statcounter

terça-feira, 17 de maio de 2011

Vai aí uma apresentação técnica da minha dissertação (já que ninguém foi à defesa). Não tem nada de muito atraente, mas assim como ser feio nunca foi motivo para alguém ficar em casa sábado à noite, também eu não tenho pretexto para não publicar minha apresentação num blog, por indiscreto que isso seja. Acredito que a modéstia é um luxo de quem já tem fama. Aos coitados como eu, não há vergonha alguma em fazer uma auto-publicidade. Arrogância seria pressupor que ninguém poderia fazer um uso, às vezes melhor do que eu mesmo, disso aqui; afinal, é o temível Kant, explicadinho em miúdos. Alguém pode fazer proveito. Depois, o blog é um bom jeito de guardar um registro on-line para mim mesmo. Assim, pois, aqui a tenho: a dissertação apresentada sob o título de “Kant e a nova abordagem da Filosofia” é basicamente uma apresentação do problema da Crítica da Razão Pura à luz da reconstrução do seu sentido histórico.

O problema da obra é permutável com o problema da metafísica (que significa o problema da razão pura) e o seu sentido histórico corresponde ao seu papel específico no final da linha conduzida pelos antecessores. Por isso, em grande parte, esta dissertação trata do modo como as questões da filosofia transcendental modificam e englobam as interrogaçõe de Descartes, Leibniz, Locke, Hume, entre outros. A rigor, o processo observado utiliza diversos instrumentos argumentativos. Kant em parte refuta o racionalismo e o empirismo, em parte aproveita de ambos seus melhores pontos, administrando sutilmente os elementos disponíveis a fim de construir uma visão nova de toda a problemática, conhecida por dialética, e expressão máxima das ilusões da razão pura que caracterizam a metafísica.

Essa versão do problema, por sua vez, acompanha uma abordagem nova da metafísica, e uma subseqüente mudança de atitude filosófica. Uma vez que a filosofia é a idéia de uma ciência que explora a relação de todos os conhecimentos com os fins essenciais da razão humana (A839/B868), podemos concluir que a idéia dessa ciência assumirá um valor diferente para cada maneira de considerar a razão humana e seus fins essenciais. Com efeito, o racionalismo e o empirismo têm diferentes visões dos limites e do alcance da razão humana. Por conseguinte, chegam a diferentes perspectivas de filosofia. Para o primeiro a filosofia é dogmática, isto é, compromete-se com a soberania incontestada da razão pura no envolvimento com seus fins essenciais. Para o segundo a filosofia é cética, isto é, não acredita no alcance incondicional da razão pura sem interferência dos sentidos.

Através da caracterização dogmática e cética Kant descobre um sentido filosófico correspondente ao modo como se admite o alcance da razão pura para condicionar o conhecimento. Desse modo, o centro da questão torna-se a respeito dos limites do conhecimento. E a questão chave usada por Kant para discuti-la é a questão sobre a possibilidade dos juízos sintéticos a priori, que dão conhecimentos pertencentes à classe da Física, da Matemática e da Metafísica – em oposição aos conhecimentos analíticos da Lógica e aos contingentes dos juízos sintéticos a posteriori. Para resumi-lo, a possibilidade dos juízos sintéticos a priori depende de uma doutrina sobre a forma da experiência, explorada por Kant em duas fases. Na Estética Transcendental e na Dedução das categorias puras. O seu nome é idealismo transcendental. O característico nesta doutrina, como argumentamos no trabalho, é a mudança de foco para a ideia de forma, em oposição a uma abordagem simplesmente material da questão do alcance do conhecimento. Esse deslocamento permite a Kant explorar uma nova dimensão da discussão, inacessível a seus antecessores: a dimensão transcendental do problema da razão pura.

A razão não é mais considerada dogmaticamente (como se alcançasse a matéria da coisa em si) e nem ceticamente (como se dependesse irremediavelmente da matéria contingente dos sentidos). A dimensão transcendental da razão pura descortina a perspectiva puramente formal da coisa em si, isto é, esta considerada unicamente como uma realidade transcendental, fonte de ilusões dialéticas – e incognoscíveis do ponto de vista empírico (que é o único relevante para a ciência). Assim a questão material da coisa em si é trocada pela questão formal a respeito das condições de possibilidade de alcançá-las. O idealismo transcendental não é senão a contraparte do realismo transcendental, e é compatível com um realismo empírico, que por sua vez é a contraparte de um idealismo empírico. Essa troca conclui o que chamamos de subsunção sistemática de problemáticas da modernidade e, segundo argumentamos, ela é um modo de radicalizar a problemática da metafísica – e da razão pura – até ela assumir um valor novo.

Parte central da dissertação aqui apresentada é pressupor um sentido histórico da questão cartesiana. Adotamos uma metodologia que considera a linha de Descartes, Leibniz, Locke e Hume, onde o último com seu ceticismo representa o passo mais próximo da radicalização completa do problema e por isso esse é o responsável por acordar Kant de seu sonho dogmático. O problema cético, no entanto, precisa também ser radicalizado até não parecer um simples problema empírico acerca do alcance psicológico do conhecimento, mas sim um problema mais amplo a respeito da tendência inevitável da razão pura a transcender seus limites. Semelhante golpe de visão global acaba por demarcar todo o horizonte dramático do contexto da metafísica. Tendo estendido dessa maneira os limites da problemática moderna, pressupomos que se chegaria a uma revolução copernicana da filosofia, uma abordagem crítica do problema da razão pura, e uma subseqüente atitude transcendental a respeito da metafísica.

Isso, no entanto, faz com que a metafísica se confunda parcialmente com as características transcendentais, e perca resquícios da sua carreira ontológica antiga, bem como a teológica. E assim, a idéia da filosofia como a ciência que administra a relação de todos os conhecimentos com os fins últimos da razão pura sofre um último condicionamento. Kant chamou de filosofia transcendental uma espécie de sucedânea da metafísica no sentido crítico de sua exploração da razão pura, e são as características dessa qualificação transcendental que nos interessará discutir no fim da dissertação. Assim, o nosso problema é uma reprodução do problema de Kant, interpretado como uma subsunção sistemática das questões modernas até devolvê-las um caráter radical, que explora uma nova vocação à metafísica, como Filosofia Transcendental.

Enquanto os dois primeiros capítulos são uma apresentação da linha de problemáticas que culmina no desafio cético de Hume, e finalmente é englobado por Kant em uma dedução transcendental dos conceitos puros, o terceiro e último trata de explorar essa nova caracterização da filosofia, decorrente da maneira transcendental de substituir a metafísica, e a maneira crítica de abordar a razão pura. O idealismo transcendental, como doutrina subjacente a essa nova abordagem da filosofia, tem um sentido epistemológico supostamente óbvio, uma vez que sacrifica a cognoscibilidade da coisa em si em favor de uma doutrina das condições empíricas do conhecimento. Porém, o que está por trás da cortina da experiência não é rigorosamente impenetrável: como vemos no ideal da razão pura, existe um sentido prático diretamente proveniente da realidade noumenica, que nos dá inclusive comandos morais e justifica a fé. Portanto, não é tão óbvio assim que a coisa em si seja um mero modo de consideração transcendental do objeto, que no nível de reflexão empírico tivesse realidade plena. Esse impasse reflete o embate entre Strawson e Allison. A nossa dissertação adotou a argumentação de Allison de que o idealismo transcendental de Kant não implica um psicologismo (fenomenalismo), mas rejeitou a sua interpretação meramente epistêmica, pois nela o peso da problemática da coisa em si é diminuído até não sobrar senão uma espécie de metodologia da ciência empírica.

O capítulo três – e último – tenta discutir o caráter do idealismo transcendental pelo seu valor para modificar a abordagem da metafísica e, consequentemente, a própria filosofia. Portanto, por um valor maior do que o de ser uma mera propedêutica da ciência. Discutimos a visão de Lebrun e Bonaccini, para quem a problemática da coisa em si guarda uma inevitável aporia, o que corresponde ao fato de que o problema da razão pura é uma dialética inevitável. Discutimos também a visão de Heidegger em A tese de Kant sobre o ser, onde é proposta a interessante tese de que a lógica transcendental e os postulados do pensamento empírico em geral são maneiras de explicar as modalidades do ser e, portanto, a doutrina transcendental é uma adaptação da ontologia para um conceito pós-científico da filosofia. Nossa interpretação, coincidindo com Bonaccini, Lebrun e Siemec, adota a posição de que a filosofia transcendental não é nem primariamente ontológica, nem primariamente epistemológica, mas, porém, a antiga problemática metafísica está presente no modo de pensar epistemológico transcendental, que não é, portanto, uma mera propedêutica da ciência.

Na última subseção discutimos a coincidência entre o caráter da filosofia transcendental e a sua vocação não natural, usando o apoio de Husserl em A idéia da Fenomenologia. E concluímos a dissertação com a ideia de que a solução kantiana do problema da metafísica envolve a o postulado de seu caráter não natural e essencialmente problemático, motivo pelo qual não goza do mesmo sucesso das ciências empíricas e a lógica. A nova abordagem da Filosofia derivada dessa caracterização da metafísica é essencialmente não dogmática e nem cética, porém, não é especialmente epistemológica ou ontológica, e nem pertence a uma região própria. O importante é ter em mente que Kant preserva a filosofia como filosofia primeira, pois o peso e o valor de seu questionamento não se pode reduzir a uma abordagem natural e a uma propedêutica da ciência.

É viável se perguntar se dessa maneira a própria história da filosofia não é a narração dos diferentes modos como a metafísica é colocada em questão durante as passagens de épocas e gerações. É compreensível que em uma época obcecada pelos resultados práticos da ciência experimental, esse questionamento tenha o caráter de uma procura por fundamentos seguros e objetivos para o conhecimento. A diferença entre uma fase ontológica, outra epistemológica e ainda outra lingüística seria fundamentada em um traço comum e mais geral que elas próprias: o modo como cada época se questiona a respeito das aporias, dilemas, antinomias e paralogismos inevitavelmente presos àquele que as pensa (para Kant, este seria o ser racional, e estas questões seriam justamente as da metafísica). Isso simplificaria a explicação do fato de que as discussões desde Platão quase sempre mudaram pouco, porém degradaria também nossa compreensão teórica da filosofia, a diminuindo a um gênero não acadêmico ou intelectual: algo como um conjunto teórico de questões que nascem não de uma leitura sistemática ou uma formação universitária, mas de um ato, uma atitude, ou uma perplexidade metafísica: “Metafísica enquanto filosofar, nosso agir próprio, humano” (HEIDEGGER, 2006, p. 5).

terça-feira, 10 de maio de 2011

Aos interessados na minha dissertação.

Como invocar a relevância atual de Kant? É certo que ao grosso numérico da humanidade não faria falta saber o que Kant falou, problematizou ou resolveu. Mas isso talvez diga mais respeito à natureza de sua sensibilidade do que ao valor daquilo a que são insensíveis. Se estivessem interessados em mapear com maior amplitude os seus próprios problemas, tornar-se-iam imediatamente passíveis. E isso significa: mapear os seus problemas domésticos, políticos, privados, públicos etc. Todos os problemas, pois sem exceção expressam algum nível do envolvimento que pedem à razão para a sua resolução. Naturalmente, as questões científicas parecem ser as mais imediatamente afetadas pelo desempenho e a competência da razão; mas, a rigor, nenhum problema simples ou complexo escapa à sua influência. Razão não é mais do que o tribunal último de todas as contendas. Como invocar, pois, a relevância atual de Kant? Se alguém que vai apresentar uma dissertação de mestrado sobre a obra mais importante desse filósofo serve para alguma coisa, deveria ser para isso. Ora, a doutrina de um filósofo só pode ser exposta fiel e academicamente ao se confiar na possibilidade de recriar a paisagem de seus enfrentamentos, os interesses e os personagens da disputa. Abdicamos, pois, à parte acadêmica e fiel, para sugerir uma paráfrase mais apelativa à narração: um paralelo com um palco atual, onde os personagens somos nós mesmos. Se abstrairmos, pois, o contexto histórico de Kant e avaliarmos os seus problemas tal como ainda hoje eles estão presentes, poderíamos traçar o esboço de um análogo campo de batalha dizendo: a crise da razão pura e a aporia da coisa em si (os dois problemas capitais da Crítica da Razão Pura) vivem na nossa obsessão, tão atual quanto nunca, a esgotar absolutamente a fundamentação que condiciona nosso conhecimento. O que é a raíz de uma ambição ao controle absoluto do mundo que nos circunscreve. Essa primeira obsessão dá lugar a nossa tendência a materializar toda abordagem metafísica em dogmas regionais das ciências naturais, que precisam da autoridade dogmática da razão pura para fundamentar suas certezas. Em seguida, gera uma reação cética a esses dogmas e às subsequentes crises de metodologia enfrentadas pelas ciências de tempos em tempos. Kant ensinou a abordar a metafísica sem uma filosofia dogmática e com isso, sem exposição aos ataques da filosofia cética. Dessa forma, inaugurou a possibilidade de uma filosofia que revelasse a “coisa em si” como um fetichismo atávico da razão pura, uma mania de conter as coisas em nossas mãos, disposicioná-la à nossa abordagem controlada, não fragmentada, reduzindo a natureza aos limites culturais da representação, ou seja, da experiência possível. A própria metafísica, em todas as suas expressões (religiosas, morais, etc) não passaria de quartel general ideológico a serviço desse fetichismo com a idéia de “coisa”. É devido a Kant que sabemos que essa “coisa” (ou "objeto") é apenas um dogma que traduz o conjunto de elementos estruturais usados pela subjetividade para reduzir a natureza à experiência humana. A credibilidade desses elementos, por sua vez, é demarcada por meios que Kant não discutiu, preferindo as instituir como faculdades do entendimento humano alcançáveis através de uma analítica do entendimento e uma dedução das categorias puras do conhecimento, no que ficou conhecido por vários nomes: idealismo transcendental, psicologia filosófica, fenomenologia pura, etc, todos nomes associados a uma tese comprometida com a existência de juízos sintéticos a priori. A nós, que não compramos essa parte do kantismo, é possível especular com sugestões óbvias como o fetichismo com a idéia de “coisa” se instaura: as instituições políticas, por exemplo, são formas de distribuir o crédito que estrutura as reivindicações de verdade no mundo da cultura, selecionando as experiências ricas e as pobres, as que a História agrega e as que ela rejeita. As “coisas” do mundo e as verdades científicas que nelas se fundamentam vão assim se formando estruturalmente pela história, que não é senão a narração dos Sujeitos cuja experiência colonizou espiritualmente as outras. Aqui, porém, já estamos um pouco mais longe de Kant, seguindo o caminho de Hegel, Marx e que foi retomado mais recentemente por pós-estruturalistas como Foucault, etc. Lembremos, pois, Kant como o centro irradiador de toda essa filosofia repetida aos quatro cantos por cientistas sociais, psicólogos, historiadores, etc. Espero ter conseguido assim invocar o valor da Crítica da Razão Pura aos olhos dos que a negligenciam e dos que tem mais o que fazer do que se embrenhar nela, pelo que não os culpo, embora nunca sejam mais do que dezessete gatos pingados que me assistem neste blog. E o fazem sem nenhuma obrigação, pelo que não deixo de ser-lhes grato. Aos amigos a quem eu nunca me dignei a falar dela, fiquem aqui com o seu esboço. Faço assim também um treino antecipado à defesa, que agora não pode mais atrasar. Chama-se “Kant e a nova abordagem da Filosofia”. Abraços, obrigado.