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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Permissão para falar da beleza perdida de Florianópolis...


A natureza às vezes é tendenciosa. Não teme ser desmascarada beneficiando seus favoritos, quando, despendendo tanta atenção engordando alguns cantos do globo, deixa a outros uma aparência magra e mesquinha. Florianópolis é reconhecida por um público mais ou menos desinformado e influenciável, muito conhecido pela sua sensibilidade fraca e a euforia turística, como um éden, um desses locais onde a natureza fez seu ninho, esperando fecundar um prodigioso leque de tesouros em cheiros, cores, reflexos e gostos. Um espetáculo para a visão. Mesmo um veterano visitante dos confins desse enorme mundo pode, sem recaída, admirar o trabalho do sol pintando sombras e distribuindo as perspectivas pela paisagem quando a fita pela primeira vez de cima do morro da Lagoa.  E isso é só o começo. Porém, o escândalo é inimigo da beleza. Mesmo a mulher mais linda não terá fibra o bastante em seus traços para resistir à expectativa de um virgem escandalizado. Aqui na ilha não é diferente. Uma multidão plebeia de pseudo-milionários barulhentos e desengonçados há algumas décadas tem indiscretamente se vangloriado da oferta da natureza nessas paragens, atraindo o hálito da cobiça e cegando o homem comum com promessas falsas de prazeres gratuitos. Hoje, ainda há uma sequela de hippies endinheirados mal resolvidos e novos empreendedores bem aventurados que se recusam a ver o que a cidade se tornou, e o que ela já avisou se tornar, crentes de que o crédito investido pelos espíritos é de tal maneira inesgotável que ignora os custos da prostituição. Se há ainda quem pense que o espírito da cidade é imune às transformações em sua superfície estrutural, pense a segunda vez, quando estiver no trânsito agressivo, olhando o horizonte se fechando pela perspectiva do concreto predador que vai colonizando o céu, oprimindo as ideias. Florianópolis já não precisa de prognósticos aterradores que nos previnam sobre seu futuro calamitoso, pois ela já é a cidade estreita e neurótica que os sonhos das Cassandras sociológicas e ecológicas profetizaram. Parecia impossível, eu também confesso. Mas os morros estão ficando pequenos, os matos escassos, as garapuvus cada vez menos imponentes, toda a expansiva energia da vastidão, do mistério escondido em cada galho, que faz o homem voltar a ser criança na sua prostração ao infinito, está se esvaindo, maculando a experiência. Não tendo sequer a desculpa da proporção, como o Rio de Janeiro, Florianópolis vai se tornando um medíocre aquário de hotel, uma maquete de amostras artificiais, compacto demais para que possa fecundar as inspirações da alma. Os cariocas ganharam alguma coisa ainda estética - e em muitos casos sublimes - em troca do aniquilamento perpetrado no último século, uma simbiose artesanal das pedras e favelas, das raízes de árvores seculares e os prédios beirando a areia; nós, infelizmente, não vamos ter nada que possa se aparentar à beleza. Ninguém se toca de quanto Florianópolis é sensível até vê-la do assento de um avião: um pedacinho de terra, de fato, como diz a música. Seu espírito não sobreviverá a essa violação. Alguns locais da ilha, à semelhança do que já são os bairros marginais à universidade, competem em feiúra com as mais provincianas e insípidas cidadezinhas do interior, daquelas em que o ônibus estaciona e nos desperta para uma angústia sem fim, torcendo aos céus para levantarmos âncora. Em breve não se poderá mais ver a beleza com os olhos, e dependeremos de outros artifícios da sensibilidade, da linguagem, dos acontecimentos, da ajuda da noite, das trevas, quem sabe, para reproduzir a poesia mística que habita cada grão de matéria do universo. Assim já é em São Paulo: se não houvesse lá a mágica soturna da noite, todos os seus cidadãos já teriam concordado com a ideia de suicídio coletivo. E já não será assim nessa ilha? O próprio turismo é apenas retórica, linguagem, experiência fabricada pela boca profana de uma necessidade especulativa e técnica. Em breve o último refúgio será o mar, para roubar o que ainda resta de impronunciável na garganta do infinito. Aqui em terra, só buzina e asfalto.  

Ps. Usei o título como pedido de permissão, uma vez que há assuntos que não se perdoam facilmente. 

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Os blogs e a imaturidade da sua expressão como mídia

Tenho sempre a impressão de que ainda não se aprendeu com precisão que tipo de força comunicativa um blog entretém, e por isso me sinto sempre hesitante com o valor e o peso da mensagem que veiculo aqui. Sem dúvida, tem um parentesco muito nítido com um jornal, porém, editado muitas vezes por uma única pessoa, o que faz toda a diferença. Como instrumento jornalístico o seu valor é realmente controverso, lhe falta algo como a credibilidade; como científico, é pouco legítimo, lhe falta aquele toque de patente acadêmica dado aos sobreviventes de uma banca de seletores editoriais. É ainda pouco compreendido o poder de transmissão de conteúdo, o modo de legitimar uma comunicação, em uma expressão – embora vaga: a estrutura de mídia desse veículo e, em virtude dessa incompreensão, talvez, seja tão difícil produzir algo com a substância de um texto real por aqui. Talvez a semelhança muito suspeita com uma espécie de diário arruíne até mesmo sua reputação literária. O tamanho dos textos, a forma de interação deles com o título, por vezes desejando seguir modelos de publicidade, e uma série de outros modos típicos de expressão dessa força evocativa relativamente nova, que irão ficar mais claros no futuro, assim como com a boca é mais fácil veicular certos símbolos e com as mãos outros, tudo isso ainda é muito preliminar e prematuro – provavelmente assim continuará sendo enquanto não tivermos distância para vê-lo amadurecer, se é que ele vai se firmar.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A oficina retórica das Olimpíadas



            Uma vantagem de ser leigo como expectador das Olimpíadas é não ter perdido o olhar para o que há de estranho, pitoresco, e excessivamente particular em algumas de suas verdades sedentárias. Antes de tudo, isso não é uma crítica, mas uma observação irônica. Pitoresco e estranho são qualidades da arte. E não é obrigação do esporte ter qualquer semelhança com a competição da vida real, seja lá o que isso signifique. Ninguém cobraria o inventor do futebol por não ter arrumado uma melhor metáfora para a vitória do que a codificada por uma bola entrando por entre duas traves de metal. Nem o surfe perde o valor por ser inútil dirigir uma tábua de madeira pelas ondas do mar em um caso de naufrágio ou coisa parecida. Com efeito, o salto com varas não é menos emocionante por não corresponder ao modo real como se emprega a força e a destreza em uma caçada, ou em uma guerra. O fato de zerar em valor evolucionário zerado não impede que possamos vibrar com os desafios de um esporte, por assim dizer, bizarro.
            Mas ainda assim tem valor meu próprio comentário. Porque, seja lá qual for o modelo dos jogos, a vontade de ganhar, o desafio dos limites do corpo e da mente, e a justiça das regras são as únicas ligações invariáveis entre o praticante iniciado e o expectador leigo. Em conjunto, tal é a única fonte de identidade entre o esporte e a admiração do público, que sente no atleta uma empatia amistosa, uma inspiração sobre o próprio significado da vida. Quem estaria reclamando, assim, da estrutura geral de cada modalidade pitoresca que entra nas Olimpíadas, se não existe regra que as obriguem a ser normais? – e o que é considerado normal em um esporte, afinal?
            Existe um sentido, no entanto, em que a dívida do esporte com os três elementos citados condiciona toda sua validade. É esse o sentido em que o leigo tem vantagem sobre o iniciado. O primeiro, não obstante sua ignorância sobre as regras da ginástica ou do volleyball, consegue ver o quanto o esporte em questão corrompeu o seu vínculo com aqueles objetivos: a vontade de ganhar porventura se torna um vício acadêmico, semelhante às obsessões sociais dos alpinistas de cargos empresariais. Nem o corpo e nem a mente são jamais desafiados, posto que o atleta apenas precisa se esforçar por saber como explorar da melhor maneira os pontos cegos de seu manual, as zonas de conforto, amparado em tradições herméticas e fundamentalistas sem interesse em colocar à prova a efetividade de sua técnica. Também nesse caso o esporte não tem evolução, fica estagnado em vencedores conservadores que foram bem sucedidos apenas na arte macaqueante de aprender os truques, ou evolui como um monstro híbrido com mais cabeças que o necessário. Por fim, não raro as regras do jogo dependem demais da interpretação dos juízes, fazendo com que a vitória deixe de ser um triunfo, para tornar-se um mero apelo à subjetividade de pessoas com o emprego e a carreira em jogo.
            Esses são os problemas que o leigo verá em uma parte enorme dos esportes que assiste nessas Olimpíadas. E subestimaremos o olhar do leigo? No caso do judô, que é exemplo marcante, um esporte cuja origem remonta a técnicas de combate, os pontos são distribuídos à realização de golpes que realmente não existem a não ser na interpretação de seus manuais, cuja efetividade em um combate real é gritantemente discutível, e que podem ser manobrados com malandragem pelos atletas.
            Alguém irá dizer: mas assim também é a vida! – cheia de truques, artimanhas, onde os justos nunca vencem! Sim, a vida. Mas não é a vida real com suas imperfeições morais que queremos ver fielmente traduzida nas Olímpiadas, e sim um retrato moral perfeito do que ela deveria ser, de quem mereceu ganhar, de quem tem uma vontade triunfante. Só isso vincula o atleta a um ideal heroico, que nós amamos seguir porque enriquece a nossa compreensão da dignidade e da inteligência humana. Não é a toa que o xadrez tenha sido popular por tantos séculos – e ainda assim não tem o mesmo valor do futebol, pois pode ser vencido por computadores.
            A respeito desse último, cumpre observar que o pitoresco da maioria dos esportes olímpicos se opõe justamente a sua estrutura. Apesar de estar aberto também a muita dissimulação e jogo sujo, isso não desvirtua o leigo de sua admiração porque este encontra até mesmo nas faltas premeditadas parte de desafios a talentos verdadeiros, elementos fundamentais da rivalidade. O próprio fato de ser o esporte mais praticado e popular do planeta, saído dos pés de meninos das favelas, intensifica o caráter da competição que ele gera, radicalizando o sentido da vitória até o seu significado mais profundo, e envolvendo o expectador – mesmo o mais leigo – no âmago de suas emoções, medos e sofrimentos mais fortes. Comparado a ele, os demais esportes olímpicos não passam de treinos particulares e esportes acadêmicos, oficina de vencedores retóricos gerados em laboratórios de países de primeiro mundo, cujas medalhas não são diferentes de troféus de políticos mentirosos que ganham debates aprendendo como impor e proteger a sua arena de linguagem.  

sábado, 28 de julho de 2012

Os diamantes e as prostitutas da Chapada



A cidade de Lençóis é uma cidade de garimpeiros, me disse com relut^ancia o guia, resistindo retoricamente à minha pergunta sobre a atividade ilegal de extração de pedras, como se me avisasse para não tocar no assunto com essa honestidade semântica tão violenta. Contudo, ele gostava de apontar cada armação de pedras fragmentadas que enfeitava a trilha, recompondo a véspera transparente, sugerindo o passado movimentado daquelas estradas sem pavimento. Eram os destroços do que antes foram abrigos solidários aos homens tomados pela febre do diamante, uma vez que a pé a cidade mais próxima poderia custar cinco horas de trabalho atrasado. Quem eram esses homens? Tive vontade de perguntar. Mas minha pergunta não faria sentido, o guia jamais entenderia a raiz da minha curiosidade, minha vontade de saber a que vazio humano essa raça obedecia, que grande épico da angústia espiritual eles protagonizavam, com que íntima coragem exploravam as condições de uma ambição ilimitada e solitária. Queria saber a qual cultura de sofrimento e de prazer eles pertenciam, que tipo de músicas nasceria de sua experiência, que literatura seria escrita inspirada por suas frustrações e sucessos. Passamos por uma casa de garimpeiro intacta, uma metáfora de madeira embutida harmoniosamente na estrutura de pedras, como uma miscigenação poética de obra humana e natural. Ali ainda poderia viver alguém, e era inverossímil que não houvesse um dono contemporâneo. Foi quando fiz a pergunta, e o guia tergiversou, ambíguo, como se protegesse um segredo que não era seu. E eu queria fazer minha pergunta: quem eram esses homens? Mas aqueles misteriosos homens dessa breve civilização em ruína não teriam para ele nenhum encanto. Ele provavelmente acompanhou a sua trajetória sem reconhecer nenhum vestígio de mágica: eram seus tios, seus pais. E o sacrifício? O abandono e o delírio da riqueza? Mesmo o fracasso, nesses casos, tem de ser grandiloquente. Resolvi traçar minha estratégia para roubar a verdade com essa pergunta: muita gente enriqueceu naquela época? Ao que ele respondeu: olha... só quem enriqueceu mesmo com os diamantes foram as prostitutas. Sim, pensei, as prostitutas. Mas, ele continuou, não é bom usar esse nome para falar das mulheres da vida em Lençóis não, me advertiu. Não precisei de mais explicação, se era verdade que a origem das árvores genealógicas de famílias respeitadas foi aninhada nos diamantes conquistados pelo suor sexual de persuasivas oportunistas. E por que não? O próprio mito da fundação de Roma, quem sabe lá se não encobre uma dessas verdades rasteiras que a elite se esforça por erradicar dos livros da memória. Esbocei abordar o assunto, porém, o guia tergiversou novamente, mais uma vez me ditando um limite retórico, um aviso amigável de recuo: fim da linha. Ali podia estar em jogo a reputação de sua avó – com todo o respeito.  

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Chael Sonnen e a semântica


A comissão atlética de Nevada concedeu a Chael Sonnen, lutador do Ufc e desafiante de Anderson Silva, cuja apresentação hoje em dia é mais ou menos supérflua, o direito a usar um tratamento de reposição de testosterona na preparação para a luta no dia 7 de julho. O motivo é a alegação de hipogonadismo, uma condição médica que afeta o nível de testosterona do organismo. Tudo parece legítimo quando é embasado pela sabedoria impecável dos médicos. Porém, esse caso especial acorda as pulgas detrás dos ouvidos, pois se trata de um lutador dessas jaulas de violência que ganharam repercussão nos últimos anos e que, para todos os efeitos, exigem do corpo do atleta uma resistência e uma estrutura corporal extraordinária. O fato de faltar testosterona a um homem para habilitá-lo a lutar no Ufc, longe de causar espanto, apenas concorre com o esperado, uma vez que a grande maioria de humanos vivos hoje não tem a média necessária para competir naquele nível de agressividade. Por sorte, lutar no Ufc não é uma determinação médica, mas uma condição que depende da liberdade do arbítrio, e por essa razão muito cara ninguém é obrigado a receber reposição de hormônios para entrar em jaulas com monstros de fisiologia anômala até para a ciência médica mais heterodoxa.
            Mas Chael Sonnen parece estar se beneficiando da confusão entre uma condição médica e uma condição para lutar. A primeira constitui uma determinação de especialistas fundamentada em um conceito geral de saúde corporal, enquanto a segunda é apenas um esporte, e sua condição varia dependendo contra quem você vai lutar, o nível da competição, etc. Para entrar em uma jaula com o Anderson Silva, não basta ter uma condição médica satisfatória, é preciso se basear na saúde de super-humanos, e se munir com as drogas do super-soldado ou com uma dose de exposição a raios gama. O assunto põe em questão muito mais do que a simples saúde de Sonnen, mas sim a sua capacidade de superar Anderson Silva. Ora, mas então os senhores médicos são aqui outra coisa: são senhores da retórica. Na medida em que sua decisão afeta menos a saúde do paciente do que sua condição profissional, os médicos fazem aqui um papel político, não científico.
            De qualquer forma, uma condição médica pressupõe uma deficiência involuntária, e lutar profissionalmente não é uma obrigação. Chael Sonnen é livre para escolher outra profissão. Seu índice baixo de hormônios não afetará suas relações conjugais ou os outros empregos que ele decida exercer. Seu problema se limita a lutar, mas socar outra pessoa obviamente não é uma condição médica, e o profissional da saúde que se atreva a dar opinião sobre isso está atravessando os limites impostos por seu diploma: não é mais médico, mas sim um estrategista de combate. Pela mesma lógica, poderíamos trocar as mãos de lutadores com pouco poder de knockout por outras mais duras, quem sabe com um implante de metal nos dedos. Não apenas médicos, como engenheiros e técnicos de todo gênero poderiam ser chamados para suplementar as pobres carências de galos de briga.
            Nem falei ainda do que mais sofre o prejuízo dessa decisão da comissão atlética: a própria justiça. Pois, pensemos juntos, o que é justo e o que é injusto em uma luta profissional? Alguém dirá que uma luta vale tanto como uma guerra, não podendo ser injusta ou justa: tudo vale. Mas aqui falamos de uma luta profissional, onde alguns sinais servem como a expressão absoluta da voz dos participantes, como os famosos tapinhas, que significam pedir água, desistir. Portanto, é uma modalidade de luta que ainda se submete à política. Como nos outros campos políticos da vida, é a natureza das leis que protege a justiça. Não há outro jeito de decidir o que é justo em uma luta, senão como se decide o mesmo no contexto doméstico ou público: as leis devem ser cumpridas sem exceções para os ricos ou para os pobres, para os negros ou para os brancos, etc. Ora, há regras no Ufc. Se através de retórica a interpretação dessas regras começa a ser feita cheias de exceções, concessões, não há mais a justiça. A falácia de Sonnen consiste em transformar com um golpe corrupto de semântica a palavra “esteroide/anabolizante” na outra mais suave, aliciante: “tratamento de reposição de testosterona”. Dessa maneira ele consegue inserir a semente da injustiça, que jamais cresce saudável: mas fecunda contágios doentios nas negociações humanas.
            A alternativa é argumentar que o tal tratamento é como uma “ação afirmativa”. Mas comparar galos de briga com pouco testosterona com personagens civis paralisados socialmente por preconceitos arraigados na interpretação das leis é, no mínimo, uma manobra ridícula. Ao cabo, não é diferente de compará-los com deficientes físicos. Seja a alternativa que for, Sonnen não pode desmentir sua irrestrita liberdade para não lutar, procurar outra coisa para fazer. E por mais triste que isso seja para um lutador, não é nem de perto triste como não poder andar, ou não ter chances na competitividade social. Em uma luta profissional, provavelmente se alguém tem uma habilidade maior, ou a capacidade de explorar suas vantagens melhor, ele sairá o vencedor, mas se, por outro lado, ele não puder fazer isso, não é razoável que ele possa compensá-lo através de uma maneira artificial, um golpe de semântica com ajuda de médicos, ou uma ação afirmativa. Isso fere o próprio conceito que temos de esporte.
  

segunda-feira, 28 de maio de 2012

A eterna rinha dos boêmios com os moralistas


            Passei os olhos pelos jornais dos últimos dias e me deparei com o mais novo assalto contra a própria reputação cometido por Ronaldinho Gaúcho, sempre mais leal à sua inclinação boêmia que ao desejo de satisfazer as chefias, ou quem quer que seja. Lembrei-me então de Romário em sua fase memorável. Dizem que o carioca barganhava com o técnico sua saída do campo para o carnaval, e quando interrogado sobre sua volta ao Brasil, durante sua melhor fase no exterior, apenas sugeriu ao repórter: “você não sabe o que é morar no Rio de Janeiro”.
            Vi em seguida outra enxurrada de reações dos cronistas indignados erigindo promessas de inferno contra o jogador. Houve quem o chamasse de vagabundo, outros de farsa. O que esses muito respeitáveis velhos encalhados em sua ilha de decência têm de superar é o fato de que nascerão sempre versáteis moleques cheios de molejo e vida, talentosos o bastante até para desperdiçar seu talento. Têm de aprender que o seu comportamento escandaloso não é uma questão de domínio público, ou uma exploração da confiança civil, e muito menos a carga de uma dívida que eles fazem com os invejosos. Pode parecer uma injustiça dos céus, mas não há no mundo cláusula alguma reputando aos jovens levianos a responsabilidade de indenizar a amargura de anciões reprimidos que sofrem entediados com a própria memória. A propósito, é de desconfiar do moralismo de quem cobra essa dívida inexistente. Parecem aqueles infelizes que xingam de vadia a mulher que não concedeu em dar-lhes a felicidade.
            Por outro lado, o moleque e a menina muito encantados por sua própria liberdade não deveriam tampouco tentar desmentir a existência da palavra experiente, a voz da idade, que ganhou a confiança de falar mais alto e cravar na terra o valor de sua lei e censura. Por mais modelos em que a sociedade possa se camuflar, permanece fixa a condição de fidelidade exigida de seus membros. Os vários modos de credibilidade que estruturam a coexistência social são mapeados justamente pelo sistema de débitos instaurados dos antigos para os novos, e não se deve jamais subestimar o poder de sua cobrança. É essa verdade simples, porém capital, que falta à inteligência de uma camada de descontentes sociais. Ou aquela que eles preferem não ver.
            Eu, que me considero um boêmio até onde posso, acredito que a boemia é a vida como ela deve ser vivida, porém não dissimulo ignorar que a sua energia prazerosa nasce de um abuso do crédito social, não da conformidade com a regra do dia. O boêmio vive, justamente, ao avesso da regularidade diária.  E se não fosse assim, ainda seria bom?

domingo, 20 de maio de 2012

Noriel Vilela - O Umbanda, o samba e o funk

Não se pode calcular numa doutrina exata a quantidade inumerável de formas com que os ambíguos elementos da cultura africana se dissolvem no submundo das sutilezas musicais. Porém, a assinatura de sua origem é feita com letras fortes. E seu sangue negro continua a ser filtrado e semeado na estrutura fina do estilo, pela ordem de uma regra incompreensível capaz de soletrar a cifra do continente-mãe seja em blues, seja em samba, em salsa ou em mambo. Noriel Vilela traduz o espírito das religiões afro-brasileiras na tristeza e na alegria do samba, aproveitando em contrapartida a inteligência de cintura emprestada dos sopros de influência norte-americana, os abraços elétricos do balanço ritmado do funk. A sua música narra uma constelação de sensações, dando a elas fluidez e fluxo. Mistura uma vibração que vêm dos cantos repetitivos aliterando sílabas rebeldes de escombros de dialetos tribais, balbucios desenterrados do fundo da infância negra: “Ororum dá ah haha ah há”. Noriel era um homem religioso, violentamente envolvido com os poderes de invocação de sua alma. Não podia ser diferente, sabemos quando ouvimos sua obra. É difícil dizer de onde vem o gênio de um homem, de que fonte nasce sua pulsação de energia elementar, seu talento para oferecer num gesto pessoal toda a invocação de uma fase da cultura, da história, da música. Teria vindo, em Vilela, da sua compreensão do Umbanda? Deixemos essa dúvida fútil de lado. Outra coisa é mais importante. É que se vê logo que candidato ao título de gênio assim sub-repticiamente, sem segundas explicações, um homem que é uma incógnita da música brasileira. Mas não me podem criticar o pressuposto do texto, é essa tese, afinal, da genialidade incontestável do homem, que peço ao leitor como uma hipótese garantida pelo benefício da tolerância. Tenho meus motivos para gastar minha credibilidade em alguns eleitos do meu gosto. Mas me surpreendo de ter procurado mais sobre ele e nunca achado uma bibliografia mais substanciosa, nem uma homenagem mais expressiva, tendo visto o alcance intuitivo de sua realização no cenário da música. Até hoje não vi o que o rivalizasse: inigualável não apenas pela voz de baixo, mas pelo tom geral que ele dava ao som. E tudo isso em apenas uma gravação de álbum (“Eis o ôme”), o que nos deixa a insinuação dos milagres interrompidos, nunca feitos, pelo mago intérprete de divindades cheias de molejo. Morreu cedo demais. Cedo demais para que fosse reconhecido pelas toneladas de seu espírito, apesar de ter conhecido uma fama efêmera que era inevitável pelo caráter popular de suas canções. Não será, entretanto, injustiçado pela burocracia tardia do tempo: cada vez que o escuto em meu carro com uma carona ou amigo um novo ouvido é alistado, invariavelmente perguntam o que é aquilo, e se dão o tempo de uns momentos de reflexão pelo sambista de tão singular sonoridade, dono de tanta marca autoral. Há gente que não acredita que passou tanto tempo sem conhecê-lo – a não ser pela música gravada pelo Funk como le gusta e que, a rigor, é a que menos transmite a regra de seu valor musical. E há muito pouco parecido no labirinto confuso das influências musicais, embora a época tenha dado outras expressões similares de sua arte. Até esse texto apenas se redime pela humilde ambição de fazer mais pessoas procurá-lo e ouvi-lo. Quem sabe possamos esperar com um otimismo ingênuo que a repetição incansável da sua produção miúda, agora que novas gerações podem lançar os olhos sobre ela com a ajuda da distância, imprima em novos músicos a carga de suas sensações lidas através dos sons, e quem sabe o futuro guarde o fruto das sementes africanas que o grande regou. E que novos fatos concorram para exumá-lo do anonimato. Que sejam desvelados sinais e vestígios da vida misteriosa desse tesouro do estilo brasileiro. 

terça-feira, 8 de maio de 2012

A humilhação pública do autor na era das novas políticas editoriais


Francamente: não se pode deixar todo mundo feliz. Os blogs hoje são um símbolo de como o conceito de “publicação” é adaptável e relativo. Junto com a onda do progresso na forma de divulgar literatura, entendida da forma mais ampla o possível, as antigas juízas solenes do que será e o que não será lido também adotaram modelos reformados. Há agora um grupo de editoras que abriga aquelas de pequena tiragem. Basicamente, são as editoras que cobram ao autor o custo de sua publicação. Se isto começou ou não como um modelo elegante de golpe já não é possível avaliar, mas hoje a difusão da prática já lhes deu o direito de se arvorarem com a mais descarada das faces inocentes. Estão quase sufocadas com seu ar de legitimidade. Qualquer que seja a verdade, de todos os que aproveitarem alegremente dessa facilidade nova na história do mercado editorial, não se pode deixar de mencionar quem sobra: a própria dignidade do autor, que sofre essa sumária defasagem da confiança básica que, antes de tudo, deveria ser investida pelo patrocínio da editora.  Pois sem ela, sobra apenas o autor; e ninguém é mais suspeito que o próprio autor do livro na propaganda de sua obra: é suspeito porque é pressuposto, e o fato de fazer uma boa crítica de si mesmo não será jamais um evento surpreendente. Com mais frequência será tomado por arrogante, ou autocomplacente. Imaginem se os prefácios do próprio autor deixassem de usar o tom de respeito e humildade, e passassem a usar o tom predador e desrespeitoso dos pregadores e conversores religiosos! Impossível imaginar boa literatura escrita assim. Essa nova política, porém, considera as vantagens de submetê-lo à humilhação de ser o único a investir em si mesmo, traindo seus sonhos pela raiz. A editora tira habilmente o seu corpo fora, e sequer atesta a qualidade da obra com o seu próprio exemplo: afinal, se nem a editora patrocina a qualidade do texto, que exemplo oferece ao possível comprador?  É uma boa distorção do conceito editorial. O autor agora deve carregar um papelão de mendigo escrito: “me compre”. Não se pode deixar todo mundo feliz, como disse. E não há que culpar um lado ou outro, a verdade inapelável é que se depender do mercado a editora que aposta em literatura com a ajuda do próprio faro irá fatalisticamente ser condenada às chamas da falência. As opções são restritas: trabalhar apenas com planejamentos de mercado, que devem levar em conta sempre os tratados de psicologia infantil que reduzem o ser humano ao seu complexo de fetiches e vaidades pueris; ou pedir que o próprio autor arque com as despesas e o risco de seu fracasso, devassando preliminarmente o benefício da dúvida e colocando a nova literatura em uma perigosa encruzilhada: a de ser suspeita até que se prove o contrário. Mas: sem advogado de defesa!

sexta-feira, 13 de abril de 2012

A alma do Pavão-pavãozinho

             
O apartamento que me hospeda no Rio de Janeiro pertence à família de vizinhos da Rua Sá Ferreira. Parece que o carteiro fica profissionalmente satisfeito situando o local em Copacabana. O metrô mais próximo, entretanto, e bem próximo, para dizer de passagem, é o último ponto dessa linha, convencionalmente entendido como o ponto de Ipanema, o General Osório.  A controvérsia dura, seja como for. Certamente é um lugar fronteiriço, e os dois hemisférios concorrentes estão equilibrados: não há, de fato, motivo coerente para comprar a guerra. Fico feliz de estar em um como no outro. Se estiver em Ipanema é a memória da Bossa Nova que roubo em minha experiência grata, se estiver na Princesinha do Mar, ainda não saí do cenário de tanto tumulto humano singular, de tanto vulto de expressão carioca. Aliás, ali é o berço da Bossa, segundo Ruy Castro. E as praias, ambas, são lindas. Na verdade, desdenham sorridentemente do juízo do olhar, como se desprezassem os ângulos, as linhas de perspectiva, que parcelam a completude inefável de sua beleza. São imponentes, sob a custódia de seus pedregulhos robustos.
   Que não se pode negar a divergência de espírito entre essas duas regiões, contudo, é um fato.  Há diferentes espíritos camuflados nos lugares? Não será uma emboscada da nossa própria visão, que empresta a eles associações, que às suas partículas de situação junta as sutilezas dos desejos, sonhos e assombrações? Não, há sim. Já não hesito em dar essa resposta. Há diferentes espíritos inculcados nos sítios. São bagagens de experiências disponíveis que como que pairam em uma performance de contágio, e mudam o comportamento de quem pisa nessas margens. Quando saio do apartamento e enfio à direita, é uma cadeia de gestos coletivos que predomina. Quando enfio à esquerda, é outro. E não preciso da credibilidade de uma metodologia acadêmica, ou da enganação retórica de um estilo científico, para que despeje essa interpretação como fato. Ninguém o nega, mesmo que não o explique. São tão poucos metros de distância, algumas ruas apenas, mas Copacabana e Ipanema representam mais que distintas localidades geográficas. São também diferentes conceitos.
Avultando como um inimigo se projetando de um esconderijo, um terceiro espírito se manifesta às costas de ambos os bairros. Da minha posição na sala não há outra vista. O apartamento fica no fundo dos prédios, e as janelas se abrem para a favela de Pavão-pavãozinho. Há quem alardeie inveja da vista espetacular oportunizada à gente do morro, mas suspeito desse disfarce barato da condescendência dos ricos, essa cilada dos valores, de quem joga biscoitinhos ao cachorro domesticado ou bate palmas exageradas ao perdedor. Dizer que o favelado da zona sul é privilegiado é como o tapinha nas costas egoísta que o vencedor prodigaliza, em sua ofensiva prodigalidade. Seja como for, lá de cima deve ser com orgulho intransferível que os moradores tomam posse da paisagem, reivindicando-a como sua. Imagina-se que Copacabana e Ipanema tornam-se suas concubinas especiais, posando com posições eróticas às lentes sofridas do povo, que com isso se vingam suavemente dos elevadores de serviço que frequentam cá embaixo - com a satisfação do o jardineiro que come a mulher do patrão. Eu confesso que nesse comércio há retribuição. As casinhas enfileiradas e encavaladas devolvem outra beleza, que é só delas. São mil janelas encaixadas em um conjunto de torreões, formando um imenso castelo medieval de lajes, enfeitado com as cores elencadas nos varais de roupas que desfilam como oferendas ao sol da tarde. Ah, verão infinito. Isso também determina o espírito, muda o humor. O que mais me impressiona na vista é, contudo, a singular emanação de uma euforia que reúne o efeito de muitas agitações, uma algaravia que nunca passa, seja de manhã, de tarde ou de noite. Há tantas vozes e tumultos como cores. Os gritos lembram antigos puxadores de escola de samba alugando as cordas vocais ao serviço de feirantes, durante o resto do ano ocioso. E sobe e desce a escadaria uma heterogeneidade de carne e espírito humano, uma fauna que seduz os olhos, porque uma coisa que nunca deixa de entreter o homem é o próprio homem, em todas as suas expressões. 

quinta-feira, 12 de abril de 2012

O nome do samba


‘Eu componho samba. Pagode é festa na casa de pobre’ – disse Bezerra da Silva. Sendo honesto, eis aí uma daquelas distinções desafiadoras, meio frouxas, meio fixas. Para diminuir o caráter especulativo da discussão não irei recorrer à etimologia. Quem quiser ler se contente. Alguém mais reservado pode diminuir as chances de errar definindo a diferença entre pagode e samba pelos instrumentos. Um explora com mais intensidade o trabalho de grupo do violão, da voz do cavaquinho, da flauta, piano, enquanto seu parente pobre recolhe as sobras musicais abandonadas com a ajuda da percussão quase improvisada e o cavaquinho só. Provavelmente essa caracterização herda, junto com a vantagem de ser simples, a desvantagem de ser incompleta. Por que o acréscimo de um ou outro instrumento deveria ser tão decisivo na composição da linha de tons que caracteriza o ritmo, o seu sentimento fundamental, sua raiz melódica? Boa pergunta. Quem usa essa distinção seriamente, no entanto, quer dizer algo mais: quer dar uma ideia do abismo que separa o amadurecimento do samba, paralelo ao do jazz e de outras influências estruturalmente elegantes, do histórico carente do pagode, feito apenas de paixões cruas em estado de ebulição popular, muitas vezes baratas. A meu ver essa divisão tem um pouco de cruelmente aleatório: esses dois elementos não precisam estar separados, subsistiram, na verdade, e contribuíram por muito tempo para um mesmo destino artístico. Mesmo o samba e o choro mais finos carregam elementos populares irrevogáveis, a carga barata de sensações faveladas indispensáveis a sua nutrição, e os preservam misturados em seu interior como se permitissem assim integrá-los à sua substância, perdoando um pouco complacentemente a sua existência. Há momentos de descanso onde aparecem marcas de sua diferença: o samba de fundo de quintal, que revela uma tendência mais enfática de alguns traços do que viria a ser o pagode. Mas logo se acorda do desmaio e não se encontra o pretexto para criar um nome exclusivo, uma nova história e um novo nascimento para essa versão do samba curtido na laje da comunidade. Se, de uma hora para outra, o samba olhasse com olhos injetados e dissesse a uma parte de si “agora você é pagode”, desconfia-se de uma crise de autoestima, um esgotamento de paciência e de tolerância, uma insegurança sobre as suas próprias capacidades de continuar sendo uma unidade entre todos os seus componentes. Ameaçado por qualquer indício que rumoreja seu fim e morte, o ritmo orgulhoso já não pode tolerar essas cadeias pervertidas de tons que permeiam o seu organismo, que degeneram sua pureza, que gritam o samba grosseiro interpretado por suas linhas salientes, como o desenho de um artista ruim que delineia a cópia dos olhos e dos ouvidos, do perfil e da boca, porém sem absorver a matéria sutil que percorre as veias e artérias. Pode-se imaginar que a crise demanda uma cláusula. Exige a identificação de um culpado. O pagode, que não passava então de um nome alternativo, um apelido carinhoso para fazer justiça a uma parte do caráter do samba, ao seu estado dionisíaco, como sua segunda personalidade, bêbada, cambaleante, exultante, torna­­-se o bode expiatório de uma degeneração que exige medidas de segurança. Torna-se o culpado, aos olhos do mundo que anseia nostalgicamente a volta das eras clássicas, a saudade da poesia inigualável.  A mutação, a rigor, corre de ambos os lados. Sentindo-se excluído, esse velho irmão que se descobre de repente tachado de bastardo também passa a repugnar aquele que o rejeitou. E não é mentira que em casos particulares tenha virado de fato um monstro. Juntando o pandeiro, a percussão e o cavaco, o pagodeiro por vezes esboçou uma triste violência ao samba, cometeu um desacato, promovendo um festival de emoções baratas transformados em melodias bregas e arrastadas, chorosas e desgarradas, sem aquela energia penetrante do verdadeiro choro, apenas pobre e exagerado. Quando, enfim, essa diferença se tornara reconhecível por qualquer um, o nojo se instalou. Mesmo um gringo percebe logo a diferença: “não, esse não é o samba, o ritmo que me fez quase chorar e agir como uma criança, débil e impressionado. Não, isso é outra coisa”. E ninguém mais ignora, apesar de não poderem contar a diferença apenas de acordo com o número de instrumentos. Mas é tudo ainda parte de uma grande injustiça. A crise existe, o pagode virou o bode expiatório. Nas rodas de samba do rio de janeiro o grande fundamento é o que se aprendeu do pagode, contudo. O mundo acadêmico, com efeito, aprende muito mais com as cores da favela do que o contrário.  E, afinal, se pode sempre perguntar: "por que o samba precisa de um nome?".   

terça-feira, 3 de abril de 2012

A convalescência do Samba - crônica sobre a saúde de Ismael Silva

         Ali por volta de 1924, em algum hospital instalado na cidade do Rio de Janeiro ou Niterói, estrebuchava de dores, diz-se que à beira da morte, um humilde sambista. Que fosse sambista a essa época é coisa para confundi-lo com o próprio início do samba. Falamos de uma época inacessível ao nosso intelecto, quando uma diversidade de ritmos africanos migrados da Bahia lutava para naturalizar uma identidade carioca, e que mal sabiam se passariam do próximo ano, quanto mais que teriam um nome tão ilustre e uma dinastia de rebentos tão duradoura. 
                O humilde instalado em seu leito mortuário provavelmente não desconfiava de seu papel no desenrolar dessa história. Como poderia? Mestre Ismael Silva. Por pouco então a natureza não ceifara esse tesouro de uma cultura em gestação. Nossa sorte consiste em que, vez ou outra, coincidem os interesses dessas duas dimensões, e a doença desiste sem prejuízo da ideia que ela apagaria dos registros. Viveu muito, graças a deus. Gravou até vídeo. Hoje em dia posso ver vídeos no youtube com o mestre em pleno embalo de locomotiva, fôlego cheio de energia, mostrando com os braços a origem simbólica de suas melodias. É possível desenterrar de seus gestos, o sotaque do seu corpo, a raiz dos tons que o moço ventilara ao mundo. E que conjunção mágica de acentos na sua assinatura!
                Lembro-me de escutar “Se você jurar...” a primeira vez em uma festa de pandeiro e tamborim da Lagoa da Conceição, e no furdunço de vozes e doces euforias, distinguir muito mal a letra. A força da melodia, portanto, me tinha indefeso. A voz e a língua, o português miscigenado do país com nome de árvore, somava-se ao acento da melodia para desfalecer minha alma naquele misto de alegria e tristeza indefinível dissolvido numa solução harmônica que caracteriza uma das mais fortes contribuições do samba para o estilo. E Ismael o tinha como ninguém. Vinícius de Morais dissera que “a grande força do samba [de Ismael] é a melodia”. De fato, o é. Difícil imaginar maiores evoluções das escalas enfáticas em uma música tão suave e simples.  É como se um carro freasse e fizesse curvas de surpresa. Por isso que o seu samba é seguido pelo próprio estômago, que não menos que o pé calcula tonturas e enjoos no interior da alma. Mas paramos de falar da substância do samba, que é inefável, “nem se atreva a me dizer”.
                Diz a anedota que o moço doente de 1924 foi interrompido em sua cama de hospital pela notícia de que um tal Alcebíades Barcelos o queria ver. Aquele que viria a ser posteriormente autor de “Escola de Malandro” – junto com Noel – provavelmente seguiu algum escrúpulo de deixar entrar alguém na sua paz. Visitas de hospital, o malandro sabe, só compensa a aporrinhação se for para cobrar dívida. Mas se a morte o esperava tão de perto, que mal havia em dar uma última chance aos seus credores? Ismael o deixou falar, e recebeu a notícia de que Francisco Alves queria comprar a sua música “Não me faz carinhos...” por cem mil réis. Não faço ideia de como converter esse número para um valor atual. Mas certamente era dinheiro para motivar um doente malandro, um incentivo moral que dava à cultura uma oportunidade nova contra as garras da natureza severa. Porque se diz que depois disso o mestre regenerou, como jurou em sua música (desde que ela jurasse lhe ter amor). Virou a página do hospital para a rua, vendeu sem ciúmes a cobiçada melodia e convalesceu com honras.
                A anedota continua, contando que Ismael, bom novamente, na sua famosa escola de samba do Estácio – (o mestre se nomeia ironicamente o inventor das escolas de samba) – foi surpreendido com uma turma de pagode por um carro suspeito espreitando a esquina da música como se procurasse por alguém. Polícia? Até quem não devia nada ficou tenso, paralisado como um lagarto esperando a águia passar. Estacionado, o carro deu saída ao próprio Francisco Alves. Este foi cercado pela turma atônita e sem cerimônia de celebridade agarrou o violão, dando ao niteroiense e o seu bando uma de suas noites mais inesquecíveis, de samba vivo, pujante, anunciador, que foi até a emergência da alvorada. Ao fim, aproveitando o encantamento, o visitante ofereceu a Ismael seu contrato. A parceria todos nós conhecemos. Silva, fiel, teve a energia de não esquecer Newton Bastos na assinatura do novo projeto. E atrás dessa alvorada inesquecível, outras tantas se seguiram. Nossos ouvidos gemem de saúde graças a esse episódio de convalescência.  

sexta-feira, 30 de março de 2012

Um Araújo do deserto


            É um patrimônio um pouco vão de nosso orgulho – e também um pouco infantil e iludido, confesso – ter durante essa travessia universitária cultivado entre os amigos alguns entre os quais é fácil ver um segundo brilho, mais interior e mascarado, mais intenso e confinado, um brilho que anuncia ambições menos ordinárias e projetos despojados de vulgaridade. Adivinha-se em seu ventre o feto de muitos futuros. Conto Diogo Araújo entre um desses motivos de um pueril peito estufado. Não me confundam com um amigo antigo: não tenho esse interesse distorcendo o elogio. Quando o conheci, tinha apenas uma ideia vaga do valor de sua energia, do tom que predomina em seus segmentos de voz, de verbo, logos. Hoje só posso invocar sua presença mediante a imagem de um solitário beduíno colhendo inspirações evanescentes através das enxadadas de seus passos no deserto. Desenterrando histórias dos grãos de datas ancestrais. E seu avanço entre o assédio de monstros de areia me assombra com a estatura de uma tarefa. Não sou um amigo autorizado pelas camadas do tempo, mas desculpo minha vaidade de querer ser, entre ele e eles, um alvo da mesma regra, abarcado pela mesma universalidade restrita, seleta, terráquea, embora apontada para a lua de sua plataforma espacial. É uma ideia que incendeia as turbinas. Um pedaço ainda precoce de projetos abstratos tomando a forma de cultura. As poesias de Araújo mostram, mais do que poderia eu propagandear, o talento da visão, da dilatação e manipulação das bolhas intuitivas, a suavidade na composição das imagens, a capacidade de ser um hospedeiro das formas. Quem puder conferir, não se faça de intimidado: http://aspipas.blogspot.com.br/search/label/Cantos%20do%20Matita%20Per%C3%AA. Minha admiração é um investimento. Não preciso de pretexto para bajular quem o merece, mas também não faço nada de graça: um futuro próximo guarda um sucesso que me enaltece como um dos primeiros anunciadores. 

domingo, 18 de março de 2012

Vento Sul

Quando os galhos dos coqueiros são arrastados no ar em direção ao sul, é que o vento norte comanda o leme das nuvens. Da minha janela eu sei então que a praia Brava não dá a luz senão a lombadas bastardas, fecundada pela fúria do “maral” madrasto. Ao mesmo tempo o canto esquerdo do Santinho prospera em uma trégua de “terral”. Se o sopro caprichoso resolver encabeçar para nordeste não sobra praia do norte para surfar, porque o leste daí é apenas uma questão de tempo, e é um castigo: ao vir com força, saqueia até um pouco da beleza do mar, arruinando o seu penteado de chapinha.
            Se assim encrespado continua a sugerir paixões, é apenas porque é o mar, e na minha ilha linda não é o prejuízo de alguns cachos que vai empobrecer a imensa franja ondulada do oceano.
            Rapunzel vaidosa, dificilmente erra na cor. Está tingido de um azul e verde regular. Embora não seja particularmente caribenho, vence com grande margem as águas injetadas de barro de rio do norte e nordeste do país. Quando dorme, é como uma criança sem pesadelos. Mas eventualmente acorda de um sono pesado com uma tonelada de desejos reprimidos, remoendo as inigualáveis profundidades, e projetando sobre a superfície sua carga espumante de problemas não resolvidos. A Joaquina é então a melhor aposta. Com muita sorte sua estrutura oceanográfica permite abrigar uma estória havaiana no cenário florianopolitano. Quem se lembra dos raros swells da Joaca, quem entrou no mar de jet ski e quem se arriscou na braçada, tem mais a contar do que eu, que assisti a famosa lestada com vento oeste de 2005 das pedras.
            E quando falamos de tantos mistérios e elementos, não podemos deixar de falar do vento sul, cuja trajetória esconde conspirações em gestação nas proximidades da solidão polar. Quem vai saber o que se discute por lá? Os locais o tratam familiarmente, já sabem que três dias serão ceifados quando ele chega, trazendo um frio de inverno ou de verão, espalhando sementes de um humor novo – pois os ventos trazem humores. Zunindo como um torpedo, faz as águas do Campeche desfalecerem como paçocas desmaiadas no polegar, esfarelando a água em pó, forçando a greve de surfistas do norte e do sul. Joaquina, Mole, ou Praia Brava e Matadeiro, são boicotadas em grupo. Somente algum segredo entre pedras e lajes – que não denunciarei – resiste ao despovoamento. Toda a comunidade espera, espera, subordinada à agenda de lufadas do imprevisível. Já se sabe que o tempo é dele, três dias ceifados.
            Quando a noite chega, ele uiva, facultando imagens poéticas pelas frestas das persianas. Uiva como um cão apaixonado acusando o próprio sofrimento. Os primeiros fantasmas da minha infância foram talvez provocados pelo canto de mágoas desse hóspede indisciplinado, que me fazia imaginar por trás da janela do quarto a presença de um fôlego vivo, o hálito de alguém forçando sua história pelo filtro de cada estreito hiato das portas e janelas. É o vento castigando as gerações com sua vaidade de experiente. E minha imaginação, assim, deve muito a ele. Sou-lhe grato, sobretudo, pelos exageros inflacionando minha concepção de realidade e sem os quais eu talvez fosse tão simplório quanto um cientista. 
               Essa ilha que é território de seu domínio, há muitos e muitos séculos, foi esculpida pelas mesmas carícias mágicas que deram paternidade às bruxas. Há nessa ilha açoriana, como em nenhuma outra, sulcos profundos e rugas marcantes, cavidades que não esquecem. O vento sul soprou incansavelmente sobre a sua alma erodida. 

domingo, 11 de março de 2012

A música e os músicos segundo Tolstói

            Já faz um tempo que venho caçando ocasião para discutir a opinião de Tolstói sobre a música, usando como referência o primeiro presto da sonata a Kreutser de Bethoven no conto com o mesmo nome. Injustiça, talvez, atribuir ao autor a opinião de um de seus personagens. Afinal, é a opinião de um personagem suspeito. Para quem não leu e não se importa de ouvir parte do enredo, falamos de um marido enganado, e enganado por um músico. É um personagem com motivos para odiar a influência da música sobre a sensibilidade do animal que é o homem, e sobretudo do animal que se torna a mulher. A má fama dos músicos pelas casas de família do século XIX até que não devia ser incomum, porque não só por gasto de tempo esta deixou de difamá-lo: essa reputação do sedutor amigo da noite e finório, erudito dos segredos da persuasão, sábio de botequim e malandro. Tolstói descreve o inimigo dos lares personificado em seu conto como, além de alguém com alta afinação e possuidor daquilo a que chamam “tom”, um homem “com seus olhos de amêndoa, úmidos, lábios vermelhos, sorridentes, bigodinho com fixador, penteado da última moda, (...), com um traseiro particularmente desenvolvido, parecendo de mulher, como, segundo dizem, existem entre os hotentotes. Estes, segundo se diz, também são musicais”. Mas essa imagem heterogênea e rica de miscigenações linguísticas é uma distração. O personagem é uniforme, reflete o modo como o autor compreende mais intimamente a imagem da música, como esta se moveria nos salões se tivesse pés, e como se pentearia se tivesse cabelos e bigodes lisos. É a música a inimiga do personagem ciumento. É a música que empina aos seus intérpretes o traseiro, o pronunciando como um acento melodioso de consequências desastrosas para a fidelidade dos casais. Mas por que mais um russo traído deveria ser o mensageiro de um ódio à música que vem mais vocal que o de Platão? O filósofo convocou a sua perseguição como um assunto da república, pois hipnotizar pessoas indefesas e dominar a sua vontade é um desserviço à razão. A música inaugura um fluxo de tonalidades que infringe a razão, tira o julgamento da sensibilidade, prostrando o ouvindo sob o julgo de sensações que não são dele, que não têm presença em sua alma, que vêm de fora, como o honroso fantasma de invocações primais. Não é por acaso que as orações e preces sejam originalmente musicais. Pela música o ouvido, as mãos, os olhos, a boca e os pés, aprendem a imitar, e pela imitação sistemática chega à simulação de estados: se convence, se contradiz, se nega, afirma, acredita, em suma, pensa e sente, e sem o ter feito de fato, mas apenas por ter imitado, seguindo a cadeia do fluxo musical, como faria o corpo enquanto dança.  Basta uma digna distribuição de acentos e ênfases, declives e aclives sonoros, para criar o simulacro de uma verdade, para dispor da mesma força de um argumento, sem que de fato o conteúdo do argumento seja avaliado – é apenas a sua superfície tônica que seduz, arrasta, inclina. E por isso diz Tolstói: “a música obriga-me a esquecer-me de mim mesmo, da minha verdadeira condição, ela me transporta a outra, que não é minha: sobre o influxo da música, tenho a impressão de sentir o que, de fato, não sinto, de compreender o que, a bem dizer, não compreendo, de poder o que, na verdade, não posso”. Há o drama dos românticos, sentimentais e moralistas nessa abordagem. E, no entanto, ela poderia ser a mais correta e justa. A mesma compreensão, sem o drama do traído nem a severidade do filósofo, captura a particularidade da música em sua expressão mais elementar: sua potencialidade para incentivar imagens, invocar espíritos, ampliar a visão, em uma palavra, dilatar os poros intuitivos. Assim se corrobora o dito de que é a “janela da alma”. Porém, de fato, ela apela a nossa dimensão animal mais do que a qualquer outra, embora toque essa animalidade inspirada que pode desaguar em uma loucura inteligente, e que será sempre um empecilho à fidelidade das esposas, pois deixa a verdade e o certo nas mãos do que decide o alegre violeiro de traseiro loquaz – embora este não decida nada por si mesmo, sendo não mais que um serviçal dos tons.