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segunda-feira, 19 de maio de 2014

O Mito dos cabarets paulistanos

 Na descrição mais detalhada já feita por quem não estava absolutamente lá, direto da boca de um autêntico amigo meu – embaixador de um legítimo cunhado de um comprovado seu primo – ouvi ontem o interessante relato de um show pitoresco de cabaré. Distintivo pelo caráter de lenda urbana. Essa é a narrativa suja de um operário de um puteiro de São Paulo, desperdício de um dom raro e exemplo de uma misteriosa vocação genética, vivendo como um animal exótico fazendo dinheiro miúdo ao prostituir seu talento de visionário em alguma espelunca que o esconde da civilização. Como um grato explorado, está satisfeito: protege-se assim da insegurança de seus pares. Compreensível é que o abordem com medo.  A humanidade nunca deixou de cobrar a existência do desusado e do pioneiro, embora – coisa injusta! – não aumente o imposto para os estúpidos e malandros que exploram as facilidades vulgares para se tornarem poderosos, ricos e privilegiados.
E assim, na calada de alguma colônia imunda de zonas paulistanas, a troco de risos grosseiros e ao julgo do olhar ignorante de clientes sem sutileza para entender uma piada, ele performa o seu número de mágica poluída, sem deixar de ser valorizado, entretanto, por nosso confiável anônimo; padroeiro de todas as estórias perdidas na marginalidade das sarjetas. 
Conta a lenda que o fenômeno era um homem comum, careca, com olhos castanhos e nariz achatado, baixinho, magro e de compleição nordestina, a mais comum das figuras do cotidiano paulista, embora no olhar meditativo refletisse luzes de um orgulho incompreensível, um toque sutil de monge tibetano exilado, de homem não mundano, aspectos que poucos percebiam. Enrolado em uma toalha e de resto nu, a sua chegada invariavelmente ceifava murmúrios de impaciência seguidos de vaias hostis, porque tomava de repente o palco que minutos antes fora de criaturas do belo sexo, e ameaçava amargurar os olhos do público com a queda catastrófica da toalha bendita, véu abençoado separando os clientes de uma  visão lamentável. E era então que a toalha caía! Todas as luzes miravam o que menos se queria ver - uma manobra enfática. Absorvidos pela escuridão nas periferias que rodeavam o astro, o público esboçava vozes de quem está sendo torturado e o murmúrio conjunto do recinto fazia lembrar os lamentos imemoriais de um jardim de almas penitentes. Ruídos de cadeiras caindo e pés de mesa rangendo; passos desesperados tentando achar o caminho da saída.
 Ato contínuo, o silêncio gradualmente se expandia, o silêncio da surpresa, dos atônitos com o tamanho desproporcional que se desenrolara como uma jibóia treinada. Uma risada: “seu jumento!”, pulava de alguma boca, e a gargalhada ressoava em ecos, irrompendo o clima de perdição, lembrando um ambiente de orgias romanas ou de macacos brincando com a própria merda. Ao palco, com os braços flexionados sobre a cintura na postura prosaica do super-herói, o rosto do superdotado assumia uma expressão de foco, o queixo se movia para diante ligeiramente, o bico do lábio inferior se pronunciava, e os olhos dilatados dardejavam o vácuo à sua frente como se tentasse levantar as mesas com a força do pensamento. Quando, sem mexer os braços, a cintura ou os dedos, semelhante a uma mangueira içada por manivelas rangentes dos bastidores, seu órgão – perdoem-me; em algum momento teria de mencioná-lo sem eufemismos! – subia implacável e contínuo como um ser dotado de vontade, como a ponta de um raciocínio que persegue uma verdade, o céu apenas por limite.
Sei que a imagem é degradante, caros leitores, e não costumo convidá-los sempre à conversação neste blog, embora agora veja a necessidade de apaziguá-los. Aviso que não deixam de prever o valor do seu sacrifício de ler até o fim, entretanto, mitigados por saber da existência desse ser desleal que se esconde da ciência e da cultura, mas não dos relatos que viajam de boca em boca – os quais se devem à ação do proverbial espirito da cidade que o assistiu e transformou em mito. Eu mesmo, quem sou, para negar o espaço modesto de meu blog para repassar a informação?
 Na posição em que o deixamos no palco, o impassível telepata fálico cerrou os olhos devagar como se acessasse a estrutura do mundo invisível, e numa apoteose de mágica incognoscível, o arauto do mistério assombrosamente concluiu sua amostra de poderes sobrenaturais eclodindo em um orgasmo de dois minutos. Dessa imagem eu lhes poupo a descrição mais minuciosa! A experiência aterradora provavelmente deixa catatônicos por dias os que chegaram a ver o colonizador salivando seu pródigo cofre de sementes, mensageiro de uma nova técnica tântrica. A sala mal iluminada de um beco qualquer o esconde da civilização.  Não vai ganhar um contrato milionário, e melhor é que continue discreto, não se expondo à ambição dos invejosos. Ainda por cima, nasceu no hemisfério errado: seria a grande sensação de uma sociedade poligâmica. Sua mulher, uma simples senhora sem consciência da própria sorte, e ainda ingrata, jamais reclamará das obrigações noturnas, porém não deixará de tortura-lo quando chegar bêbado ou esquecer de baixar a tampa do vaso. Injusta distribuicao de méritos!

sábado, 17 de maio de 2014

Nelson Sargento, Lagoa, 07/10/2012

Lua do dia 07 de outubro de 2012: Uma noite como outras na Lagoa? Exceto pela lenda do samba que pisou suas margens, aos passos miúdos da experiência, carreta humana de um armazém do tempo que vai ficando para sempre mumificado nos cadernos das crônicas da Mangueira; lá onde, em um desfile de mitos, andaram juntos poetas que valem a oferta de uma constelação, e que agora só podem mesmo ter se convertido em estrelas, habitando um céu que prorroga a chegada do “Nelson remanescente”, que sobrou para contar a história aos netos da cultura que ele ajudou a semear. O sargento desceu do carro na porta, baixinho, andou encurvado, sem pressa, cumprimentou e distribuiu autógrafo a quem pediu, e, desafiando quem achou que a madrugada ia vencê-lo, começou a cantar só uma e meia, com uma voz modificada, mas ainda atinada, fecunda, mensageira de gerações e profeta de influências do passado. Ritual de gestos musicais: deu a mão a todos os músicos do palco com a parcimônia de um cerimonioso pastor, cantou músicas suas e de seus próximos, Cartola, Cavaquinho, bancando viagens pela memória do samba, transportando os ouvidos mal alimentados do presente a um cofre de joias sonoras, tristes ou alegres, autênticas. Foi ele quem disse: ‘Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve’. Ora, mas emprestou a “Alvorada” desse sonho coletivo do Brasil, e todos nós adormecemos juntos. Domingo alvoreceu uma primavera de aplausos atrás do morro da praia mole, refletindo os ecos de uma época de gratidão.