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sábado, 12 de novembro de 2011

A situação política do departamento de filosofia na universidade


Por filosofia não se entende mais o mesmo que na Grécia antiga, na Idade Média e nem mesmo no século XIX. É verdade que essa disciplina talvez seja hoje mais ou menos como um país sucateado ao qual permitem continuar com o nome, porém não tem mais exército e nem consciência de sua própria unidade. É uma peça de museu conservada por condescendência. Para não aprofundar o assunto, especulo que a perda de sua peça mais fundamental de artilharia foi a causa principal dessa tolerância condescendente com que é abordada nos departamentos da universidade. Que peça? A metafísica. Desde que Kant fez sua cirúrgica incisão nas asinhas dessa – a salvando, porém, do ataque de açougueiro de Hume, que queria comê-la no jantar – é impossível formular as suas questões sem um laivo de vergonha íntima. Quem irá aprofundar os interesses da razão até suas perguntas mais fundamentais, agora, especulando sobre deus, a liberdade, a alma, etc? Ninguém. A não ser os religiosos e seus derivados, que sempre tiveram a vantagem da falta de vergonha.
O projeto de Kant era tão prometedor, limpando o terreno rugoso e ilusório das pseudo-questões, encarregando a filosofia com novas maneiras de cuidar dos interesses da razão, uma função  talvez muito mais nobre como fiscalizadora “Crítica” dos fins da Cultura, que não se podia imaginar – pelo menos à época – que os positivistas o usariam de pretexto para reivindicar a autonomia vingativa das disciplinas científicas! – ciência entendida, agora, pela ênfase no seu caráter tecnológico (o que não é menos verdade nas ciências humanas). E isso, não se enganem, é uma questão apenas colateralmente filosófica. A manobra foi política. As repercussões dessa conquista ainda são sentidas hoje nas universidades: matemáticos, engenheiros, químicos, físicos, antropólogos, cientistas econômicos e sociais, historiadores e psicólogos, gritaram a sua independência e fazem dela o seu proveito político e administrativo - embora os benefícios intelectuais sejam bem mais suspeitos.
Porém, quando se pretende arquitetar, avaliar, julgar e criticar – assim como superar eventuais crises – os resultados cognitivos dessas disciplinas, os seus especialistas tentam sozinhos e a trote de cavalo, com grande estardalhaço de suas ferraduras, aprofundar a compreensão de suas perguntas e problemáticas. Procuram pontos cegos, investigam a história dos sucessos e fracassos, entram no debate da validade e projetam achar os pressupostos epistemológicos e semânticos de sua metodologia. Mas, quando fazem isso, estão justamente cuidando novamente dos fins últimos da razão. Será que estão fazendo infame "filosofia", ainda que como um barbeiro dançando balé? Mas isso é questão de nomenclatura. Chamem como quiser, a verdade é que existe e nunca deixou de existir – mesmo nas épocas de crise mais dramáticas – as perguntas que revelam um interesse da razão com seus próprios fins arquitetônicos mais típicos. Se elas são feitas através de metafísica vulgar, popular, ou através de epistemologia e uma compreensão da bases metodológicas, isso é outra questão. Eventualmente um grande gênio surge nas ciências tecnológicas, como alguns lógicos do nosso departamento saídos do curso de Engenharia, e o seu desembaraço técnico é tão grande porque a sua sensibilidade já ultrapassou desde o começo o paradigma particular de onde nasceu: o seu contato com a ciência já é sempre, também, filosófico, isto é, coincide com um envolvimento radical dos desafios da razão pura – da Cultura - que ele enfrenta. Ele nunca especula no vazio, como os matemáticos sem uma compreensão de número, os historiadores sem uma compreensão de história, os antropólogos com uma versão técnica de homem. Acaba, entretanto, mofando no departamento de Filosofia, embora sem prejuízo de sua celebridade, pois ninguém poderia prestar atenção a ele na engenharia – seu nicho original.
Apresento um quadro exagerado, propositalmente. Na realidade, há mais miscigenação de interesses e intersecção de negociações entre a filosofia e as ciências na universidade do que deixei parecer acima. Principalmente nas ciências humanas, estuda-se muita filosofia e os professores de ciências sociais e psicologia não ignoram essa necessidade. Muitas vezes, ainda assim, sinto como se essa condescendência não fosse uma homenagem, mas uma trapaça: é porque se equilibram em paradigmas imaturos e metodologicamente flexíveis que exploram uma aliança oportunista com a filosofia, de onde retiram apoio ad hoc sempre quando se sentem em perigo. Não é se de se esperar de trapaceiros como esses que, se um dia puderem consolidar seus paradigmas com tanto sucesso como os físicos, vão abandonar sem escrúpulos a sua muleta filosófica? Uma coisa que aprendi é que somente o próprio interessado deve cuidar dos interesses. O interesse da filosofia não será melhor considerado do que dentro do seu próprio departamento, por mais defeituoso, vaidoso, imaturo que seja. Não será preciso que, em uma resposta também política, o departamento de filosofia assuma suas responsabilidades e explore a dependência dos outros cursos com relação a ele? – pois é óbvio que essa dependência existe, mas por não ser explorada, ocasiona esse festival febril de besteiras intelectuais frequentes quando um químico, um historiador e um antropólogo se aventuram a criar e especular com mais ousadia sobre o próprio campo.
Ora, os cursos técnicos e científicos em geral mudam a sua abordagem quanto mais se tornam acadêmicos em sentido estrito, isto é, quanto mais escalam os compartimentos institucionais da academia, indo para o mestrado, o doutorado e a carreira universitária. Essa mudança de abordagem é proporcional a um gradual acréscimo de dependência e imaturidade, pois é deste momento da escada em diante que vão deixando o terreno seguro de seu paradigma e se expondo ao mundo da cultura e dos conflitos da razão em sua expressão selvagem. É natural: quanto mais o interesse técnico declina em favor de um interesse puramente cultural, mais inútil se torna tudo o que ele aprendeu. Nesse momento aparece claramente a dependência com a filosofia, que os filósofos de hoje – maus políticos, coitados – não exploram.

Naturalmente, para quem quer sair da universidade e correr para alguma empresa ganhar dinheiro de verdade, não precisa se preocupar com isso. Mas para quem almeja seguir a carreira intelectual, deveria – e muito  - considerar tal preocupação,  e se não o faz, é apenas por ausência de pressão de quem deveria lhes pressionar. O departamento de filosofia deveria de uma vez por todas assumir a sua responsabilidade na liderança da Universidade; e deveria meter o nariz com uma impertinência épica em todos os outros departamentos, plantando fiscalizadores que selecionassem com o rigor devido a ambição de ser “doutor”, ou philosophical doctor. Esse projeto levaria os filósofos a serem os legítimos chatos da universidade, a pedra no sapato monumental de todo cientista medíocre que almejasse ter um título gratuito de doutor no seu currículo. Não importa. Se a responsabilidade não for deles, será de quem? Não há outros mais interessado nem mais imbuídos com a responsabilidade de salvar a cultura do interesse mesquinho, seja do dinheiro, seja da simples vaidade gratuita de pseudo-intelectuais com sede de títulos.
A sociedade não precisa de tanta gente instituída na academia. Se quiser ser doutor filosófico (Phd), é preciso saber aprofundar filosoficamente as questões de sua própria disciplina, tratar com desembaraço suas questões, entender a raiz e se expor aos desafios mais elevados da Cultura. É preciso mais que isso: pagar tributo a quem pensou a nossa cultura de maneira mais radical: Platão, Aristóteles, Kant, Frege, etc. É preciso passar pelo crivo Crítico. Se não, há sempre uma opção: sair na graduação e render seu tributo à sociedade com seu trabalho. É tão digno quanto. Esse projeto parece inviável? Sim, mas apenas porque o departamento de filosofia tem uma tradição de docilidade e inofensibilidade marcante. Um conjunto de investidas, debates, meteção de nariz, nos levaria direto para uma posição estratégia na estrutura acadêmica, e não deixaria nenhum curso fora de nossa abrangência. Acuados, tentariam se defender apelando para recursos técnicos, e assim acusariam mais ainda suas fraquezas, mostrando que são tão competentes quanto pedreiros intelectuais, operários de ideias, como Quasimodo em Notre Dame: sabe tudo dentro de sua igreja, mas lá fora é como um tubarão em poça d´água. Pode parecer utopia, inviável do ponto de vista financeiro, mas eu penso que não: é mais fácil do que se pensa. Quem já viu a insegurança dos professores dos outros departamentos toda vez que um filósofo está presente na banca, sabe pelo cheiro de medo que a universidade não esqueceu essa dívida remota, e teme mais que tudo uma cobrança. É hora de cobrar. E não se trata de poder pelo poder: é questão de responsabilidade, dever; reassumir a posição que lhe convém como guardiã da cultura.


Apêndice

Agora uma questão técnica. A dependência entre as ciências e a filosofia parece ter uma estrutura simples, principalmente quando lemos teorias como a fenomenologia de Husserl e os projetos epistemológicos de Carnap. Mesmo as teses de Quine, que relativizam enormemente a força dessa dependência, clamando inclusive por uma naturalismo que enfraquece a influência da filosofia no pastoreamento das ciências, mesmo essas teses apresentam um quadro por assim dizer simples. Chamo-lhes de simples pois tratam a coisa teoricamente e não investigam a distribuição política das vozes envolvidas no diálogo moderno. É preciso entender que na universidade hoje há departamentos cujos alunos e professores que nunca estudaram  sequer uma página de metafísica e epistemologia que, não obstante, sofrem a influência invisível de pressupostos não científicos. Como não sabem o que esperar deles, os mais inteligentes arrumam um jeito de agregá-los à sua rede teórica como se fossem da mesma natureza que todo o resto. Não fazem a separação entre filosofia e ciência. Isso leva a pensar que, na prática, a estrutura da negociação entre ciência e filosofia é bem mais complexa do Husserl, Carnap ou Quine deixam transparecer. No fundo, mesmo sem terem uma ideia dessa negociação, a prática a agrega e a torna invisível. Ora, a minha questão é, portanto, prática e segue para a política. Os autores mencionados deixam justamente de estudar a influência que a omissão ou a ação política tem no desenrolar desse diálogo. Por isso a minha proposta nesse post não é teórica. Não venho aqui sustentar um anti-naturalismo, um anti-positivismo ou uma volta aos preceitos Críticos de Kant. Venho na verdade defender que existe um espaço de negociação político que simplesmente não está ocupado: o dos filósofos. Ora, não seria preciso plantar autoridades institucionais para justificar a voz essa parte da discussão que, por falta de imposição, está calada? Acredito que, embora se saiba obviamente que um país de terceiro mundo tem influência sobre o sucesso de um de primeiro mundo, essa interdependência se torna invisível e irrelevante se não se criam vozes políticas, entidades institucionais (a ONU, etc) que zelam por seus interesses. É o mesmo que acontece com a filosofia hoje na universidade. Por algum motivo o filósofo se resignou com seu lugar subalterno. Mas eu acredito que com um pouco de "meteção de nariz", estaríamos claramente no centro da azáfama e, até mesmo, no lugar de liderança da universidade. Obviamente a dependência das ciências com a filosofia é bastante fraca na graduação dos cursos; mas, como eu disse em cima: quanto mais sobem os cargos, mais essa dependência começa a ficar visível e, acredito, é nesses pontos que quem sai do departamento de filosofia deveria cravar suas unhas e assumir um pedaço da fatia de voz. Para quem acredita que estou sendo muito ambicioso: ora, isso é uma tese administrativa! Obviamente, gênios que não precisam de universidade, autodidatas de elite, esses não precisam se subordinar a medidas administrativas que servem justamente para distribuir o policiamento intelectual e garantir - para os não gênios - um padrão de aproveitamento intelectual. Ora, um autodidata genial incluiria maneiras de reproduzir o diálogo entre a filosofia e a ciência dentro de si mesmo. Já na academia, é preciso criar, impor e até lutar pelo lugar no diálogo. Nesse nível administrativo, meu projeto é tão viável como o que está em vigência hoje: a liberdade irrestrita de pseudo-cientistas e a omissão filosófica. Portanto, não sustento aqui uma tese epistemológica sobre as maneiras como um autodidata ideal acumularia conhecimento. Minha tese se aplica à estrutura administrativa da universidade e a alunos e professores que se utilizam das garantias e regras acadêmicas para otimizar a produção de conhecimento.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

“Quanto mais conheço os homens, mais estimo os animais.”


 “Quanto mais conheço os homens, mais estimo os animais.”. Esta não é uma frase de que me posso gabar, não me pertence. Mas seu revestimento e efeito perfumado levam a julgar que o seu autor, Alexandre Herculano, não a construiu para guardar com direitos autorais, mas para vê-la gravitando de boca em boca sem fiscalização. Deixando-lhe intacto o mérito como epigrama espirituoso, empresto aqui o poder sugestivo de sua sua imagem e ajudo a propagar o seu resíduo semântico, seu célebre "significado", acrescentando com modéstia a sutileza furtiva de uma versão da minha própria boca - mais o assentimento e apoio de minha própria sensibilidade.