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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Velho oeste medieval

Pelos meados do século XV os reis de Espanha, nação cuja reputação de superstição e intolerância durou séculos, expulsaram de suas terras sob decreto de morte todos os Judeus. Este povo, acostumado às movimentações diaspóricas, encontrou um asilo insincero nas graças suspeitas de Dom João de Portugal, que pelo favor lhes cobrou oito escudos por cabeça. Sem alternativa, os escolhidos de deus não puderam sequer participar da pechincha, e como o são todos os mais fracos, explorados, cederam sem reclamar. A condição não incrimina o rei: pondo preço em sua bondade, deixava expresso o caráter comercial de seu interesse e não se pronunciava como aliado de nenhuma parte, evitando desmoralizar a autoridade do vizinho castelhano. Assim funciona o mercado: é preciso medir o seu preço pelo dos outros comerciantes para competir. Negociando o que é certo ou errado, no entanto, o rei endividava a própria consciência. É o peso da coroa, tomar decisões difíceis.
 Como bom vendedor, para todos os efeitos, prometeu além do asilo o transporte para a África. Que satisfação pessoas nascidas na Europa poderiam ter com essa proposta de despejo? Quem pergunta esquece talvez a motivação independente fornecida pela carinhosa e abençoada instituição religiosa conhecida pelo nome invocativo de Santa Inquisição. Seu eco sugeria calafrios mesmo em não-Judeus da época. De modo que pagar para estar longe dela não podia ser assim um mau negócio na mente de um, ainda que tivesse que abordar a África selvagem e muçulmana para livrar-se da condenação histórica perene que lhes fazem os cristãos pela responsabilidade da morte de seu precursor espiritual. A proposta, a princípio desencorajadora, podia ao fim do raciocínio soar mesmo imperdível.  
Dom João lhes impôs um prazo, após cujo vencimento os reduziria à condição conveniente para terras de sectários fanáticos de cristo: a escravidão. Afinal, não era de se esperar que o interesseiro monarca fosse arriscar-se a uma controvérsia com o vizinho por causa de meros Judeus. Na contagem final do tempo concedido, verificou-se, entretanto, que o número de embarcações era escassa e precária. A frota se distribuía desorganizadamente ao longo do porto de Lisboa no dia da viagem. Em seu convés porco, fitando maliciosamente os novos passageiros de sua majestade, se empoleiravam vulgares marinheiros de sensibilidade engrossada pela força da circunstância, gordos e sujos, ou robustos de trabalhos braçais, criaturas de profundos preconceitos e vasta ignorância. Grandes gigantes de roupas largas e rosto moreno lascado pelo sol, animais de gestos bruscos e voz forte, displicentes e comediantes profanos, sem respeito por nada exceto por suas superstições marítimas e religiosas. Observando seus companheiros de viagem, a grande população de exilados, como cães maltratados habituados à desconfiança, reconhecia-os como essa classe de homens simples e obedientes que há em todo povo, até mesmo inofensivos, mas sempre prontos para tirar vantagem sem remorso das margens permitidas pela sua própria tradição. E o que eram eles, Judeus - o nome diz tudo - naquelas embarcações, senão mercadorias de menor valor que as comercializadas? Quem notaria ou cobraria uma avaria em seu corpo?
Viajar embalados de um lado para o outro como ciganos anônimos era o seu resignado destino. Os que puderam embarcaram; os que sobraram esperaram. A data de expiração fora prorrogada. E enquanto isso os deixados para trás fundavam raízes em Portugal com seu talento sempre louvado para o cálculo e o dinheiro, sua intimidade com as nuances virtuais da moeda, sua face viciosa, capaz de gerar inflações e levantar riquezas através da sacrílega economia de promessas e juras, modificações do crédito. Séculos de servidão lidando com a contabilidade da casa de fidalgos lhes antecipou a vocação para especuladores, que hoje tanto se aplaude nos operários de Wall Street. Para os cristãos, fazer dinheiro nascer do dinheiro daquela maneira não poderia parecer menos que bruxaria, pacto com o demônio. Explorar o valor do valor, o crédito da moeda, coisa blasfema de anticristos, vendendo a fé que só se deve a deus. Motivos e superstições para odiar Judeus fecundavam.
Os que conseguiram embarcar rumo à África sofreram o peso das humilhações, maltratados como vira-latas indesejados, fretados tal qual um pacote de má sorte forçosamente tolerado. A primeira nuvem de ruins agouros levantou na tripulação o desejo de arremessa-los ao mar. Eram responsabilizados por qualquer empecilho. O que era uma viagem ao continente encostado se transformou em uma ida e vinda interminável, posto que os passageiros ilustres do rei fossem tudo menos prioridade. Submeteram-se a um elenco pródigo de escalas comerciais enquanto seu suprimento pessoal ia chegando ao fim. Como não tinham exatamente o direito a uma opinião, nunca lhes fora dada uma estimativa do destino. E com a resignação e paciência hebraica de quem espera ser desagravado por um deus vingativo, singraram mares pagando caro para comer e beber da provisão dos seus carrascos pilotos. Essa condição se estendeu até o ponto absurdo de desembarcar com apenas a camisa do corpo: um figurino atraente para começar a nova vida em um terreno hostil, não bastando já o estigma do povo execrado – e escolhido.
A notícia do transporte abominável chegou aos ouvidos dos que ficaram e os conformou com a alternativa de se estabelecer em Portugal, como servos. O sucessor de João, o célebre Manuel patrono das navegações, aboliu a sua miserável situação concedendo o benefício dos direitos políticos. Porém, a liberdade não os converteu a cristãos e o povo de Abraão permanecia instanciando as leis como estrangeiros sem raízes, o que seria a sua tragédia até o século XX. Faltava sempre a confiança, o benefício da dúvida, para que lei pudesse ser interpretada da mesma maneira com relação a eles e os outros súditos. Sua presença instaurava essa desproporção na distribuição do crédito social que cativa os pobres e alimenta a impunidade dos ricos, faz escravos mesmo numa democracia. O rei esperava ingenuamente que o apego pela Europa e a terra de Portugal, onde já tinham granjeado riquezas, mais a intimidação dos marinheiros e o conforto de uma terra conhecida, houvesse lhes influenciado ao cristianismo. Subestimou a reconhecida obstinação de ânimo religioso desses herdeiros inveterados do antigo testamento. Não demorou a que, mudando de opinião, Manuel lhes ordenasse a saída do reino. Nem assim ganhou o monarca novos súditos. Os perseguidos infelizes preferiram enfrentar o temperamento imprevisível dos piratas que decepcionar seu deus antigo.       
     Manuel, frustrado, suprimiu dois dos portos assinalados ao transporte dos estrangeiros. Assim radicalizava as consequências da decisão dos firmes circuncisados, os forçando a colher apenas desvantagens dela. E qual a vantagem disso para o rei? Por um lado intimidava mais passageiros, temerosos de compartilhar uma nave pequena com ambiciosos e agressivos animais do mar em um percurso agora ainda maior. Com efeito, alguns judeus, encantados pelos seus próprios tesouros, não temiam nada mais que um saque. Por outro lado, dessa maneira facilitava a execução de seu plano de separar os pais dos filhos menores de quatorze anos, os aglomerando todos em um mesmo cais. O projeto macabro envolvia a possibilidade de recrutar os jovens ao cristianismo em um período mais liberal da educação.  
Novamente fora subestimada a paixão e fidelidade dos banidos. Ou talvez fora superestimada a incondicionalidade do seu amor à vida dos próprios filhos. Cercados pela milícia do Estado, percebendo que lhes roubavam dos braços os primogênitos, por egoísmo e compaixão, essa miscigenação insana de emoções, se lançaram aos fossos do mar junto com os filhos, deixando-se esmagar pelos navios que descansavam rente aos muros do porto. Um espetáculo horroroso de sacrifício calculado, resignado e cruel registrado por Bispo Osório, historiador latino. Poupavam os filhos da violência que não conseguiram impor aos pais, os banindo da própria vida, sentença radical talvez demais para quem não teve sequer opção do livre-arbítrio ante os dilemas sufocantes que acometiam aquele povo de compleição estóica. É como se arrastassem uma lógica maldita: se houvesse algum futuro cristão entre os precoces projetos de homem, os pais não faziam mal em vingar a desonra os chacinando e, a respeito dos firmes moleques que em circunstância normal não negariam as raízes, lhes prestavam o serviço de salvá-los de uma vida imperceptivelmente vivida na fé errada. Portanto, praticavam essa regra fatídica dos pais: decidir sabendo que os filhos lhe agradecerão no futuro. Exceto que nesse caso não haveria ocasião futura de agradecimento, a não ser na outra vida, aquela de felicidade eterna, para onde as almas iriam na condição de não aceitarem o falso Messias, o cristo. Vê-se que o egoísmo dos pais vale fácil por altruísmo.  Finalmente, esgotado o prazo de partida e sem meios de transporte, os Judeus remanescentes retornaram à servidão, condição na qual construíram sua micro-história e sua participação na rede de negociação da liberdade, deixando seu testamento paralelo aos séculos e ciclos de ideias que nós, muito orgulhosos, lemos nos livros e documentos contados pela versão dos vencedores, convencidos de que nasceu tudo de uma peregrinação espontânea do espírito livre da humanidade.
Uma minúscula fração se converteu ao cristianismo. Nunca se pôde acusar hipocrisia à fé e identidade desses assolados.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Montaigne e suas histórias

O autor dos Ensaios nunca pára de me surpreender com o volume inesgotável de contos, sua inclinação para testemunha, registrando causos que vão desde relatos populares até  detalhes de batalhas épicas. Comungando da intimidade de provincianos de feira como da de reis antigos e generais ilustres, Montaigne é o verdadeiro contador de estórias, o pescador do universo filosófico. Com efeito, seria preciso muito ouvido, muito tempo dispensado ao mundo, para colecionar tanto assunto e matéria de sucessos dispersos e desconectados. Talvez não bastassem menos que cinco ouvidos, tímpanos esponjosos para a voz de mais de um mundo, uma vocação extradimensional. E não era o autor o dono exclusivo de uma sensibilidade caótica, como ele mesmo reconhece ao se identificar com um escritor de rapsódias? Mas sobretudo, que fez delas o seu talento, ajudando a parir um gênero literário, uma nova maneira de tabalhar nessa oficina de recortes, cola, costuras de letras, imagens e formas. Sua mais extraordinária ferramenta de espírito é justamente essa receptividade para o fragmentário, sua fecundidade de perspectiva e ubiquidade regional. Quem tem ouvido para tantas vozes não pode jamais ser um provinciano.
E é por isso que muita gente há de ficar cismada, pasma, de ler as pitorescas coisas que esse aristocrata do século XVI tinha para contar. Seu exemplo deixaria sempre um pouco constrangidos esses historiadores das ideias que nos garantem que até o conteúdo da imaginação tem data de vencimento e de nascimento. O que diria, pois, do que tinha Montaigne a dizer de suas formigas? Está documentado em um de seus ensaios que, observando os dois formigueiros sedidados em seu terreno, acompanhou o cadáver de uma formiga do formigueiro A ser carregada ao formigueiro B – o contador não diz nada sobre a morte da conduzida. Em seguida jura ter observado uma comissão de membros do A indo negociar o cadáver, levando folhas e gravetos como um gênero rudimentar de propina para o resgate. Tudo isso é contado sem a menor sombra de absurdo. De modo que fico a imaginar que espécie de sensibilidade e inteligência era essa. Sua interpretação meio louca dos fatos passados no microcosmos de seu quintal deveria ser o indício de uma mente aberta até demais, até o ponto de deixar os pressupostos rigorosos da ciência parecendo preconceituosos e intolerantes.
             Em outro momento soletra a bonita estória de um leão e um desertor, cuja veracidade ele assevera como um caso comum e difundido na tradição popular da antiga Roma. Durante uma das campanhas de César, um soldado mais cheio de espírito artístico que gana de guerra abdicou de sua farda e cargo, fugindo pelo deserto. Seu destino, porém, não foi favorável e uma tempestade o forçou a improvisar pouso em uma providencial caverna onde, despertado no meio da noite, assombrado pela sombra difusa de uma criatura movimentando-se nas trevas, terminou descobrindo em sua companhia um leão enorme . O acuado cavalheiro não tinha para onde fugir, e com surpresa verificou que o felino não o assediava como um prato de boquinha da madrugada. Sua feroz catadura dissolveu-se em uma misteriosa fisionomia de súplica. Aproximando-se como um gato serpenteando a calda amistosa, deu a ele a pata dianteira como uma dama esperando a cortesia de uma etiqueta. Hesitando um pouco, porém sem alternativa, avaliou as condições muito avariadas da pata do leão, vítima de um espinho que havia se encravado com a intensidade trágica de um prego da cruz. O solidário ex-soldado de temperamento sensível cuidou das chagas do leão e, dizem, viveu com ele pelos próximos anos, compartilhando comida e bebida, até que foi capturado pelos policiais do exército que patrulha os rastros dos desertores. De volta a Roma como um cativo, sua sentença era o coliseu. Passou um ano preso esperando a prodigiosa lista de espera para uma audiência pública com o dedo polegar de César. Quando finalmente chegara sua vez de ser comido pelos leões, a platéia histérica do grande circo de horrores romano com surpresa observou que a investida do animal contra o cativo indefeso desembalou inexplicavelmente a apenas um passo de distância de seu almoço. Frustrados em sua ambição de sangue, uivaram contra a clemência audaciosa do irracional, protestando aquela abstinência repentina, aquele arbítrio disciplinado da fome animal. Quem perdoa é só César! Os que morrem na arena apenas o saúdam - aqui acabam seus direitos. Maior foi a surpresa quando homem e animal entraram em uma estranha carreira de abraços e afagos, ronronando um e chorando o outro com a energia sensível de velhos conhecidos que se haviam dado por mortos. A emoção da audiência não podia ter sido maior em um desfecho de Eurípedes, e o grande polegar do imperador se pronunciou virado para o céu, expressando grande entusiasmo e correspondendo ao desejo do povo.  Montaigne conta, com seu habitual tom de normalidade e indiferença, que leão e homem foram libertados e viveram o resto de seus dias de mortais na Roma como dois amigos inseparáveis, verdadeiros retratos de uma fábula impossível, muito estimados e celebrados pela vizinhança como personagens autênticos de um final feliz.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Mais sobre a defesa de uma nova emancipação da filosofia (sobre os efeitos administrativos de um anti-naturalismo)

Existe uma economia geral dos sucessos do conhecimento: consiste na totalidade dos modos como ele valida a si mesmo ou administra recursos de validação, instituindo moedas fundamentais do comérico acadêmico, a saber, paradigmas fundados em instituições universitárias poderosas. Em algum ponto da história esse processo geral tinha pressupostos metafísicos mais nítidos; sua ligação com a religião, com os interesses do Estado, ou simplesmente a sua raíz linguística era mais transparente. A filosofia em todas as suas nuanes foi por muitos séculos a disciplina onde se discutia todas as formas dessa transparência, fosse fundando novas metafísicas, fosse discutindo ideias políticas ou os pressupostos epistemológicos e linguísticos subjacentes a um padrão paradigmático bem sucedido – hoje a Física, a Química, a Antropolgia, etc. Até pouco tempo atrás, a natureza geral da negociação entre a produção de conhecimento e seus instrumentos de validação faziam parte de uma mesma mistura, de modo que não se distinguia ciência da filosofia do mesmo modo como hoje se tornou trivial. Newton fazia um tratado de filosofia natural. O conteúdo das teorias era imiscuído com a semente da especulação filosófica, de modo tão inseparável, que seria difícil filtrar onde terminava um e onde começava o outro. Mas o tempo passou, os próprios filósofos começaram a desconfiar demais de si mesmos e reconhceram sem demora que toda aquele dejeto metafísico não passava de um reflexo objetivo das formas da experiência humana. O positivismo logo se aproveitou de tal constatação, pedindo sem reserva a emancipação completa das ciências. E mesmo agora que não se encontra mais positivistas pela rua ou pelos corredores, a ciência se acostumou tanto com o seu confortável lugar que não admite mais qualquer interferência externa à sua metodologia. Suas bancas e departamentos universitários são verdadeiras máfias a serviço de um paradigma, uma zona de conforto muitas vezes degradante. O naturalismo filosófico predominante nas últimas décadas é reservado o bastante para não defender teses positivistas, mas preserva e protege as suas conquista ao questionar o suposto poder de um método alternativo e alienígena que pretendesse dar regras primitivas – como categorias puras – para ler a experiência e interpretar a cultura, controlando de fora a economia inteira do comércio acadêmico do conhecimento. Isso seria quase como um socialismo! Um despeito, um ataque dos inimigos da sociedade livre. Abaixo à filosofia!  Assim são suas palavras de ordem: “nós cientistas fazemos nossa própria revisão. Não existe lógica, gramática, metafísica ou epistemologia, a não ser a epistemologia consorciada com a nossa própria metodologia. O essencialismo e a analiticidade são mitologias opressoras! Se precisarmos de apoio, temos tudo de que precisamos na própria ciência. Apelamos à teoria da evolução, à psicologia, à psicanálise, até à antropologia. Em último caso, tudo se explica pelas teorias mais gerais da Física, a mãe ciência. Não temos a explicação para tudo, mas não precisamos dela. Revisamos a nós mesmos”. E, no entanto, não vejo hora melhor para atacar esse funesto naturalismo, reivindicando contra ele uma tese administrativa. Não tenho propensão para revolucionário e provavelmente nunca irei me engajar em lutas. O que não me custa a despesa de pedir uma volta da filosofia em versão administrativa, uma plantação severa de instituições que zelem pelo interesse filosófico – regulada por pessoas saídas do curso de filosofia – em todas as camadas da academia. É natural que isso soe falso e um pouco pretensioso. Hoje, no entanto, não vejo nada mais ao qual pudesse aplicar minha energia e estou bastante disposto a me engajar nisso, pelo menos elaborando textos de blog - o que é um início.