – em oposição aos conhecimentos analíticos da Lógica e aos contingentes dos juízos sintéticos a posteriori. Para resumi-lo, a possibilidade dos juízos sintéticos a priori depende de uma doutrina sobre a forma da experiência, explorada por Kant em duas fases. Na Estética Transcendental e na Dedução das categorias puras. O seu nome é idealismo transcendental. O característico nesta doutrina, como argumentamos no trabalho, é a mudança de foco para a ideia de forma, em oposição a uma abordagem simplesmente material da questão do alcance do conhecimento. Esse deslocamento permite a Kant explorar uma nova dimensão da discussão, inacessível a seus antecessores: a dimensão transcendental do problema da razão pura.

A razão não é mais considerada dogmaticamente (como se alcançasse a matéria da coisa em si) e nem ceticamente (como se dependesse irremediavelmente da matéria contingente dos sentidos). A dimensão transcendental da razão pura descortina a perspectiva puramente formal da coisa em si, isto é, esta considerada unicamente como uma realidade transcendental, fonte de ilusões dialéticas – e incognoscíveis do ponto de vista empírico (que é o único relevante para a ciência). Assim a questão material da coisa em si é trocada pela questão formal a respeito das condições de possibilidade de alcançá-las. O idealismo transcendental não é senão a contraparte do realismo transcendental, e é compatível com um realismo empírico, que por sua vez é a contraparte de um idealismo empírico. Essa troca conclui o que chamamos de subsunção sistemática de problemáticas da modernidade e, segundo argumentamos, ela é um modo de radicalizar a problemática da metafísica – e da razão pura – até ela assumir um valor novo.

Parte central da dissertação aqui apresentada é pressupor um sentido histórico da questão cartesiana. Adotamos uma metodologia que considera a linha de Descartes, Leibniz, Locke e Hume, onde o último com seu ceticismo representa o passo mais próximo da radicalização completa do problema e por isso esse é o responsável por acordar Kant de seu sonho dogmático. O problema cético, no entanto, precisa também ser radicalizado até não parecer um simples problema empírico acerca do alcance psicológico do conhecimento, mas sim um problema mais amplo a respeito da tendência inevitável da razão pura a transcender seus limites. Semelhante golpe de visão global acaba por demarcar todo o horizonte dramático do contexto da metafísica. Tendo estendido dessa maneira os limites da problemática moderna, pressupomos que se chegaria a uma revolução copernicana da filosofia, uma abordagem crítica do problema da razão pura, e uma subseqüente atitude transcendental a respeito da metafísica.

Isso, no entanto, faz com que a metafísica se confunda parcialmente com as características transcendentais, e perca resquícios da sua carreira ontológica antiga, bem como a teológica. E assim, a idéia da filosofia como a ciência que administra a relação de todos os conhecimentos com os fins últimos da razão pura sofre um último condicionamento. Kant chamou de filosofia transcendental uma espécie de sucedânea da metafísica no sentido crítico de sua exploração da razão pura, e são as características dessa qualificação transcendental que nos interessará discutir no fim da dissertação. Assim, o nosso problema é uma reprodução do problema de Kant, interpretado como uma subsunção sistemática das questões modernas até devolvê-las um caráter radical, que explora uma nova vocação à metafísica, como Filosofia Transcendental.

Enquanto os dois primeiros capítulos são uma apresentação da linha de problemáticas que culmina no desafio cético de Hume, e finalmente é englobado por Kant em uma dedução transcendental dos conceitos puros, o terceiro e último trata de explorar essa nova caracterização da filosofia, decorrente da maneira transcendental de substituir a metafísica, e a maneira crítica de abordar a razão pura. O idealismo transcendental, como doutrina subjacente a essa nova abordagem da filosofia, tem um sentido epistemológico supostamente óbvio, uma vez que sacrifica a cognoscibilidade da coisa em si em favor de uma doutrina das condições empíricas do conhecimento. Porém, o que está por trás da cortina da experiência não é rigorosamente impenetrável: como vemos no ideal da razão pura, existe um sentido prático diretamente proveniente da realidade noumenica, que nos dá inclusive comandos morais e justifica a fé. Portanto, não é tão óbvio assim que a coisa em si seja um mero modo de consideração transcendental do objeto, que no nível de reflexão empírico tivesse realidade plena. Esse impasse reflete o embate entre Strawson e Allison. A nossa dissertação adotou a argumentação de Allison de que o idealismo transcendental de Kant não implica um psicologismo (fenomenalismo), mas rejeitou a sua interpretação meramente epistêmica, pois nela o peso da problemática da coisa em si é diminuído até não sobrar senão uma espécie de metodologia da ciência empírica.

O capítulo três – e último – tenta discutir o caráter do idealismo transcendental pelo seu valor para modificar a abordagem da metafísica e, consequentemente, a própria filosofia. Portanto, por um valor maior do que o de ser uma mera propedêutica da ciência. Discutimos a visão de Lebrun e Bonaccini, para quem a problemática da coisa em si guarda uma inevitável aporia, o que corresponde ao fato de que o problema da razão pura é uma dialética inevitável. Discutimos também a visão de Heidegger em A tese de Kant sobre o ser, onde é proposta a interessante tese de que a lógica transcendental e os postulados do pensamento empírico em geral são maneiras de explicar as modalidades do ser e, portanto, a doutrina transcendental é uma adaptação da ontologia para um conceito pós-científico da filosofia. Nossa interpretação, coincidindo com Bonaccini, Lebrun e Siemec, adota a posição de que a filosofia transcendental não é nem primariamente ontológica, nem primariamente epistemológica, mas, porém, a antiga problemática metafísica está presente no modo de pensar epistemológico transcendental, que não é, portanto, uma mera propedêutica da ciência.

Na última subseção discutimos a coincidência entre o caráter da filosofia transcendental e a sua vocação não natural, usando o apoio de Husserl em A idéia da Fenomenologia. E concluímos a dissertação com a ideia de que a solução kantiana do problema da metafísica envolve a o postulado de seu caráter não natural e essencialmente problemático, motivo pelo qual não goza do mesmo sucesso das ciências empíricas e a lógica. A nova abordagem da Filosofia derivada dessa caracterização da metafísica é essencialmente não dogmática e nem cética, porém, não é especialmente epistemológica ou ontológica, e nem pertence a uma região própria. O importante é ter em mente que Kant preserva a filosofia como filosofia primeira, pois o peso e o valor de seu questionamento não se pode reduzir a uma abordagem natural e a uma propedêutica da ciência.

É viável se perguntar se dessa maneira a própria história da filosofia não é a narração dos diferentes modos como a metafísica é colocada em questão durante as passagens de épocas e gerações. É compreensível que em uma época obcecada pelos resultados práticos da ciência experimental, esse questionamento tenha o caráter de uma procura por fundamentos seguros e objetivos para o conhecimento. A diferença entre uma fase ontológica, outra epistemológica e ainda outra lingüística seria fundamentada em um traço comum e mais geral que elas próprias: o modo como cada época se questiona a respeito das aporias, dilemas, antinomias e paralogismos inevitavelmente presos àquele que as pensa (para Kant, este seria o ser racional, e estas questões seriam justamente as da metafísica). Isso simplificaria a explicação do fato de que as discussões desde Platão quase sempre mudaram pouco, porém degradaria também nossa compreensão teórica da filosofia, a diminuindo a um gênero não acadêmico ou intelectual: algo como um conjunto teórico de questões que nascem não de uma leitura sistemática ou uma formação universitária, mas de um ato, uma atitude, ou uma perplexidade metafísica: “Metafísica enquanto filosofar, nosso agir próprio, humano” (HEIDEGGER, 2006, p. 5).

terça-feira, 10 de maio de 2011

Aos interessados na minha dissertação.

Como invocar a relevância atual de Kant? É certo que ao grosso numérico da humanidade não faria falta saber o que Kant falou, problematizou ou resolveu. Mas isso talvez diga mais respeito à natureza de sua sensibilidade do que ao valor daquilo a que são insensíveis. Se estivessem interessados em mapear com maior amplitude os seus próprios problemas, tornar-se-iam imediatamente passíveis. E isso significa: mapear os seus problemas domésticos, políticos, privados, públicos etc. Todos os problemas, pois sem exceção expressam algum nível do envolvimento que pedem à razão para a sua resolução. Naturalmente, as questões científicas parecem ser as mais imediatamente afetadas pelo desempenho e a competência da razão; mas, a rigor, nenhum problema simples ou complexo escapa à sua influência. Razão não é mais do que o tribunal último de todas as contendas. Como invocar, pois, a relevância atual de Kant? Se alguém que vai apresentar uma dissertação de mestrado sobre a obra mais importante desse filósofo serve para alguma coisa, deveria ser para isso. Ora, a doutrina de um filósofo só pode ser exposta fiel e academicamente ao se confiar na possibilidade de recriar a paisagem de seus enfrentamentos, os interesses e os personagens da disputa. Abdicamos, pois, à parte acadêmica e fiel, para sugerir uma paráfrase mais apelativa à narração: um paralelo com um palco atual, onde os personagens somos nós mesmos. Se abstrairmos, pois, o contexto histórico de Kant e avaliarmos os seus problemas tal como ainda hoje eles estão presentes, poderíamos traçar o esboço de um análogo campo de batalha dizendo: a crise da razão pura e a aporia da coisa em si (os dois problemas capitais da Crítica da Razão Pura) vivem na nossa obsessão, tão atual quanto nunca, a esgotar absolutamente a fundamentação que condiciona nosso conhecimento. O que é a raíz de uma ambição ao controle absoluto do mundo que nos circunscreve. Essa primeira obsessão dá lugar a nossa tendência a materializar toda abordagem metafísica em dogmas regionais das ciências naturais, que precisam da autoridade dogmática da razão pura para fundamentar suas certezas. Em seguida, gera uma reação cética a esses dogmas e às subsequentes crises de metodologia enfrentadas pelas ciências de tempos em tempos. Kant ensinou a abordar a metafísica sem uma filosofia dogmática e com isso, sem exposição aos ataques da filosofia cética. Dessa forma, inaugurou a possibilidade de uma filosofia que revelasse a “coisa em si” como um fetichismo atávico da razão pura, uma mania de conter as coisas em nossas mãos, disposicioná-la à nossa abordagem controlada, não fragmentada, reduzindo a natureza aos limites culturais da representação, ou seja, da experiência possível. A própria metafísica, em todas as suas expressões (religiosas, morais, etc) não passaria de quartel general ideológico a serviço desse fetichismo com a idéia de “coisa”. É devido a Kant que sabemos que essa “coisa” (ou "objeto") é apenas um dogma que traduz o conjunto de elementos estruturais usados pela subjetividade para reduzir a natureza à experiência humana. A credibilidade desses elementos, por sua vez, é demarcada por meios que Kant não discutiu, preferindo as instituir como faculdades do entendimento humano alcançáveis através de uma analítica do entendimento e uma dedução das categorias puras do conhecimento, no que ficou conhecido por vários nomes: idealismo transcendental, psicologia filosófica, fenomenologia pura, etc, todos nomes associados a uma tese comprometida com a existência de juízos sintéticos a priori. A nós, que não compramos essa parte do kantismo, é possível especular com sugestões óbvias como o fetichismo com a idéia de “coisa” se instaura: as instituições políticas, por exemplo, são formas de distribuir o crédito que estrutura as reivindicações de verdade no mundo da cultura, selecionando as experiências ricas e as pobres, as que a História agrega e as que ela rejeita. As “coisas” do mundo e as verdades científicas que nelas se fundamentam vão assim se formando estruturalmente pela história, que não é senão a narração dos Sujeitos cuja experiência colonizou espiritualmente as outras. Aqui, porém, já estamos um pouco mais longe de Kant, seguindo o caminho de Hegel, Marx e que foi retomado mais recentemente por pós-estruturalistas como Foucault, etc. Lembremos, pois, Kant como o centro irradiador de toda essa filosofia repetida aos quatro cantos por cientistas sociais, psicólogos, historiadores, etc. Espero ter conseguido assim invocar o valor da Crítica da Razão Pura aos olhos dos que a negligenciam e dos que tem mais o que fazer do que se embrenhar nela, pelo que não os culpo, embora nunca sejam mais do que dezessete gatos pingados que me assistem neste blog. E o fazem sem nenhuma obrigação, pelo que não deixo de ser-lhes grato. Aos amigos a quem eu nunca me dignei a falar dela, fiquem aqui com o seu esboço. Faço assim também um treino antecipado à defesa, que agora não pode mais atrasar. Chama-se “Kant e a nova abordagem da Filosofia”. Abraços, obrigado.


sexta-feira, 8 de abril de 2011

Notas sobre a suposta diferença de esferas entre Cultura e Autoridade


Sublinharei de saída os traços de uma importante diferença entre saber e autoridade: o primeiro é amparado em uma boa disposição das luzes, uma completa liberdade dos quadrantes dialéticos que participam do diálogo e da discussão que o gera, pois a sugestão de perspectivas, sejam para pior ou para melhor, só pode contribuir positivamente para o desenvolvimento das ciências e das artes (embora a primeira com uma metodologia mais rígida que a segunda). Já a autoridade não tem a mesma tolerância, pois seu objetivo não é outro senão o de preservar e proteger as regras. Mesmo quando uma mudança é proposta para melhor, na ordem política, ela é suspeita. Isto se dá porque a autoridade não julga sobre o valor do conteúdo da mudança, mas é um índice de rigor do próprio julgamento. Qualquer mudança de perspectiva é um desacato da autoridade. Tal desigualdade seria o fundamento de um suposto rompimento originário entre a academia - a escola - e a política. Há, no entanto, infiltrações entre estes dois setores, da cultura (saber) e da política (da autoridade): frequentemente o concurso das idéias é selecionado e filtrado pelo peso do interesse político. O que os intérpretes da História da cultura, do espírito, não podem ignorar – não sei quantos ainda ignoram, mas me expresso assim para dar valor de novidade ao texto – é que a dialética pretensamente neutra das idéias é na verdade subjacentemente orientada por uma dramaturgia de batalhas pelo direito à autoridade. Entenda-se como uma complexa guerra que está acontecendo a todo o momento por detrás da suposta discussão limpa e clara entre doutrinas, e que transforma a nossa noção simples de espírito em outra, menos teológica, mais política. Menos divina, mais prática e corrupta. A rigor, a interação entre poder e saber é extremamente mais complexa do que a suposta por filósofos de há muitos séculos, como Bacon, que ingenuamente achava que descobrir causas e formas da natureza daria um controle operatório que se traduziria em poder. Mal desconfiava as influências do poder sobre o próprio saber, e o palco dos conflitos de crédito subjetivo onde se desempenha a narração da cultura. Conheço de ouvir falar e leituras esparsas teorias novas e movimentos recentes – pós-estruturalismo – que valorizam e levam em conta essa forma de abordar o problema; e que discutem a força da idéia de assinatura, bem como a de autoridade, compreendidas como modificações estruturais da idéia de subjetividade; exploram a força destas idéias para levantar a importância das questões sobre os pressupostos morais, históricos, econômicos e antropológicos subjacentes à teoria do conhecimento e à filosofia (entendida como a suposta guardiã da cultura). No entanto, não estou apto a falar sobre elas e prefiro conservar-me apenas atento às ligações entre meus estudos e estes, antes de achar o momento oportuno de estudá-los concretamente.

quinta-feira, 7 de abril de 2011


Complementar à última reflexão, uma nova será acrescentada sobre os problemas óbvios envolvidos na distribuição da autoridade - em uma relação de discípulo e mestre – em questões de cultura e saber. Penso que, na instituição do dimensionamento da autoridade dentro da sala de aula, subentende-se que o que dá valor à opinião do aluno é o fato do professor aprová-las, não a sua fecundidade ou riqueza interpretativa. E como o professor frequentemente tem uma perspectiva fechada, um modo intuitivo particular de estabelecer a relevância das questões discutidas, a aula passa longe de uma exposição de temas, e se aproxima muito mais de uma divulgação de charadas pessoais, uma apresentação de conceitos distorcidos pela sua própria visão e uma exigência de que os alunos pensem através deles. Os "sem luz" (origem ltina da palavra 'aluno') são irrevogavelmente abandonados aos labirintos pessoais de um outro, muitas vezes mais desnecessariamente intrincados do que a questão propriamente dita, seja ela newtoniana ou darwiniana. Por isso alguns sádicos se divertem em emaranhar seus pupilos em problemas insolúveis, que traduzem sua maneira particular de abordá-lo, e que a todos os outros soam como ardilosas armadilhas; pegadinhas do Faustão. Como se não fosse o bastante, os próprios vestibulares adotam o mesmo procedimento, o oficializando. Não é uma surpresa escandalosa diagnosticá-lo como um desacato à própria instituição da inteligência, que só deveria justificar-se como andadeira provisória a uma faculdade de julgar ainda tateante, constituinte de uma fase imatura da inteligência presente nos alunos, uma fase de lusco-fusco, onde a necessidade de lanternas fosse preemente antes que o dependente possa enfim emergir em sua própria aurora. Talvez fosse desculpável também em uma época onde esta relação não fosse forçada, e o diálogo entre os dois elos desta corrente florescesse mutuamente, como era, ou parecia ser, entre os gregos. Porém não é isso que se passa nas instituições de ensino médio atuais: e na verdade apenas é pintado como uma desvantagem aos alunos que estes abdiquem um dia das muletas, recompensando quem sabe usar as mesmas do professor, e criando uma atmosfera de desencorajamento incoercível sobre o que tenta pensar sem a peça de maquinaria postiça dos artifícios.