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sábado, 30 de setembro de 2017

Vontade de Nascer (um mini-conto)

Dona Eusébia tentou de tudo, até trancar a filha no quarto. E trancá-la no quarto o fez. Mas como fosse plástica, a própria parede confabulava contra ela, se não a própria lei física que se subvertia para colaborar com os subterfúgios misteriosos do diálogo amoroso. Nem a geografia deixou de ser recrutada. Como ele entrava e ela saía, sem essa explicação? A fiscal materna conferia o quarto de manhã, e não havia um vestígio de truque. A mágica era legítima! Tarde demais. Não deixa de ser curioso como os cuidados diligentes do bem são vagos e inseguros comparados à vigília incansável das intenções lascívias, que perdem o sono e ignoram os apelos do próprio corpo, mas não adormecem antes de terem seus planos satisfeitos. Eventualmente os bons conselhos vencem, mas jamais por excesso de força ou superioridade de número. Basta às inteligências concupiscentes um pequeno ateio de fogo, e ela se alastra com uma velocidade que não deixa pensamento algum escapar ao seu alcance. Os seduz e convence a pesar a seu favor na disputa sempre violenta que trava com as inteligências serenas, que quando chegam já é tarde; apenas arrebanham os últimos e menos capazes fragmentos de pensar, a sobra. A tentação de consumar os atos proibidos é industriosa; a força de vontade para evitá-lo já sempre sucumbiu à preguiça. 
Ossos do Ofício (um mini-conto). Durante a manhã uma notícia, mistura de cômico, fantástico e horror, ganhava horizontes nos ares do bairro que abrigava o cemitério: acharam o corpo de um rapaz com mais ou menos vinte e cinco anos enfartado na ala das tumbas engavetadas, com a roupa enganchada em um osso protuberante que saía em projeção de uma das urnas de defuntos exumados. O osso desorbitado de sua caixa era obra de um dos cachorros frequentadores, que fazem companhia aos coveiros e provocam ingênuos sacrilégios nas caixas de concreto rachadas pelas más condições da instituição dos mortos, irrepreensivelmente tentados pelo banquete de esqueletos que jaz através daquelas pequenas ruínas. Diziam as línguas curiosas que o defunto mais recente tinha na face uma interjeição de susto pintada com um esmalte gramatical que nem a química mórbida dos cosméticos da morte removeu de sua expressão. Ai! - parecia uma redação escrita em seus olhos, dizendo “fui pego”. “Segundo o laudo médico, morreu de infarto do miocárdio. Provavelmente um desses profanos vândalos de santuários, que desta vez foi agarrado pelos ossos da profissão”.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Meu apoio aqui é o segundo Wittgenstein nas Philosophical Investigations:



"654.
Our mistake is to look for an explanation where we ought to
look at what happens as a 'proto-phenomenon'. That is, where we
ought to have said: this language-game is played."

"Suppose I say of a friend: "He isn't an automaton".—What information
is conveyed by this, and to whom would it be information? To
a human being who meets him in ordinary circumstances? What
information could it give him? (At the very most that this man always
behaves like a human being, and not occasionally like a machine.)
"I believe that he is not an automaton", just like that, so far makes
nosense.
My attitude towards him is an attitude towards a soul. I am not of
the opinion that he has a soul." (Wittgenstein, Philosophical Investigations)
           

Wittgenstein entendeu que a palavra teológica "alma" transmite todos os mesmos problemas que pretensões palavras empíricas como "estímulo", "emoções”,"sentimentos", etc. Isso não significa que os cientistas não tem insights sobre fetos que faltaria para uma pessoa normal sem nenhum conhecimento de anatomia e neurologia. Mas isso é uma vantagem que eles têm, da mesma forma que alguém que sabe japonês tem melhor visão para negociar com japoneses do que alguém que não. Os cientistas estão apenas usando outro idioma (o idioma do estímulo e conexões causais) para traduzir o que já temos. Essa linguagem pode dar alguns insights. Mas pode prevenir outros. O ponto é: não há nenhuma razão para pensar que os cientistas descobriram a língua original real dos sentimentos, traduzindo-a para o "estímulo". Para ser honesto, essa tradução é, na verdade, um empobrecimento do conceito de "feeling", "conhecimento cognitivo", etc. Alguém lendo Shakespeare tem, com certeza, mais entendimento do que um neurocientista sobre sentimentos e emoções.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

O Impasse entre a técnica e a energia na comunicação entre os corpos (na dança de salão social)

Apesar de ser um assunto com poder de sedimentar uma atmosfera de tensão, a dança de salão moderna, quanto mais amadurece sua expressão artística independente, já não pode esconder suas controvérsias. Um dos seus traços mais fortes é a capacidade de empregar modelos de comunicação inéditos, um diálogo entre os corpos, e explorá-lo até os limites de uma criação ilimitada. Por isso mesmo surge, como uma questão inevitável, o que eu chamarei didaticamente e sem muita seriedade de “primeiro impasse da dança de salão”. O impasse entre a técnica e energia da comunicação (entre os corpos). Aqueles que decidem enfatizar apenas a técnica tendem a agir como os falantes de uma só língua, acreditando que nenhuma troca é possível fora do paradigma de um conjunto fixo de regras. Os que dançam apenas com sua energia pretendem que a comunicação avance sem sintaxe ou estrutura, pura intuição. A energia sem técnica produz uma dança cega, a técnica sem energia produz uma dança dogmática. No discurso dos professores, o tecnicismo se apresenta como uma forma de intolerância a linguagens diferentes, produzindo alunos sem juízo próprio, que precisam confiar na correlação simpliciter entre estímulo e instrução, semelhantes aos ratos condicionados pelos choques de Skinner, mas com um agravante: ratos que acreditam na linguagem de seu professor como se ela fosse a linguagem de deus, e que a reproduzem nos bailes e nas aulas em uma campanha pedagógica para policiar cada pequeno detalhe dos corpos dos demais que não correspondem ao “gesto absoluto” como lhes foi ensinado pelo mestre inquestionável. A maior parte dos tecnicistas só dançam com os alunos de uma mesma escola, e os tecnicistas mais fanáticos tem apenas um parceiro, cuja voz corporal ele/a entende perfeitamente graças ao hábito e repetição, e agora julga qualquer desvio a esse padrão como um erro intolerável. Os professores mais inclinados a um ceticismo técnico, no entanto, tendem a incentivar a combustão de alunos incapazes de padronizar formas de comunicação rápidas, efetivas e práticas, promovendo uma dança onde o único remédio para o erro é a tolerância. Por outro lado, a sensibilidade à energia do outro corpo é a única forma de oferecer pistas para correção de técnicas que se provaram pouco práticas, e é possível dizer que a dança em par não começa pela técnica, mas que as diferentes técnicas surgem depois da experimentação entre as energias em troca durante a dança. Se isso é verdade, não existe ainda melhor ethos para a comunicação entre os corpos do que a generosidade ou pressuposição de que a outra voz tem tanto valor quanto a sua, a tolerância a diferentes linguagens, o ceticismo racional ou capacidade de dar o benefício da dúvida ao outro lado, o senso de humor ou capacidade de debochar da devoção supersticiosa a uma interpretação escolar do gesto, ignorar o fanatismo técnico, em suma, maneiras de aperfeiçoar a sensibilidade ao outro corpo. E do outro lado, esse ethos, que é posto em prática nos bailes, onde funciona o mercado onde são comercializadas todas as linguagens técnicas, não perde nada por ser abafado  nas escolas, onde se deve conceder a autoridade ao professor durante aquela hora inteira sem questões. Uma coordenação combinada entre técnica e energia só traz benefícios, e aprender a navegar no meio dessas tendências é importante para preservar a auto-estima e a persistência durante os (muitos) anos de aprendizado.