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terça-feira, 22 de abril de 2014

Os ícones do Baila Floripa

 Quatro dias de dança, e uma gratificante dor nas costas de sequela. O Baila Floripa não recompensa o ladrão com mais do que ele pode carregar. Quem volta com o corpo dolorido presume ter algo em comum com alguns dos virtuosos que dançaram e se apresentaram, e que puderam carregar mais do que calos e dores no seu furto ao espírito da festa. O congresso, organizado pela administração da acads, presidida pela competente e incansável Aline Menezes, é um canal de muitas energias. As diferenças de estilo se desafiam, a variedade de experiências se confronta, e os casais mais ousados se enfrentam no final, em uma expressão de competitividade fundamental tanto para o florescimento da arte quanto da ciência. Mas a um desses comércios de influência eu gostaria de dar ênfase, uma vez que é aquele em que tive o prazer de participar: a ebulição inspiradora parida da interação entre os alunos e os professores, e que tem o seu auge no final de cada aula, quando as duas classes se oferecem mutuamente em uma generosa troca. Os gritos, assobios, suspiros e suspenses dos pupilos são a semente de uma energia sugada e reciclada pelos mestres, que devolvem respostas improvisadas pelo próprio corpo, em um diálogo que envolve a música, o dançarino e os admiradores. Como um comediante progride com o progresso dos risos da audiência, a dança se alimenta dos uivos de prazer dos seus fãs. Naqueles últimos cinco minutos sincroniza-se o tempo em uma expressão de arte real. O expectador e o artista negociam suas necessidades na linha fina do instante. A narrativa da dança se torna um jogo de reflexos entre o autor e o leitor, cada gesto nascendo livre e ao mesmo tempo necessário, como se sua espontaneidade fluida viesse amadurecendo desde uma raiz longínqua plantada em um passado remoto, para emergir no agora com a força de uma ideia fresca. O Baila Floripa é feito pelos ícones. Além dos talentos locais que cada vez mais confirmam a suspeita de um futuro brilhante, há os de fora que através do youtube foram previamente canonizados, e a sua presença infesta o ambiente com um ar de veneração. Mesmo que fora do universo da dança não sejam conhecidos e admirados com a mesma intensidade, é fazer justiça dizer que as suas performances agregam valor à personalidade cultural do Brasil. Assim como jogadores de futebol, Garrincha, Pelé e Romário, alguns dos prodígios dançantes desse país deveriam já estar incluídos em letras de música e ser cantados nas rodas de samba, como figuras da mitologia popular, capazes de misturar as sílabas do espírito brasileiro e escrever mensagens que apelam ao nosso coração, nos despertando um senso de identidade.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Como aplicar a falácia do espantalho: reflexões sobre a má interpretação das falácias informais nas discussões diletantes da internet

Em uma época em que a internet se tornou uma ilha exposta às enxaquecas de muitas ondas ideológicas, e abriga acirradas discussões políticas, onde mesmo as pessoas mais tímidas encontraram inspiração para se expôr e defender suas crenças, eu, que fiquei apenas mais tímido, decidi escolher um lugar pretensamente mais neutro e olhar a discussão de fora, alertando para alguns perigos que acompanham as expressões apaixonadas de sentimentos íntimos. Quero fazer uma pequeno advertimento lógico, a respeito das falácias informais, especialmente uma: a chamada falácia do espantalho. Observo que se tornou um costume mais ou menos frequente pessoas invocarem essa falácia como uma carta de emergência, projetada para ganhar qualquer discussão. Na verdade, ela de fato é raiz de mal entendidos, e o grande pensador que em algum momento a descobriu provavelmente teria a devolvido para a cachola se suspeitasse como o público geral faria uso de seus serviços. Isso acontece porque ela apela para um sentimento muito comum presente na maior parte dos debatedores, quando esses superestimam a própria opinião. A ideia é que, sempre que alguém discorda com ele, estaria cometendo a falácia do espantalho. Espantoso não? Imaginem o exemplo: Uma alguém A apresenta um argumento logicamente estruturado para refutar a conclusão de que o Brasil é um país corrupto. Um oponente "B" pensa que o Brasil é um país corrupto e que como "A" não considerou as premissas que ele (B) próprio acha relevantes, então (A) deve ter simplificado o caminho até a conclusão, ou seja, usou uma versão conveniente ou um espantalho do problema para adquirir respostas - ou conclusões - fáceis. O mais fantástico é que B não acha apenas que "A" estava errado: ele acha que "A" cometeu uma falácia. Segundo ele, "A" nunca chegou a desafiar o fato de que O Brasil é um país corrupto, pois sequer apresentou um argumento válido. Triunfante, agora qualquer um que não problematizou a questão como ele, ou que não adotou as mesmas premissas que ele, ou que apresente argumentos fracos, irrelevantes, não inteligentes o bastante, comete falácias. E assim, resumindo, quem discorda de "B" é sempre um falacioso. É a instauração do caos argumentativo: todos podem desqualificar o argumento do outro com base na superestima que ele tem sobre a própria opinião. Psicologicamente, isso significa que "B" pensa desse modo: "se alguém discordou de mim, é porque falhou em colocar o problema e abordar a minha opinião pelo modo mais forte o possível, isto é, o modo como eu mesmo a abordo". E qualquer opinião agora é a priori desqualificável. Pois se "B" acusa "A" de simplificar convenientemente o argumento alvo, "A" pode igualmente acusar "B" de fortalecer convenientemente o argumento protegido. E como ambos podem acusar um ao outro de falaciosos, as diferentes opiniões nunca se enfrentam e confrontam, transformando a discussão em um verdadeiro circo sem propósito. Pela mágica da loucura, ambos agora correm em círculos atrás do próprio rabo.

         O uso inopinado e constante dessa falácia para fazer acusações desse tipo tem sido uma manobra falaciosa com valor independente, que poderíamos batizar com seu próprio nome. Mas deixemos a parte da nomenclatura para quem tem mais energia. Importa a nós perceber que quando olhamos a sua estrutura, percebemos por que é tão fácil as discussões de internet não caminharem para lugar algum. Do ponto de vista psicológico, tal uso reflete a tendência conhecida das pessoas a pensar que aquele que discorda de si não entendeu seu argumento: pois para ele, bastaria que ele entendesse, para que automaticamente concordasse. Essa ingenuidade deriva de algo que poderíamos chamar de um vício de personalidade baseado em uma má compreensão da natureza formal da lógica. Propriamente falando, nenhum argumento pode ser falacioso ou logicamente desqualificado em vista do seu conteúdo - em outras palavras, todos estamos livres para escolher o nosso próprio recorte, nossas próprias premissas, nossas próprias suposições, nosso próprio conteúdo, e isso não pode nos desqualificar como falaciosos. A falácia do espantalho, por sua vez, quando adequadamente aplicada somente ocorre quando esses três passos ocorrem:
1.     uma premissa foi apresentada na discussão pelo sujeito Y e aceita para os fins de argumentação pelo sujeito X

2. O sujeito X entende errado ou distorce a premissa

3. O sujeito X ataca a conclusão de Y através da versão distorcida da premissa aceita (cometendo a falácia do espantalho).

        Se o passo 1 nunca ocorrer, isto é, se X não aceitar nenhuma premissa ou suposição de Y, logo, o passo 2 e 3 tampouco pode ocorrer, pois ele não pode distorcer uma premissa que, em primeiro lugar, ele nunca aceitou como parte da argumentação. X tem o direito lógico de encadear a sua conclusão a partir de suas próprias premissas - as únicas dívidas lógicas que ele terá serão exclusivamente com elas. Ele não tem nenhuma responsabilidade lógica de interpretar bem ou adequadamente uma premissa que ele nunca aceitou, pois sua conclusão não depende dela. Na pior das hipóteses X pode estar errado e sustentar uma premissa falsa, mas não haverá falácia, por mais que Y esperneie dizendo que não foi "corretamente compreendido".