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sexta-feira, 8 de abril de 2011

Notas sobre a suposta diferença de esferas entre Cultura e Autoridade


Sublinharei de saída os traços de uma importante diferença entre saber e autoridade: o primeiro é amparado em uma boa disposição das luzes, uma completa liberdade dos quadrantes dialéticos que participam do diálogo e da discussão que o gera, pois a sugestão de perspectivas, sejam para pior ou para melhor, só pode contribuir positivamente para o desenvolvimento das ciências e das artes (embora a primeira com uma metodologia mais rígida que a segunda). Já a autoridade não tem a mesma tolerância, pois seu objetivo não é outro senão o de preservar e proteger as regras. Mesmo quando uma mudança é proposta para melhor, na ordem política, ela é suspeita. Isto se dá porque a autoridade não julga sobre o valor do conteúdo da mudança, mas é um índice de rigor do próprio julgamento. Qualquer mudança de perspectiva é um desacato da autoridade. Tal desigualdade seria o fundamento de um suposto rompimento originário entre a academia - a escola - e a política. Há, no entanto, infiltrações entre estes dois setores, da cultura (saber) e da política (da autoridade): frequentemente o concurso das idéias é selecionado e filtrado pelo peso do interesse político. O que os intérpretes da História da cultura, do espírito, não podem ignorar – não sei quantos ainda ignoram, mas me expresso assim para dar valor de novidade ao texto – é que a dialética pretensamente neutra das idéias é na verdade subjacentemente orientada por uma dramaturgia de batalhas pelo direito à autoridade. Entenda-se como uma complexa guerra que está acontecendo a todo o momento por detrás da suposta discussão limpa e clara entre doutrinas, e que transforma a nossa noção simples de espírito em outra, menos teológica, mais política. Menos divina, mais prática e corrupta. A rigor, a interação entre poder e saber é extremamente mais complexa do que a suposta por filósofos de há muitos séculos, como Bacon, que ingenuamente achava que descobrir causas e formas da natureza daria um controle operatório que se traduziria em poder. Mal desconfiava as influências do poder sobre o próprio saber, e o palco dos conflitos de crédito subjetivo onde se desempenha a narração da cultura. Conheço de ouvir falar e leituras esparsas teorias novas e movimentos recentes – pós-estruturalismo – que valorizam e levam em conta essa forma de abordar o problema; e que discutem a força da idéia de assinatura, bem como a de autoridade, compreendidas como modificações estruturais da idéia de subjetividade; exploram a força destas idéias para levantar a importância das questões sobre os pressupostos morais, históricos, econômicos e antropológicos subjacentes à teoria do conhecimento e à filosofia (entendida como a suposta guardiã da cultura). No entanto, não estou apto a falar sobre elas e prefiro conservar-me apenas atento às ligações entre meus estudos e estes, antes de achar o momento oportuno de estudá-los concretamente.

quinta-feira, 7 de abril de 2011


Complementar à última reflexão, uma nova será acrescentada sobre os problemas óbvios envolvidos na distribuição da autoridade - em uma relação de discípulo e mestre – em questões de cultura e saber. Penso que, na instituição do dimensionamento da autoridade dentro da sala de aula, subentende-se que o que dá valor à opinião do aluno é o fato do professor aprová-las, não a sua fecundidade ou riqueza interpretativa. E como o professor frequentemente tem uma perspectiva fechada, um modo intuitivo particular de estabelecer a relevância das questões discutidas, a aula passa longe de uma exposição de temas, e se aproxima muito mais de uma divulgação de charadas pessoais, uma apresentação de conceitos distorcidos pela sua própria visão e uma exigência de que os alunos pensem através deles. Os "sem luz" (origem ltina da palavra 'aluno') são irrevogavelmente abandonados aos labirintos pessoais de um outro, muitas vezes mais desnecessariamente intrincados do que a questão propriamente dita, seja ela newtoniana ou darwiniana. Por isso alguns sádicos se divertem em emaranhar seus pupilos em problemas insolúveis, que traduzem sua maneira particular de abordá-lo, e que a todos os outros soam como ardilosas armadilhas; pegadinhas do Faustão. Como se não fosse o bastante, os próprios vestibulares adotam o mesmo procedimento, o oficializando. Não é uma surpresa escandalosa diagnosticá-lo como um desacato à própria instituição da inteligência, que só deveria justificar-se como andadeira provisória a uma faculdade de julgar ainda tateante, constituinte de uma fase imatura da inteligência presente nos alunos, uma fase de lusco-fusco, onde a necessidade de lanternas fosse preemente antes que o dependente possa enfim emergir em sua própria aurora. Talvez fosse desculpável também em uma época onde esta relação não fosse forçada, e o diálogo entre os dois elos desta corrente florescesse mutuamente, como era, ou parecia ser, entre os gregos. Porém não é isso que se passa nas instituições de ensino médio atuais: e na verdade apenas é pintado como uma desvantagem aos alunos que estes abdiquem um dia das muletas, recompensando quem sabe usar as mesmas do professor, e criando uma atmosfera de desencorajamento incoercível sobre o que tenta pensar sem a peça de maquinaria postiça dos artifícios.

terça-feira, 5 de abril de 2011


As discussões sobre os problemas escolares que estão hoje em moda levam em conta diversas perspectivas, porém poucas a encaram pelo seguinte horizonte: a problematização do próprio conceito de escola entendida como centro de massificação do conhecimento. Fala-se muito de fracasso escolar, por exemplo, mas nunca se contesta a idéia de sucesso superficial que lhe serve de contraste: o sucesso em assimilar conteúdo sem forma? Adquirir fórmulas sem a capacidade de aplicá-las através de um juízo? O sucesso prosaico do aluno vaidoso, geralmente de caráter análogo ao do professor, que “não se esforçam pela sabedoria, mas pelo crédito que ganham dando a impressão de possuí-la” (Schopenhauer). Sei: sabedoria, conhecimento, pensamento, juízo, são ideais muito ambiciosos, margeiam perigosamente ilusões da metafísica. Eu mesmo me pergunto se existem. Contudo, vale mais supor que existem e ambicioná-los do que cinicamente fingir-se em sua posse, sem estar. Nas escolas o troféu é destinado aos que melhor conseguem repetir tecnicamente a perspectiva do professor. Neste tipo de contexto, nunca se encara a perspectiva do aluno supostamente fracassado como se fosse ele o realmente desejável, o único que ainda valesse mais que um papagaio no cenário estudantil moderno. O único a quem o próprio temperamento blindou às recompensas ignóbeis que convidam à ignorância, e a quem mesmo a perspectiva de uma vida fracassada foi incapaz de dissuadi-lo da resistência heróica a participar desta indústria de técnicos. Como contraponto a esta abordagem predominante na pedagogia, diligente em assimilar os excluídos, entusiastas de um paralelo com as instituições democráticas, para quem o bem coincide com inclusão, e para quem os excluídos não passam de coitados a quem se deve piedade, como contraponto ofereço algumas leituras (as que eu conheço): a coleção de pauladas que Bacon aplicou à escolástica e à academia platônica, assim como a outras escolas antigas, que "apesar das demais disparidades, eram professorais e favoreciam as disputas, e suas doutrinas eram (como bem disse, não sem argúcia, Dionísio de Platão) palavras de velhos ociosos a jovens ignorantes" (Bacon, 1979). As mordidas de Montaigne à idéia de instituição escolar e os seus professores, tomando como ponto de partida os próprios sofistas. Schopenhauer no famoso “Sobre eruditos e a erudição” e Nietzsche em “Schopenhauer educador”.

Sobre a sutileza dos literatos



“...não é improvável que a literatura vá sempre render insights mais profundos para aquilo que se chama a pessoa humana plena do que qualquer outro método experimental pode esperar conseguir.”(Noam Chomsky)

E continua:

“Mas esses insights não provam nada, só nos revelam coisas que podemos entender intuitivamente tão logo as percebamos. É por isso que elas são frequentemente tão pungentes e tem tanto efeito sobre nós.”

Nunca tive dúvidas de que a característica que distingue um bom literato é, seja o que for, algo muito diferente daquelas de um espírito positivo e experimental. Lendo Kant um dia desses, tive a impressão de ter encontrado um adjetivo adequado para exprimir as qualidades desses mestres das imagens e das formas retóricas. Eles são “sutis!”, entendendo-se por sutileza a perfeição subjetiva do conhecimento. Segundo Kant, “Sutil é o conhecimento de uma coisa por alguém que nela descobre o que habitualmente se furta à atenção dos demais.” (Logik, AK55).

Não sei o quanto a sutileza é importante para o cientista, uma vez que esse se caracteriza justamente por ter seu objeto tão bem definido que nenhum aspecto suscetível apenas de percepção privada, ou de um apontamento habilidoso, sugestivo, tenha para ele qualquer importância. Soma-se a isso a certeza de que, do ponto de vista objetivo, opor arrazoados e sutilezas de fonte subjetiva pode levar a uma indesejável dialética, uma ilusão no coração da razão provocada por se tomar “fundamentos meramente subjetivos por objetivos e, por conseguinte, confunda-se a mera aparência da verdade com a própria verdade”(Logik, AK56). Não obstante, nada me furta a confiança de que as obras literárias sejam permeadas dessas sutilezas, e que elas são mesmo essenciais para a idéia que fazemos da literatura; de fato, uma obra literária “rude”, destituída de uma sutil delicadeza para penetrar na “alma” da história,só pode ser uma obra ruim, não mais que um recorte vulgar de muitas experiências combinadas grosseiramente. As verdadeiras obras literárias são fragmentos de destacamentos subjetivos operando sobra a situação real, construindo ilusões tão consistentes quanto poderia se imaginar dentro do escopo facultativo do hábil e malicioso gênio maligno de Descartes.

Mas, supondo que essa pergunta fosse importante, qual seria exatamente o talento do gênio cartesiano? É imitar, simular consistência e coerência ao ministrar elementos de percepção provenientes de uma sensibilidade apurada, como quem sabe ressaltar nas coisas seus traços mais marcantes para então repeti-los e reproduzi-los em sua própria obra, sua grande ilusão. E qual o estado que, combinando com o gênio maligno, o escritor compartilha? É a sutileza. E, afirmo, um análogo ao estado dionisíaco: “de modo que ele descarrega de uma vez por todas os seus meios de expressão e, ao mesmo tempo, põe para fora a força da simulação, da imitação, transfiguração, transformação, toda espécie de mímica e atuação.”(Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos). Aquele estado em que se torna sensível aos traços da realidade que à maioria passa mdespercebidos, aqueles mesmos traços que, disse acima, autorizam a construção imitativa de sua própria obra, só são experimentados em um estado dionisíaco. É impossível que um escritor, conjugando desse estado, não saiba ler cada insinuação maliciosa que a realidade lhe faz; é impensável que alguém como Allan Poe não fosse capaz de mimetizar e reagir à realidade, emprestando a ela toda a plenitude de seu estado embriagado. O literato “não ignora nenhum indício de afeto” (Nietzsche, mesma obra). Sua operação é flertar com a realidade, capturando os sinais que ela lhe passa, e demandando dessa ‘mulher’ uma resposta sensual – ele não se satisfaz com menos do que transformá-la, dilatá-la, para que daqui por diante ela nunca mais seja a mesma.