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terça-feira, 23 de agosto de 2011

Mais um gole no antídoto da filosofia

 No meu último post discuti a possibilidade de que enfim existe algum uso, algum bom proveito que justifica a propaganda da filosofia e redime a existência daqueles extintos homens da Grécia antiga, cujo exemplo fundou essa espécie insensata e meio fora de estação de pensar, como um pensamento que explora os feriados mais que as ocupações do dia útil. Chego a pensar que fui exageradente severo com essa disciplina nas minhas épocas de graduação. Porque, afinal, sem essa última nos sobraria entrar na briga por algum dos lados do falatório científico, acadêmico, jornalistico, etc, na perpetuação de uma discussão sem fim cuja estrutura de réplicas se vê em toda parte como na intriga entre religiosos e cientistas. E também porque nunca deixaríamos de estar expostos ou ao policiamento das tradições, ou às escavações de revisores e reformistas ávidos por dar novas direções – nova base e fundamento – à história e à verdade. Quando não fossem pirâmides, viriam com boas evidências de vida extraterrestre. Para fugir do barulho desse zumbido célere, que maliciosamente disputa o respaldo consolador da ciência, que outra melhor maneira que adotando a regra dos “pretensos” sábios de outrora? Que melhor maneira do que suspendendo o juízo para os assuntos pelos quais se mata e se morre, reconhecendo neles o seu caráter supérfluo, o vazio circular do vício metafísico - a mesquinha ambição de verdade - que os cerca? Mesmo a versão enfraquecida, adoecida, do filósofo de hoje (seja o epistemólogo, o pragmatista, o semântico) consegue por meio de sua orientação formal discutir o assunto pela porta de fora, não, de fato, por cima ou por baixo, mas pelo menos paralela e independentemente. E já é melhor que nada. Estão mais próximos de entregar-se – como num protesto – à ociosidade do pensar. Seja como for, também para isso não é preciso seguir o exemplo da Filosofia. Para administrar o vazio e a angústia sem abandonar as palavras, talvez melhor modelo de entorpecimento nos dê a poesia, esse silêncio cantado, onde o emprego do discurso vem despido de doutrina e especulação.

domingo, 21 de agosto de 2011

Sobre a suposta 'Treta' entre o homem religioso e o científico



Esse post nada mais é que a exposição de uma curta coleção de oportunas citações. Oportunas com relação a quê? Como resposta a uma nova campanha de inteligência estreita que vai singelamente, com um ar de modéstia e indiferença, reivindicando um arrogante valor de triunfo. Comportam-se com a condescendência de quem ensina crianças, e, no entanto, ninguém sabe por que estão sempre tão incomodados e cheios de energia impaciente para responder ao que eles consideram tão inferior. São compostos de filósofos, cientistas e acadêmicos de todas as espécies. Sua origem é pródiga, porque nascem de um pressuposto de linguagem, um modo específico de falar, pensar, dialogar. E não me atrevo a indicar-lhes um nome abrangente, porque assim correria o risco de errar por generalização. Mas sei e não omito que são pacientes de uma das certezas do nosso tempo, que já dura e amadurece em versões cada vez mais confiantes e temerárias desde o século XIX. Estão em todas as partes, são desde criadores de stand up comedy até cientistas renomados, e, ainda com facilidade, se espalham pelos degraus menos prestigiados do grosso populacional. O característico no seu comportamento é um sentimento coletivo de inteligência que eles compartilham, dividem entre si, aquela complacência de quem sabe alguma coisa a mais. A irreverência é uma das suas armas, e eventualmente chegam a explorar esse talento tão bem que encantam. Para fazer-lhes justiça é preciso dizer que são engraçados e perspicazes, o que não muda o fato de assim vingarem-se do fato de serem muito grosseiros para abordar temas e problemas que ultrapassam os seus limites. Mas “de que serve hábeis sabichões e inábeis e honestos empíricos e mecânicos forçarem uma aproximação, como hoje é tão comum, tentando penetrar com ambição plebéia essa ‘corte das cortes’?” (Nietzche, 1998, p.121). Como lhes falta toda sutileza, adoram chutar cachorro morto, pois ali eles brilham: ridicularizam as pessoas religiosas, que são alvos fáceis e não podem se defender senão com sua fé ou com argumentos muito toscos. Ora, o que eles definitivamente não entendem na natureza do homem religioso é “quanta sabedoria existe no fato dos homens serem superficiais”. O que leva o homem a adotar uma interpretação religiosa da existência é justamente o “temor daquele instinto que pressente que não é bom ter a verdade cedo demais, antes que o homem se tenha tornado forte, duro e artista o bastante” (Nietzsche, p. 62). É forçoso reconhecer então a que instinto esse homem sarcástico e risonho obedece. Isso é simples, ele mesmo não esconde: é o instinto à verdade. É nesse envolvimento com a verdade que se situa a sua sensação de superioridade. É, porém, nessa mesma sensação que reside a sua falta de elevação, que se denuncia a sua guerra ao sentimento artístico, à máscara, ao flerte da cultura com o mundo natural. Nas suas econômicas leis usadas para ligar todas as cadeias de fatos em uma explicação global esconde-se a sua própria maneira de abstinência, a sua não-religiosa forma de limpar o mundo de sua beleza e abundância: “A esses pesquisadores compete tornar visível, apreensível, pensável, manuseável, (...), abreviar tudo o que é longo” (Nietzsche, 1998, p.118). A obsessão com a verdade é, antes, “a fé em uma valor metafísico, um valor em si da verdade”. (Nietzsche, Genealogia da Moral, 2007, p.139). É com a fidelidade a esse sentimento, que trás consigo o orgulho infantil de pertencer ao grupo da humanidade que usa a lógica e a razão, que evolucionistas hoje mostram as armas contra os cristãos, em uma vergonhosa luta que se assemelha a um jogo de futebol de crianças de doze anos, onde todas correm ao mesmo tempo atrás da bola e deixam o campo mal distribuído e a povoação dos pontos essenciais desmarcada. Confiam na aleatoriedade das direções da bola para marcar um gol por acaso; e não raro não sabem distinguir quem é do próprio time e quem é do outro. Pouco escandaliza que marquem gols-contra com frequência. Essa disputa recicla uma guerra antiga em que nem todos foram ainda vingados e é de supor que existe muita amargura, repressão, desejo de desforra escondido aqui. Afinal, cientistas foram queimados, amordaçados, calados. Se nos atermos a esse desejo de vingança e a essa animosidade infindável entre o homem da batina e o curioso experimental, portanto, não vamos chegar a lugar algum. Desviarei a atenção para uma única passagem veemente e espirituosa de Tolstoi, onde este arrebatou toda essa enferrujada discussão, em que não se sabe bem o que se disputa, e a vitória não tem valor nem prêmio a não ser uma satisfação narcisista e uma vingança mesquinha. Porque, afinal, além desses despojos emocionais, o que ganha um biólogo ao refutar um religioso? Será mesmo que o último é uma ameaça ao primeiro? Será que eles, de fato, disputam o direito da mesma coisa? De forma alguma. Aqui não temos senão uma confusão de esferas de investigação. Citemos o russo: “pois o fato de que, do ponto de vista da observação, a razão e a vontade não passam de secreções do cérebro, e o homem, seguindo a mesma regra, pode proceder de animais inferiores num remoto período de tempo desconhecido, não faz mais que explicar, por um lado novo, uma verdade não disputada a milhares de anos por todas as religiões e todas as teorias filosóficas... Que os homens descendam do macaco num remoto período desconhecido de tempo é tão compreensível como o fato de terem sido formados de barro num período determinado (no primeiro caso, x é o tempo; no segundo, o processo).” (Tolstoi, Guerra e Paz, 2007, p.1496 – [essa numeração parece, mas não é uma data!]). A mágica dessa citação é mostrar como é supérflua a disputa que hoje se faz em torno dessas infames polêmicas. Tão supérflua que a vitória de um lado não dá recompensa nenhuma, nem prova nada contra o outro. A desmistificação da crença nessa diferença entre ciência e religião precisa ser encorajada porque, apesar da aparente facilidade da demonstração de sua inutilidade, ambas ainda se combatem hoje acirrada e inflamadamente. Já passou da hora de ver que a ciência não é antagonista do ideal religioso, e nem o ideal religioso antipatiza com o ideal científico. Ambos convergem com relação ao destino perseguido, a saber, o ideal ascético, de redução, negação do que é grande e abundante; abreviação e economia de explicações. A relação da ciência com “o ideal ascético [da religião] não é antagonística em si, ela antes representa, no essencial, a força propulsora na configuração interna deste.” (Nietzsche, 2007, p. 141). De fato, não nos enganemos mais sobre a dependência nítida que a ciência tem de formas mitológicas de orientar a formalização de sua verdade, maneiras de enriquecer os seus pressupostos, sem os quais ela restaria sempre exposta e frágil, à beira da falência de seu crédito hipotético. Toda forma de metafísica, popular ou acadêmica, é uma maneira de antecipar a verdade com um molde subjacente, fortalecendo e adaptando o homem e a cultura para o seu acolhimento.  “Não existe, a rigor, uma ciência ‘sem pressupostos’, o pensamento de uma tal ciência é impensável: deve haver antes uma filosofia, uma ‘fé’, para que a ciência extraia dela uma direção, um sentido, um limite, um método, um direito à existência.” (Nieztche, 2007, p. 139).