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domingo, 20 de março de 2016

O método de jardinagem Adelmo-Figueira

Adelmo-Figueira não perdia uma refeição sem seu gole de cachaça. Levava o elixir num cantil, de modo que imprevisto algum o podia surpreender. Adelmo tampouco abdicava da oportunidade de magoar os ouvidos de seu amigo Josué com o flagelo de uma campanha de opiniões egocêntricas. Sentado ao seu lado, a viagem era longa. Já era o segundo dia suportando notícias polêmicas e assuntos enxutos de sangue. Agora ele dava opinião sobre a onda ecológica. “Aguentar você por dois dias e sua matraca é serviço de santo! – desembuchou Josué ao figueira quando chegaram a um posto no meio da estrada.
            -... eu sei, eusei que é difícil de ouvir, quando alguém tem mão pra dizer a verdade, ninguém tem culhão pra ouvir... Mas é certo: esse negócio de aquecimento global é asneira. O petróleo é a melhor fonte de energia, e não vai acabar nada! Eu, você, vamos tudo virar petróleo! E árvore é boa cortada, que em pé só atrapalha o progresso... O planeta só se aquece, não tem jeito não, esfriar é que não vai.  Reclamar de aquecimento é como chorar porque o relógio não corre pra trás...
            O posto esquelético, com catadura de abandonado, era o único vestígio de povoamento humano que a vista alcançava.  A paisagem lembrava o intestino do sertão, um ermo absoluto que a estrada condescendia em contornar, como uma promessa de resgate cobrando um favor no meio do deserto. E aquela massa de viajantes acalorados descia do ônibus com pressa de chegar ao ar; esse ar seco do nordeste que, por intragável que fosse, ainda vencia a bolha de abafamento daquela atmosfera enclausurada de quatro rodas durante a hora do almoço.
            Seu Josué passeava de um lado para o outro esticando as pernas enquanto os demais se serviam de água na lanchonete caindo aos pedaços. Felicitava-se os minutos de sossego sem o camarada e as conversas de ciência. No estacionamento, além da embarcação negreira que vinha vencendo asfalto de Socorro-SP ao norte do Brasil havia um único carro, em cuja porta aberta uma mulher de pé vinha empoleirada, de bruços com o peso sobre o capô, analisando antenadamente um por um aos pacientes que se estendiam em sua linha de visão como uma manada migrando de miragem para miragem. Vestida conservadoramente, com saia cumprida, de branco, fazia bem a imagem da família caipira. Curiosamente, seus olhos trabalhadores pareceram descansar em Seu Josué, como se nele algum problema se acalmasse. Pintado com a tinta atraente de uma solução, um pouco encabulado, o senhor de seus quarenta e poucos anos se deixou assediar e até se fez de vaidoso, redefinindo a regra de seu ritmo corporal ao capricho da passarela de calçamento esfolado e rachado, entremeado por intervalos de terra.
            Atrás, um berro de cachorro acossado. “... de novo, seu safado!”, gritou uma voz íntima que, em contraste, vinha se projetando desde a esquina do galpão pela garganta de um homem com uma perna levantada à altura da bunda de um cão vira-lata, em um decreto que seu pé lhe fazia ao rabo. O bicho tinha a destreza para soluçar em um pulo com o efeito da bicuda, sem deixar de agarrar no ar um membro carnudo de frango assado que acabara de lhe escapar das mandíbulas com o impacto, prova de sua culpa no saque à marmita do zangado. Era vida naquele clima de necrotério escaldante! Seu Josué observara com divertimento a dinâmica daquela relação, onde o cachorro abusado certamente também abusava do dono do pé carimbado em seu traseiro. Provavelmente era uma dupla de amigos ranzinzas, uma família desafiando os limites da própria paciência, para todo o sempre enquanto durasse o reinado do sol e da poeira na única habitação de um deserto sem fronteiras.
            Do outro lado da margem da interpretação, a mulher, sinceramente descontente, saiu do conforto inerte da sua posição de observadora para assumir a de atora enérgica. Atravessou a distância que separava seu juízo da ação, chegando perto do rapaz enquanto soltava pelo caminho as exclamações urgentes: “Que é isso? Você sabia que está explorando esse animal?”, ao que o outro não soube responder senão com um rosto que de tão ingênuo soava cínico. Achou mesmo que ela não merecia resposta. Mas de seus olhos emanavam uma energia tão cheia de dúvida e descrença, marejados de uma desconfiança tão sincera, que acusavam mesmo sem propósito o ridículo que a pergunta representava para ele. No entanto, o respeito pelo caráter da dona, mais velha e de aspecto reservado, vestida com classe, pelo menos aos olhos de quem ela podia enganar impunemente no atual ermo desamparado, preveniram o agressor de explodir em risos.
            - Como é dona? – respondeu, com traços infantis no rosto de desentendido.
            Mas a pergunta inofensiva ainda ofendeu à endereçada os brios da autoridade. Assim dócil e curioso, o audacioso devolveu o questionamento sobre a interrogadora. O cachorro, regozijado pela conquista, criava coragem para se expor novamente ao alcance da bota do mecânico – que era a profissão denunciada por seu macacão azul sujo de graxa. O cão inclinava o focinho levemente, interessado no comércio de intimidações que se dava através daquela indecifrável cadeia de grunhidos de seu “amigo” e a nova humana. Pressentiu que estava seguro e abusou da confiança, com o rabo abanando e posicionado a duas jardas mais próximo à dona do que ao homem. Ela respondeu:
            - Não se faça de desentendido! Pensa que eu não vi você explorando esse animal? Sabia que isso dá cadeia?
            O mecânico ficou desconcertado, olhando em volta para ver se não havia tropeçado em alguma criança, coçando a cabeça numa caçada de lembranças enfurnadas, cedendo já a um pensamento de culpas que não tinha, mas que poderia em todo caso ter aos olhos de alguém mais poderoso e sabido do que ele na interpretação do certo e do errado.
            - Não carece desses assuntos de polícia não senhora... – falou, com um toque de envergonhado – o que foi que eu fiz?
            - Estava maltratando esse cãozinho. Não tem vergonha? – a esta altura o cãozinho já se posicionava quase inteiramente no campo da dona, bem consciente de que aquela conjunção de ruídos havia triunfado. E o próprio animal já esboçava o seu grunhido oportunista por trás das pernas da protetora.
            - Olha dona, você não conhece mesmo essa peste... Se conhecesse...
            Mas ela lhe interrompeu sem cerimônias. Deu-lhe a chance de desaparecer enquanto ela virava as costas, pegava o pobre malandro quadrúpede vestido de maltratado, e balbuciasse uma jorrada de palavras infantis ao cachorrinho, que ao peludo assim martirizado pareciam piores do que latidos de um cachorro rival. Por algum segredo do instinto, no entanto, o animal se conformou, como sabendo que ali estava sua nova fonte incompreensível de alimentação nesse mundo de cadeia alimentar distorcida, onde sobreviver e se alimentar depende de muito mais do que da mera saúde dos dentes. Quanto cachorro doente e definhado, de casa, não come melhor do que um robusto vira-lata cheio de imunidade?


            Foi-se o ônibus...

            O mecânico desertou jogando bravatas ao ar com os braços e com meias palavras que evaporavam antes de formar uma frase, sugerindo que o azar de quem ficava com o canino ainda lhe aumentava o prazer de se ver livre dele. Como Seu Josué assistisse a tudo, perdia a noção do tempo e se abandonava às próprias reflexões, sofrendo em solidariedade o destino do cachorrinho mimado brutalmente em troca de abrigo. Trocou o pontapé por uma vida de barganhas indignas. Mas lamentaria ainda mais o seu próprio destino se nesse momento tivesse virado para trás e testemunhado seu ônibus fugindo pelo rabo da estrada solitária, levando suas malas e a esperança de apressar a fuga da opressão daquele calor furibundo. Pressentiu e virou, mas era tarde demais: já longe iam os seus pertences pelos tentáculos sem fim do nordeste brasileiro, eles com Adelmo, pouco se lixando para o dono que ficava para trás.
            “Amaldiçoada mulher!” – pensou em um rompante da raiva, transferindo a ela uma culpa que não queria para si; era muito peso para aturar. Voltou ao caixa do restaurante:
            - Oba! Acredita você que eu dormi enquanto ia o meu ônibus? Meu camarada nem pra avisar... Só serve mesmo pra encher o saco com abobrinha!
            - Ixi – respondeu o desconhecido por trás do balcão, onde também uma mocinha mais nova peregrinava com pratos e talheres chocalhando em uma bandeja de plástico – agora, só amanhã de manhã... Por aqui não passa muito carro não...
            - Amanhã? – relinchou o descrente com exclamação. Mas não adiantava argumentar, nem esquadrinhar a reserva de conhecimentos do outro com perguntas mais criativas, porque ele nunca voltou atrás de sua primeira informação. Não passava ônibus por ali, e nem na estrada, ele mesmo não podia fazer nada; que se fosse por ele, desviava o caminho principal e fazia tudo que é transporte vir por ali, que é como se vinha antigamente, “há muitos anos, na época em que isso aqui se via sempre cheio”. E iam comentando sobre as duas estradas, essa, a antiga, e a outra, mais nova e mais cheia de trânsito, embora a entrada ficasse longe, quando apareceu ao lado a mulher com o cachorrinho no colo. O bicho tinha uma cara de sofrido impagável, com o rabinho para baixo. Ela foi logo se intrometendo, dando a mão:
            - Olá, eu sou a Dona Fabíola do Carmo, você deve ser João Batista certo? O jardineiro que contratei lá de Perquezinho da Serra?
            A cara de Josué esbarrou com a do animal, aninhado nos braços protetores dela e farejando no outro uma competição na liga dos impostores. Grunhiu baixinho. “Que é isso, Bilu. Esse é o João Batista, vocês dois vão ser amigos”, admoestou a dona, que já tinha um nome preparado para a nova aquisição.
            - Sou eu mesmo, não existe outro... – respondeu o mentiroso. O jantar ia ganhar de graça, e até uma cama para não passar noite em banco de rodoviária.
            E enquanto se apresentava foi interrompido pela língua atarefada dela, que conseguia numa única investida abordar centenas de assuntos dispersos. Perguntou das bagagens, da vida, de seu tio, do último patrão, falou do marido morto, dos negócios, tanta coisa escapou dos seus lábios que já não era tão difícil ser João Batista quando só precisava ouvir e falar tão pouco.
            - Minha bagagem ficou no ônibus, acredite você minha senhora...
            - Ah, que desaforo... Essas empresas de ônibus e seus motoristas afobados, até parece que tem algo mais importante para fazer que dirigir. Nós vamos recuperar elas amanhã, não se preocupe. É fácil, basta um telefonema... De qualquer forma, nós temos as coisas e roupas do outro jardineiro, e você pode ficar com elas por hoje...
           
            O carro foi embora com os dois novos passageiros acomodados: um humano e o outro rabudo. Fabíola do Carmo não fechava a boca, ora alisava os pelos do animal e o torturava a preço de gemidos histéricos, ora abordava o homem com um tom mais sério e controlado. Contava como havia sido apresentada ao jardineiro e suas técnicas heterodoxas: “só ouvi falar bem de você”. Dizia que ela também era afeita às rupturas, às quebras de paradigmas. Que lia sobre magia, magia boa, do bem... enfatizava: “só do bem”. Tinha uma relação pura com a natureza, e conversava todos os dias com suas plantinhas. Tinha grandes expectativas para a intervenção do homem. Esperou por ele toda a semana, e tinha certeza de que ele gostaria da nova casa.
            - Sabe como é difícil nesse clima manter a sobrevivência das plantas...
            Chegaram e após mostrar a casa toda ao novo jardineiro, lhe ofereceu o jantar. A casa era habitada por outras três crianças, que festejaram o novo cachorro com um entusiasmo assombroso. Foi servida uma salada frondosa. “Você sabe que na minha casa não entra carne”, disse ao quieto jardineiro de conveniência, que a esta altura continuava apenas acenando com a cabeça e concordando com tudo.
            - Mas você é um mistério Seu João Batista. Quer me matar de tanta expectativa?  Conte-me mais sobre o seu famoso método...
                O quadrúpede embaixo da mesa rosnou mais alto. O pobre seu Josué, cheio de pompa, abriu seu conhecimento:
            - Ah, dona, o meu método é chamado “Adelmo-Figueira”. Adelmo-Figueira é um autor eminente de Socorro, Lá de São Paulo, grande gênio, precursor da jardinagem new wave, que consiste em  uma perfeita harmonia entre os elementos vegetais e os animais. Mas é uma surpresa, e te garanto que não vai se arrepender de esperar mais um dia...
            Decidiram que depois da janta era hora de dormir, e encaminhou o jardineiro para seu quarto. Pela manhã a Dona acordou com o barulho insistente do cortador de grama. Parecia mais estar embaixo de um autódromo. Desceu ainda de roupão e encontrou o cachorro preso ao cortador de grama por uma corda, qual um cavalo atrelado a uma carroça, levando a máquina sem pena da grama e das plantas que se iam decapitando.
            Na tarde do mesmo dia, horas mais tarde, a campainha tocou. O cachorro já estava a salvo, na soleira da porta, cabisbaixo ainda com o desaforo sofrido. Na porta Fabíola do Carmo, ainda escandalizada, distinguiu um homem com chapéu de bruxo, roupa extravagante e um saco com o que parecia ser uma classe de instrumentos de jardinagem.
            - Quem é o senhor?
            - Sou o jardineiro. Só consegui chegar hoje.
             A mulher pôs a mão na cabeça. Esboçou um cacoete misterioso, que não se sabe se dava sinal de que pensava ou apenas abismava. Disse na sequência:

            - Mas não um discípulo do método Adelmo-Figueira né...?