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segunda-feira, 2 de maio de 2016

Ludmilla e sua Irmã


É porque o Fábio é o que sempre foi: uma espécie de coroinha que passou da idade, um ingênuo romântico utópico desmiolado, que ainda por cima mistura requintes de cavalheirismo antiquado aos ingredientes do seu coração tolinho... 

Mas não é mentira: ele até conseguiu o que queria... só a condição que pode parecer demais cara, para pessoas como nós, pelo menos, eu acho.
O que todo mundo sabia da Ludmila é que a irmã dela causava em todas as festas, e as histórias nunca paravam. Uma vez, na minha casa, quando tocou a banda de samba-rock do pantanal, o que dizem os linguarudos é que ela fez com dois na piscina. Não, eu não vi. Essa conversa demorou um pouco para chegar em mim, já era uma história meio sem tronco, um complexo selvagem de vegetação indisciplinada. Mas eu não tinha motivos para duvidar. Por amor ao rigor cético, aprendi a podar os galhos das fofocas muito engenhosas, e especulo que pelo menos com um ela fez alguma coisa em público, o que já é picante o suficiente e, para o gosto de Fábio, algo que beira o escândalo.
Mas se ele até preferia que a Ludmila tivesse outra irmã, isso não lhe impedia de descer em queda livre em arroubos de paixão adolescente por ela. Quem é que ia fazer ele mudar de ideia? A guria era discreta, isso eu não nego. Parecia o oposto da irmã. E bonitinha. Sempre com sua luva preta, no calor ou no inverno. Voltaremos à luva preta. Eu também paguei um pau para ela, durante um tempo. Mas a minha vaidade não é mais forte que a sinceridade: sim, confesso que ela sempre arrastou uma asinha para o Fábio. Por que, não me pergunte.
Essas silenciosas profundidades supersticiosas até que não são tão secretas: pedem ouvidos, precisam de interlocução. Para mim ele sempre contou o que sentia. Um confidente malicioso, mas tinha a sua confiança. Existe uma fórmula que os apaixonados ignoram, mas que lhes seria extremamente útil recordar: é que ser indiferente e grosseiro, nos assuntos do coração, é sempre mais fácil e natural. Quando se pegam abatidos e esmagados pelo que sentem por alguma menina, poderiam lembrar que o mais difícil eles já fizeram: que é estar desse jeito. Voltar ao original, a ser como eu, é o mais fácil. Custa-nos muito admitir, é verdade, mas a nossa malandragem, mesmo a mais refinada, nunca dá tanto trabalho. Se eu quisesse ser como Fábio, talvez não conseguisse. Mas ele precisaria de bem pouco para ser como eu. 
Ludmila era, como eu disse, reservada, tímida e parecia envergonhada de alguma coisa. Parecia carregar uma culpa, uma manchinha da consciência. Como era uma sombra da irmã, que chegou um ano antes na universidade e deixou um rastro difícil de superar, ninguém jamais desconfiou que essa personalidade não estava ligada a ela. Todos suspeitavam que ela tinha interesse em deixar sua diferença com a irmã bem marcada. Por isso ensaiava ser o oposto. Imaginava-se que ela queria subverter o espelho, e quando olhassem para ela, veriam refletido o oposto da irmã.
Fábio, paladino branco consumado, como jurasse que precisaria muito mais do que uma irmã escandalosa para afastá-lo do objetivo, nunca esmoreceu. Ofereceu guerra à resistência da menina, que julgava existir por vergonha da família.
Estavam no bosque depois de um dos almoços do RU, ela sempre mexendo encabulada em sua luva preta, e sempre furtiva, evitando muitos contatos, tímida, quando Fábio resolveu lançar mão de um acesso de heroísmo gratuito e discursar sobre o que julgava ser seu grande instinto de sacrifício, o tolo, orgulhoso:

- Sabe que a sua irmã nunca foi e nem nunca será obstáculo para o meu sentimento né?

 Quanto foi sua surpresa quando a menina fez uma cara de nojo e desgosto, retorquindo que ele era um machista presunçoso. No auge de sua indignação, Ludmilla mostrou o verdadeiro motivo do seu recato. Nada tinha que ver com sua irmã, que para ela era a mais saudável e normal das pessoas vivendo sob a lua e as estrelas, mas era o que havia por trás de sua luva. Um braço falso, desses de plástico, explicava alguns de seus maneirisimos. E explicava sua personalidade. A menina perdeu um braço quando nova, e desenvolveu uma personalidade que era, sim, o oposto da irmã, mas não por qualquer moralismo barato, que isso ela não tinha, mas por um secreto medo de rejeição, que cultivou desde muito nova, apesar de ser tão linda. Mas nisso eu e Fábio continuamos diferentes: perdi toda minha vontade por ela quando soube disso, enquanto ele permaneceu fiel ao seu sentimento de coroinha ingênuo, o que, de fato, não lhe invejo.

A briga no bosque deu lugar a novas conversas, todos os dias, até que, como já se sabe, os dois começassem a namorar. Fábio uma vez disse, e desse vez, uma única, lhe admirei o senso de humor, apesar de desconfiar que quem viu a frase com ironia fui eu, e ele estava apenas a ser honesto:
"Talvez, se ela tivesse o braço, não seria mesma Ludmila..."