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sábado, 27 de setembro de 2014

          São mil janelas encaixadas em um conjunto festivo de torreões, formando um imenso castelo medieval de lajes, enfeitado com as cores elencadas nos varais de roupas, que em seu carnaval desfilam como oferendas ao sol da tarde. O verão não tem prazo, o sol enfeita os corpos durante o ano inteiro num esbanjamento de cor. Isso também determina o espírito, muda o humor. A pele carioca concentra doses de riqueza solar. Nos sobrados do Botafogo e Catete perduram antigas gafieiras, hoje convertidas em escolas. É a singular emanação de uma euforia que reúne o efeito de muitas agitações, uma algaravia que nunca passa, seja de manhã, de tarde ou de noite. Jovens com os pés grávidos de ideias passam ali o dia inteiro, e vão até a madrugada, em um laboratório de criação que faz às universidades inveja.  Há tantas vozes e tumultos como cores.  Lembram antigos puxadores de escola de samba alugando as cordas vocais ao serviço de feirantes. E a escadaria dos casarões e sobrados é trafegada por uma heterogeneidade de carne e espírito humano, uma fauna que seduz os olhos, porque uma coisa que nunca deixa de entreter o homem é o próprio homem, em todas as suas expressões. 

segunda-feira, 19 de maio de 2014

O Mito dos cabarets paulistanos

 Na descrição mais detalhada já feita por quem não estava absolutamente lá, direto da boca de um autêntico amigo meu – embaixador de um legítimo cunhado de um comprovado seu primo – ouvi ontem o interessante relato de um show pitoresco de cabaré. Distintivo pelo caráter de lenda urbana. Essa é a narrativa suja de um operário de um puteiro de São Paulo, desperdício de um dom raro e exemplo de uma misteriosa vocação genética, vivendo como um animal exótico fazendo dinheiro miúdo ao prostituir seu talento de visionário em alguma espelunca que o esconde da civilização. Como um grato explorado, está satisfeito: protege-se assim da insegurança de seus pares. Compreensível é que o abordem com medo.  A humanidade nunca deixou de cobrar a existência do desusado e do pioneiro, embora – coisa injusta! – não aumente o imposto para os estúpidos e malandros que exploram as facilidades vulgares para se tornarem poderosos, ricos e privilegiados.
E assim, na calada de alguma colônia imunda de zonas paulistanas, a troco de risos grosseiros e ao julgo do olhar ignorante de clientes sem sutileza para entender uma piada, ele performa o seu número de mágica poluída, sem deixar de ser valorizado, entretanto, por nosso confiável anônimo; padroeiro de todas as estórias perdidas na marginalidade das sarjetas. 
Conta a lenda que o fenômeno era um homem comum, careca, com olhos castanhos e nariz achatado, baixinho, magro e de compleição nordestina, a mais comum das figuras do cotidiano paulista, embora no olhar meditativo refletisse luzes de um orgulho incompreensível, um toque sutil de monge tibetano exilado, de homem não mundano, aspectos que poucos percebiam. Enrolado em uma toalha e de resto nu, a sua chegada invariavelmente ceifava murmúrios de impaciência seguidos de vaias hostis, porque tomava de repente o palco que minutos antes fora de criaturas do belo sexo, e ameaçava amargurar os olhos do público com a queda catastrófica da toalha bendita, véu abençoado separando os clientes de uma  visão lamentável. E era então que a toalha caía! Todas as luzes miravam o que menos se queria ver - uma manobra enfática. Absorvidos pela escuridão nas periferias que rodeavam o astro, o público esboçava vozes de quem está sendo torturado e o murmúrio conjunto do recinto fazia lembrar os lamentos imemoriais de um jardim de almas penitentes. Ruídos de cadeiras caindo e pés de mesa rangendo; passos desesperados tentando achar o caminho da saída.
 Ato contínuo, o silêncio gradualmente se expandia, o silêncio da surpresa, dos atônitos com o tamanho desproporcional que se desenrolara como uma jibóia treinada. Uma risada: “seu jumento!”, pulava de alguma boca, e a gargalhada ressoava em ecos, irrompendo o clima de perdição, lembrando um ambiente de orgias romanas ou de macacos brincando com a própria merda. Ao palco, com os braços flexionados sobre a cintura na postura prosaica do super-herói, o rosto do superdotado assumia uma expressão de foco, o queixo se movia para diante ligeiramente, o bico do lábio inferior se pronunciava, e os olhos dilatados dardejavam o vácuo à sua frente como se tentasse levantar as mesas com a força do pensamento. Quando, sem mexer os braços, a cintura ou os dedos, semelhante a uma mangueira içada por manivelas rangentes dos bastidores, seu órgão – perdoem-me; em algum momento teria de mencioná-lo sem eufemismos! – subia implacável e contínuo como um ser dotado de vontade, como a ponta de um raciocínio que persegue uma verdade, o céu apenas por limite.
Sei que a imagem é degradante, caros leitores, e não costumo convidá-los sempre à conversação neste blog, embora agora veja a necessidade de apaziguá-los. Aviso que não deixam de prever o valor do seu sacrifício de ler até o fim, entretanto, mitigados por saber da existência desse ser desleal que se esconde da ciência e da cultura, mas não dos relatos que viajam de boca em boca – os quais se devem à ação do proverbial espirito da cidade que o assistiu e transformou em mito. Eu mesmo, quem sou, para negar o espaço modesto de meu blog para repassar a informação?
 Na posição em que o deixamos no palco, o impassível telepata fálico cerrou os olhos devagar como se acessasse a estrutura do mundo invisível, e numa apoteose de mágica incognoscível, o arauto do mistério assombrosamente concluiu sua amostra de poderes sobrenaturais eclodindo em um orgasmo de dois minutos. Dessa imagem eu lhes poupo a descrição mais minuciosa! A experiência aterradora provavelmente deixa catatônicos por dias os que chegaram a ver o colonizador salivando seu pródigo cofre de sementes, mensageiro de uma nova técnica tântrica. A sala mal iluminada de um beco qualquer o esconde da civilização.  Não vai ganhar um contrato milionário, e melhor é que continue discreto, não se expondo à ambição dos invejosos. Ainda por cima, nasceu no hemisfério errado: seria a grande sensação de uma sociedade poligâmica. Sua mulher, uma simples senhora sem consciência da própria sorte, e ainda ingrata, jamais reclamará das obrigações noturnas, porém não deixará de tortura-lo quando chegar bêbado ou esquecer de baixar a tampa do vaso. Injusta distribuicao de méritos!

sábado, 17 de maio de 2014

Nelson Sargento, Lagoa, 07/10/2012

Lua do dia 07 de outubro de 2012: Uma noite como outras na Lagoa? Exceto pela lenda do samba que pisou suas margens, aos passos miúdos da experiência, carreta humana de um armazém do tempo que vai ficando para sempre mumificado nos cadernos das crônicas da Mangueira; lá onde, em um desfile de mitos, andaram juntos poetas que valem a oferta de uma constelação, e que agora só podem mesmo ter se convertido em estrelas, habitando um céu que prorroga a chegada do “Nelson remanescente”, que sobrou para contar a história aos netos da cultura que ele ajudou a semear. O sargento desceu do carro na porta, baixinho, andou encurvado, sem pressa, cumprimentou e distribuiu autógrafo a quem pediu, e, desafiando quem achou que a madrugada ia vencê-lo, começou a cantar só uma e meia, com uma voz modificada, mas ainda atinada, fecunda, mensageira de gerações e profeta de influências do passado. Ritual de gestos musicais: deu a mão a todos os músicos do palco com a parcimônia de um cerimonioso pastor, cantou músicas suas e de seus próximos, Cartola, Cavaquinho, bancando viagens pela memória do samba, transportando os ouvidos mal alimentados do presente a um cofre de joias sonoras, tristes ou alegres, autênticas. Foi ele quem disse: ‘Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve’. Ora, mas emprestou a “Alvorada” desse sonho coletivo do Brasil, e todos nós adormecemos juntos. Domingo alvoreceu uma primavera de aplausos atrás do morro da praia mole, refletindo os ecos de uma época de gratidão.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Os ícones do Baila Floripa

 Quatro dias de dança, e uma gratificante dor nas costas de sequela. O Baila Floripa não recompensa o ladrão com mais do que ele pode carregar. Quem volta com o corpo dolorido presume ter algo em comum com alguns dos virtuosos que dançaram e se apresentaram, e que puderam carregar mais do que calos e dores no seu furto ao espírito da festa. O congresso, organizado pela administração da acads, presidida pela competente e incansável Aline Menezes, é um canal de muitas energias. As diferenças de estilo se desafiam, a variedade de experiências se confronta, e os casais mais ousados se enfrentam no final, em uma expressão de competitividade fundamental tanto para o florescimento da arte quanto da ciência. Mas a um desses comércios de influência eu gostaria de dar ênfase, uma vez que é aquele em que tive o prazer de participar: a ebulição inspiradora parida da interação entre os alunos e os professores, e que tem o seu auge no final de cada aula, quando as duas classes se oferecem mutuamente em uma generosa troca. Os gritos, assobios, suspiros e suspenses dos pupilos são a semente de uma energia sugada e reciclada pelos mestres, que devolvem respostas improvisadas pelo próprio corpo, em um diálogo que envolve a música, o dançarino e os admiradores. Como um comediante progride com o progresso dos risos da audiência, a dança se alimenta dos uivos de prazer dos seus fãs. Naqueles últimos cinco minutos sincroniza-se o tempo em uma expressão de arte real. O expectador e o artista negociam suas necessidades na linha fina do instante. A narrativa da dança se torna um jogo de reflexos entre o autor e o leitor, cada gesto nascendo livre e ao mesmo tempo necessário, como se sua espontaneidade fluida viesse amadurecendo desde uma raiz longínqua plantada em um passado remoto, para emergir no agora com a força de uma ideia fresca. O Baila Floripa é feito pelos ícones. Além dos talentos locais que cada vez mais confirmam a suspeita de um futuro brilhante, há os de fora que através do youtube foram previamente canonizados, e a sua presença infesta o ambiente com um ar de veneração. Mesmo que fora do universo da dança não sejam conhecidos e admirados com a mesma intensidade, é fazer justiça dizer que as suas performances agregam valor à personalidade cultural do Brasil. Assim como jogadores de futebol, Garrincha, Pelé e Romário, alguns dos prodígios dançantes desse país deveriam já estar incluídos em letras de música e ser cantados nas rodas de samba, como figuras da mitologia popular, capazes de misturar as sílabas do espírito brasileiro e escrever mensagens que apelam ao nosso coração, nos despertando um senso de identidade.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Como aplicar a falácia do espantalho: reflexões sobre a má interpretação das falácias informais nas discussões diletantes da internet

Em uma época em que a internet se tornou uma ilha exposta às enxaquecas de muitas ondas ideológicas, e abriga acirradas discussões políticas, onde mesmo as pessoas mais tímidas encontraram inspiração para se expôr e defender suas crenças, eu, que fiquei apenas mais tímido, decidi escolher um lugar pretensamente mais neutro e olhar a discussão de fora, alertando para alguns perigos que acompanham as expressões apaixonadas de sentimentos íntimos. Quero fazer uma pequeno advertimento lógico, a respeito das falácias informais, especialmente uma: a chamada falácia do espantalho. Observo que se tornou um costume mais ou menos frequente pessoas invocarem essa falácia como uma carta de emergência, projetada para ganhar qualquer discussão. Na verdade, ela de fato é raiz de mal entendidos, e o grande pensador que em algum momento a descobriu provavelmente teria a devolvido para a cachola se suspeitasse como o público geral faria uso de seus serviços. Isso acontece porque ela apela para um sentimento muito comum presente na maior parte dos debatedores, quando esses superestimam a própria opinião. A ideia é que, sempre que alguém discorda com ele, estaria cometendo a falácia do espantalho. Espantoso não? Imaginem o exemplo: Uma alguém A apresenta um argumento logicamente estruturado para refutar a conclusão de que o Brasil é um país corrupto. Um oponente "B" pensa que o Brasil é um país corrupto e que como "A" não considerou as premissas que ele (B) próprio acha relevantes, então (A) deve ter simplificado o caminho até a conclusão, ou seja, usou uma versão conveniente ou um espantalho do problema para adquirir respostas - ou conclusões - fáceis. O mais fantástico é que B não acha apenas que "A" estava errado: ele acha que "A" cometeu uma falácia. Segundo ele, "A" nunca chegou a desafiar o fato de que O Brasil é um país corrupto, pois sequer apresentou um argumento válido. Triunfante, agora qualquer um que não problematizou a questão como ele, ou que não adotou as mesmas premissas que ele, ou que apresente argumentos fracos, irrelevantes, não inteligentes o bastante, comete falácias. E assim, resumindo, quem discorda de "B" é sempre um falacioso. É a instauração do caos argumentativo: todos podem desqualificar o argumento do outro com base na superestima que ele tem sobre a própria opinião. Psicologicamente, isso significa que "B" pensa desse modo: "se alguém discordou de mim, é porque falhou em colocar o problema e abordar a minha opinião pelo modo mais forte o possível, isto é, o modo como eu mesmo a abordo". E qualquer opinião agora é a priori desqualificável. Pois se "B" acusa "A" de simplificar convenientemente o argumento alvo, "A" pode igualmente acusar "B" de fortalecer convenientemente o argumento protegido. E como ambos podem acusar um ao outro de falaciosos, as diferentes opiniões nunca se enfrentam e confrontam, transformando a discussão em um verdadeiro circo sem propósito. Pela mágica da loucura, ambos agora correm em círculos atrás do próprio rabo.

         O uso inopinado e constante dessa falácia para fazer acusações desse tipo tem sido uma manobra falaciosa com valor independente, que poderíamos batizar com seu próprio nome. Mas deixemos a parte da nomenclatura para quem tem mais energia. Importa a nós perceber que quando olhamos a sua estrutura, percebemos por que é tão fácil as discussões de internet não caminharem para lugar algum. Do ponto de vista psicológico, tal uso reflete a tendência conhecida das pessoas a pensar que aquele que discorda de si não entendeu seu argumento: pois para ele, bastaria que ele entendesse, para que automaticamente concordasse. Essa ingenuidade deriva de algo que poderíamos chamar de um vício de personalidade baseado em uma má compreensão da natureza formal da lógica. Propriamente falando, nenhum argumento pode ser falacioso ou logicamente desqualificado em vista do seu conteúdo - em outras palavras, todos estamos livres para escolher o nosso próprio recorte, nossas próprias premissas, nossas próprias suposições, nosso próprio conteúdo, e isso não pode nos desqualificar como falaciosos. A falácia do espantalho, por sua vez, quando adequadamente aplicada somente ocorre quando esses três passos ocorrem:
1.     uma premissa foi apresentada na discussão pelo sujeito Y e aceita para os fins de argumentação pelo sujeito X

2. O sujeito X entende errado ou distorce a premissa

3. O sujeito X ataca a conclusão de Y através da versão distorcida da premissa aceita (cometendo a falácia do espantalho).

        Se o passo 1 nunca ocorrer, isto é, se X não aceitar nenhuma premissa ou suposição de Y, logo, o passo 2 e 3 tampouco pode ocorrer, pois ele não pode distorcer uma premissa que, em primeiro lugar, ele nunca aceitou como parte da argumentação. X tem o direito lógico de encadear a sua conclusão a partir de suas próprias premissas - as únicas dívidas lógicas que ele terá serão exclusivamente com elas. Ele não tem nenhuma responsabilidade lógica de interpretar bem ou adequadamente uma premissa que ele nunca aceitou, pois sua conclusão não depende dela. Na pior das hipóteses X pode estar errado e sustentar uma premissa falsa, mas não haverá falácia, por mais que Y esperneie dizendo que não foi "corretamente compreendido".