statcounter

sexta-feira, 13 de abril de 2012

A alma do Pavão-pavãozinho

             
O apartamento que me hospeda no Rio de Janeiro pertence à família de vizinhos da Rua Sá Ferreira. Parece que o carteiro fica profissionalmente satisfeito situando o local em Copacabana. O metrô mais próximo, entretanto, e bem próximo, para dizer de passagem, é o último ponto dessa linha, convencionalmente entendido como o ponto de Ipanema, o General Osório.  A controvérsia dura, seja como for. Certamente é um lugar fronteiriço, e os dois hemisférios concorrentes estão equilibrados: não há, de fato, motivo coerente para comprar a guerra. Fico feliz de estar em um como no outro. Se estiver em Ipanema é a memória da Bossa Nova que roubo em minha experiência grata, se estiver na Princesinha do Mar, ainda não saí do cenário de tanto tumulto humano singular, de tanto vulto de expressão carioca. Aliás, ali é o berço da Bossa, segundo Ruy Castro. E as praias, ambas, são lindas. Na verdade, desdenham sorridentemente do juízo do olhar, como se desprezassem os ângulos, as linhas de perspectiva, que parcelam a completude inefável de sua beleza. São imponentes, sob a custódia de seus pedregulhos robustos.
   Que não se pode negar a divergência de espírito entre essas duas regiões, contudo, é um fato.  Há diferentes espíritos camuflados nos lugares? Não será uma emboscada da nossa própria visão, que empresta a eles associações, que às suas partículas de situação junta as sutilezas dos desejos, sonhos e assombrações? Não, há sim. Já não hesito em dar essa resposta. Há diferentes espíritos inculcados nos sítios. São bagagens de experiências disponíveis que como que pairam em uma performance de contágio, e mudam o comportamento de quem pisa nessas margens. Quando saio do apartamento e enfio à direita, é uma cadeia de gestos coletivos que predomina. Quando enfio à esquerda, é outro. E não preciso da credibilidade de uma metodologia acadêmica, ou da enganação retórica de um estilo científico, para que despeje essa interpretação como fato. Ninguém o nega, mesmo que não o explique. São tão poucos metros de distância, algumas ruas apenas, mas Copacabana e Ipanema representam mais que distintas localidades geográficas. São também diferentes conceitos.
Avultando como um inimigo se projetando de um esconderijo, um terceiro espírito se manifesta às costas de ambos os bairros. Da minha posição na sala não há outra vista. O apartamento fica no fundo dos prédios, e as janelas se abrem para a favela de Pavão-pavãozinho. Há quem alardeie inveja da vista espetacular oportunizada à gente do morro, mas suspeito desse disfarce barato da condescendência dos ricos, essa cilada dos valores, de quem joga biscoitinhos ao cachorro domesticado ou bate palmas exageradas ao perdedor. Dizer que o favelado da zona sul é privilegiado é como o tapinha nas costas egoísta que o vencedor prodigaliza, em sua ofensiva prodigalidade. Seja como for, lá de cima deve ser com orgulho intransferível que os moradores tomam posse da paisagem, reivindicando-a como sua. Imagina-se que Copacabana e Ipanema tornam-se suas concubinas especiais, posando com posições eróticas às lentes sofridas do povo, que com isso se vingam suavemente dos elevadores de serviço que frequentam cá embaixo - com a satisfação do o jardineiro que come a mulher do patrão. Eu confesso que nesse comércio há retribuição. As casinhas enfileiradas e encavaladas devolvem outra beleza, que é só delas. São mil janelas encaixadas em um conjunto de torreões, formando um imenso castelo medieval de lajes, enfeitado com as cores elencadas nos varais de roupas que desfilam como oferendas ao sol da tarde. Ah, verão infinito. Isso também determina o espírito, muda o humor. O que mais me impressiona na vista é, contudo, a singular emanação de uma euforia que reúne o efeito de muitas agitações, uma algaravia que nunca passa, seja de manhã, de tarde ou de noite. Há tantas vozes e tumultos como cores. Os gritos lembram antigos puxadores de escola de samba alugando as cordas vocais ao serviço de feirantes, durante o resto do ano ocioso. E sobe e desce a escadaria uma heterogeneidade de carne e espírito humano, uma fauna que seduz os olhos, porque uma coisa que nunca deixa de entreter o homem é o próprio homem, em todas as suas expressões. 

quinta-feira, 12 de abril de 2012

O nome do samba


‘Eu componho samba. Pagode é festa na casa de pobre’ – disse Bezerra da Silva. Sendo honesto, eis aí uma daquelas distinções desafiadoras, meio frouxas, meio fixas. Para diminuir o caráter especulativo da discussão não irei recorrer à etimologia. Quem quiser ler se contente. Alguém mais reservado pode diminuir as chances de errar definindo a diferença entre pagode e samba pelos instrumentos. Um explora com mais intensidade o trabalho de grupo do violão, da voz do cavaquinho, da flauta, piano, enquanto seu parente pobre recolhe as sobras musicais abandonadas com a ajuda da percussão quase improvisada e o cavaquinho só. Provavelmente essa caracterização herda, junto com a vantagem de ser simples, a desvantagem de ser incompleta. Por que o acréscimo de um ou outro instrumento deveria ser tão decisivo na composição da linha de tons que caracteriza o ritmo, o seu sentimento fundamental, sua raiz melódica? Boa pergunta. Quem usa essa distinção seriamente, no entanto, quer dizer algo mais: quer dar uma ideia do abismo que separa o amadurecimento do samba, paralelo ao do jazz e de outras influências estruturalmente elegantes, do histórico carente do pagode, feito apenas de paixões cruas em estado de ebulição popular, muitas vezes baratas. A meu ver essa divisão tem um pouco de cruelmente aleatório: esses dois elementos não precisam estar separados, subsistiram, na verdade, e contribuíram por muito tempo para um mesmo destino artístico. Mesmo o samba e o choro mais finos carregam elementos populares irrevogáveis, a carga barata de sensações faveladas indispensáveis a sua nutrição, e os preservam misturados em seu interior como se permitissem assim integrá-los à sua substância, perdoando um pouco complacentemente a sua existência. Há momentos de descanso onde aparecem marcas de sua diferença: o samba de fundo de quintal, que revela uma tendência mais enfática de alguns traços do que viria a ser o pagode. Mas logo se acorda do desmaio e não se encontra o pretexto para criar um nome exclusivo, uma nova história e um novo nascimento para essa versão do samba curtido na laje da comunidade. Se, de uma hora para outra, o samba olhasse com olhos injetados e dissesse a uma parte de si “agora você é pagode”, desconfia-se de uma crise de autoestima, um esgotamento de paciência e de tolerância, uma insegurança sobre as suas próprias capacidades de continuar sendo uma unidade entre todos os seus componentes. Ameaçado por qualquer indício que rumoreja seu fim e morte, o ritmo orgulhoso já não pode tolerar essas cadeias pervertidas de tons que permeiam o seu organismo, que degeneram sua pureza, que gritam o samba grosseiro interpretado por suas linhas salientes, como o desenho de um artista ruim que delineia a cópia dos olhos e dos ouvidos, do perfil e da boca, porém sem absorver a matéria sutil que percorre as veias e artérias. Pode-se imaginar que a crise demanda uma cláusula. Exige a identificação de um culpado. O pagode, que não passava então de um nome alternativo, um apelido carinhoso para fazer justiça a uma parte do caráter do samba, ao seu estado dionisíaco, como sua segunda personalidade, bêbada, cambaleante, exultante, torna­­-se o bode expiatório de uma degeneração que exige medidas de segurança. Torna-se o culpado, aos olhos do mundo que anseia nostalgicamente a volta das eras clássicas, a saudade da poesia inigualável.  A mutação, a rigor, corre de ambos os lados. Sentindo-se excluído, esse velho irmão que se descobre de repente tachado de bastardo também passa a repugnar aquele que o rejeitou. E não é mentira que em casos particulares tenha virado de fato um monstro. Juntando o pandeiro, a percussão e o cavaco, o pagodeiro por vezes esboçou uma triste violência ao samba, cometeu um desacato, promovendo um festival de emoções baratas transformados em melodias bregas e arrastadas, chorosas e desgarradas, sem aquela energia penetrante do verdadeiro choro, apenas pobre e exagerado. Quando, enfim, essa diferença se tornara reconhecível por qualquer um, o nojo se instalou. Mesmo um gringo percebe logo a diferença: “não, esse não é o samba, o ritmo que me fez quase chorar e agir como uma criança, débil e impressionado. Não, isso é outra coisa”. E ninguém mais ignora, apesar de não poderem contar a diferença apenas de acordo com o número de instrumentos. Mas é tudo ainda parte de uma grande injustiça. A crise existe, o pagode virou o bode expiatório. Nas rodas de samba do rio de janeiro o grande fundamento é o que se aprendeu do pagode, contudo. O mundo acadêmico, com efeito, aprende muito mais com as cores da favela do que o contrário.  E, afinal, se pode sempre perguntar: "por que o samba precisa de um nome?".   

terça-feira, 3 de abril de 2012

A convalescência do Samba - crônica sobre a saúde de Ismael Silva

         Ali por volta de 1924, em algum hospital instalado na cidade do Rio de Janeiro ou Niterói, estrebuchava de dores, diz-se que à beira da morte, um humilde sambista. Que fosse sambista a essa época é coisa para confundi-lo com o próprio início do samba. Falamos de uma época inacessível ao nosso intelecto, quando uma diversidade de ritmos africanos migrados da Bahia lutava para naturalizar uma identidade carioca, e que mal sabiam se passariam do próximo ano, quanto mais que teriam um nome tão ilustre e uma dinastia de rebentos tão duradoura. 
                O humilde instalado em seu leito mortuário provavelmente não desconfiava de seu papel no desenrolar dessa história. Como poderia? Mestre Ismael Silva. Por pouco então a natureza não ceifara esse tesouro de uma cultura em gestação. Nossa sorte consiste em que, vez ou outra, coincidem os interesses dessas duas dimensões, e a doença desiste sem prejuízo da ideia que ela apagaria dos registros. Viveu muito, graças a deus. Gravou até vídeo. Hoje em dia posso ver vídeos no youtube com o mestre em pleno embalo de locomotiva, fôlego cheio de energia, mostrando com os braços a origem simbólica de suas melodias. É possível desenterrar de seus gestos, o sotaque do seu corpo, a raiz dos tons que o moço ventilara ao mundo. E que conjunção mágica de acentos na sua assinatura!
                Lembro-me de escutar “Se você jurar...” a primeira vez em uma festa de pandeiro e tamborim da Lagoa da Conceição, e no furdunço de vozes e doces euforias, distinguir muito mal a letra. A força da melodia, portanto, me tinha indefeso. A voz e a língua, o português miscigenado do país com nome de árvore, somava-se ao acento da melodia para desfalecer minha alma naquele misto de alegria e tristeza indefinível dissolvido numa solução harmônica que caracteriza uma das mais fortes contribuições do samba para o estilo. E Ismael o tinha como ninguém. Vinícius de Morais dissera que “a grande força do samba [de Ismael] é a melodia”. De fato, o é. Difícil imaginar maiores evoluções das escalas enfáticas em uma música tão suave e simples.  É como se um carro freasse e fizesse curvas de surpresa. Por isso que o seu samba é seguido pelo próprio estômago, que não menos que o pé calcula tonturas e enjoos no interior da alma. Mas paramos de falar da substância do samba, que é inefável, “nem se atreva a me dizer”.
                Diz a anedota que o moço doente de 1924 foi interrompido em sua cama de hospital pela notícia de que um tal Alcebíades Barcelos o queria ver. Aquele que viria a ser posteriormente autor de “Escola de Malandro” – junto com Noel – provavelmente seguiu algum escrúpulo de deixar entrar alguém na sua paz. Visitas de hospital, o malandro sabe, só compensa a aporrinhação se for para cobrar dívida. Mas se a morte o esperava tão de perto, que mal havia em dar uma última chance aos seus credores? Ismael o deixou falar, e recebeu a notícia de que Francisco Alves queria comprar a sua música “Não me faz carinhos...” por cem mil réis. Não faço ideia de como converter esse número para um valor atual. Mas certamente era dinheiro para motivar um doente malandro, um incentivo moral que dava à cultura uma oportunidade nova contra as garras da natureza severa. Porque se diz que depois disso o mestre regenerou, como jurou em sua música (desde que ela jurasse lhe ter amor). Virou a página do hospital para a rua, vendeu sem ciúmes a cobiçada melodia e convalesceu com honras.
                A anedota continua, contando que Ismael, bom novamente, na sua famosa escola de samba do Estácio – (o mestre se nomeia ironicamente o inventor das escolas de samba) – foi surpreendido com uma turma de pagode por um carro suspeito espreitando a esquina da música como se procurasse por alguém. Polícia? Até quem não devia nada ficou tenso, paralisado como um lagarto esperando a águia passar. Estacionado, o carro deu saída ao próprio Francisco Alves. Este foi cercado pela turma atônita e sem cerimônia de celebridade agarrou o violão, dando ao niteroiense e o seu bando uma de suas noites mais inesquecíveis, de samba vivo, pujante, anunciador, que foi até a emergência da alvorada. Ao fim, aproveitando o encantamento, o visitante ofereceu a Ismael seu contrato. A parceria todos nós conhecemos. Silva, fiel, teve a energia de não esquecer Newton Bastos na assinatura do novo projeto. E atrás dessa alvorada inesquecível, outras tantas se seguiram. Nossos ouvidos gemem de saúde graças a esse episódio de convalescência.