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quinta-feira, 29 de outubro de 2015

... vandalismos do amor ilícito

... seguiu naquela noite para casa sozinho, carente até mesmo da companhia da lua, preço do pedágio de nuvens inflacionando a moeda lunar. Mastigava despeitos e consumia alergias durante o trabalhoso aclive. Integrava uma nova cadeia de preconceitos à sua identidade pessoal, novas repulsas e orgulhos. Mas se tornando assim um pouco mais vacinado, mau e malicioso, queria sobretudo punir o mundo pela sua injustiça. Desagravava uma egoísta sede de justiça ao invocar o cinismo. Sequestrava a razão ao alvejá-la de desconfianças maliciosas, prometendo que ela não teria defesa contra seus projéteis de ceticismo e esclarecimento armargurado. Quando foi a última vez que teve motivos para confiar em alguém? Nem se lembrava. E assim seu espírito colhia a cultura da experiência, quando a atenção da escalada de rotina foi roubada pelo vulto branco que vibrou num assomo de pânico em cima do telhado vizinho à sua casa. Era o Romeu gatuno, sobressaltado pelo aparecimento do menino.
Os olhos do bicho engataram com os do homem, numa troca fluvial de mensagens indizíveis, um mergulhando na alma do outro. Em um único impulso o gato voltou a si e disparou com uma leveza que encrespava cachos de seda de inveja, calçando solas de algodão e queimando o carvão sutil das calorias etéreas. Era como um fluído em movimento. Aquela noite era dele mais que de qualquer homem e, em Florianópolis, “hoje” – pensou Laio – havia pelo menos a presença de um genuíno boêmio, desafiando a simbologia estrangeira, resgatando o valor da ideia por trás do distante estrangeirismo e a aplicando a um caso que não pertence aos célebres bares de Paris: o caso do delinquente animal brasileiro vandalizando as convenções do dia em sua carreira noturna. O namorador fluía na escuridão como um líquido alcoólico, projetado para injetar paixões embriagadas nas gatas felizes.
Mais alguns passos em direção a casa e divisou outra aparição avultando veloz junto aos caules que preenchiam o caminho entre a casa do vizinho e a sua. Dirigia-se na mesma direção que ele, para cima, mas numa velocidade muito mais acelerada. O rapaz continuou batalhando a subida lenta e aferrou-se enfim ao portão, atravessando a última barreira entre ele e consolo do descanso, quando encontrou velando ao lado de fora, na pequena área que preludiava a porta, a gata, como uma esfinge absorta em regiões da imaginação. A gata gravitava nas bolhas das representações. Fora Montaigne quem, observando um cavalo de batalhas tremendo durante o sono como se estivesse em ação, concluíra que o animal sonhava e, portanto, reservava uma vida interior onde tiros de canhão não precisam de pólvora e o fio das lanças não precisam de amolador, onde, em uma palavra, os detalhes materiais são descontados face à imaculada forma das imagens e afigurações. Esse submundo simbólico misterioso visitado durante o sono é a prova de que os animais não humanos também sofrem o castigo da gramática. E, inclusive, é a prova de que inferem, uma vez que inferir não é mais que explorar as possibilidades e alternativas de combinação autorizadas pela interdependência entre as formas, cujas combinações sólidas e infalíveis nos tornam cativos de mundos semânticos, mitologias analíticas. Mas isso é, sobretudo, a prova de que os desejos e vontades das bestas, além da carga instintiva vulgar, também invocam o crédito para uma ambição maior, o financiamento de uma clareza angelical, algo digno da transcendência das preces: eles também querem a Verdade. Se isso parece metafísica vulgar aplicada aos bichos, é porque não pode ser diferente. Seus desejos são mais que meros desejos: são paixões como as nossas, oscilando entre o barato e o profundo. Era essa elevação espiritual que se filtrava na expressão de transe da gata na soleira da porta.

Laio experimentou um segundo e meio de ressentimento. Apontou para a gata com olhos de gancho. Ele sabia agora, sem dúvida, quem era o vulto de cores desbotadas e dissolvidas nas cores do fundo que corria pelas árvores em direção à República. Estava demais desconfiado, infeliz, envenenado, para que se deixasse enganar pelo silêncio dissimulado de uma gata eufórica. A densa amargura vertida recentemente sobre si lhe acoplou aos órgãos uma nova habilidade intuitiva, um olho de lince para os segredos da felicidade ilícita. Era a habilidade dos ressentidos; que é, pelo menos, um instrumento de faro realmente útil, uma vez que dificilmente erra. E não errava: era mesmo a gata correndo como cinderela antes da carruagem virar abóbora. Foi veloz o bastante para evitar que o menino chegasse primeiro. Mas o que a acusou sem apelo, o seu sapatinho de cristal esquecido, foi a vagueza pintada na expressão, a profundidade de abismos secretos e paixões virulentas vivificadas no fundo do seu olho reverente. Comparando esses suspiros da sua alma jovem com a imagem do boêmio branco elegante e flexível nas telhas do vizinho, era inevitável induzir que ela estivesse com ele. O resto das pistas eram somente confirmações adjacentes.   

domingo, 4 de outubro de 2015

Sementes de intuição

A janela aberta do quarto deixava entrar uma ideia ou outra, ressabiadas e tímidas como as brisas do mormaço. O painel que se dilatava pela veneziana aberta com sorte pintava a passagem de uma candidatura ao belo, embora em sua fugitiva natureza e independência. Não raro a atenção se dirigia a um prédio, ou a uma rua do bairro comercial, onde pessoas encenavam todos os dias mais um capítulo da pressa humana, o seu lépido e ocioso passo de lugar qualquer para lugar nenhum. Mas iam e vinham como em dança de ratos no laboratório, sugerindo ao pesquisador apenas simulacros de experiências controladas, nada de espontâneo e livre, nem de levemente despeitado e delinquente. Nenhuma fonte de inspiração.

            Diante do tribunal da vida, que é curta, é um luxo indesculpável recusar a ocasião de uma viagem que cai do céu como uma mensagem gratuita da providência. Ignorar os seus favores chega a ser uma arrogância. O que piora a reputação da ousadia é que ela é uma perfeita infração da política dos modestos. Uma espécie de superstição: pois esta é também um luxo, um capricho de quem acha que pode dispensar a inteligência. Quando a janela do quarto é a única ventilação da alma, nunca é demais advertir: algo está errado. Nada compara o efeito de uma viagem para difundir sementes no jardim da experiência.
Tércio chegou, entrou e sentou-se, esperando alguém que não lhe fosse estranho. Apenas por acaso a sua ruim pontualidade não fora mais atrasada que a dos demais, que ousaram não entrar senão antes que a hora exata os obrigasse. Haviam se acercado aos poucos e se deixado à porta. Porém havia pretextos para estar dentro, mais do que para estar fora: o frio do exterior carcomia a malha da pele sem nem aquela justa piedade das traças, que dão aos livros pelo menos tempo suficiente para se preservarem nas memórias de um leitor.
            Mais fácil era erodir-se em paulatino esquecimento pela exposição àquela extinção glacial.
            Mas o povo ficava lá fora falando, falando, e lá dentro sozinho parecia até mais inverno. Por um minuto, Tércio ponderou se tinha feito bem em lançar mão das malas e colocar-se à disposição de uma viagem desconhecida mesmo depois de seu único contato advertir-lhe a ausência. Não demorou, porém, a que chegasse um rosto familiar. Cassiano era seu amigo quase tanto quanto Patrick, ou seja, pouco, mas a sua presença o abrigava da pior solidão: a do estranho em lugar de familiares. Já se pode agora deixar para trás esse primeiro minuto de tensão dentro do ônibus. De agora em diante tinha casa: o amigo servir-lhe-ia como as linhas de um papel para retificar sua caligrafia e torná-lo legível a todos os outros. Era sua ponte de contato e seu ponto de apoio. Com esse pequeno traço de ansiedade não precisava mais se preocupar.