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sexta-feira, 30 de março de 2012

Um Araújo do deserto


            É um patrimônio um pouco vão de nosso orgulho – e também um pouco infantil e iludido, confesso – ter durante essa travessia universitária cultivado entre os amigos alguns entre os quais é fácil ver um segundo brilho, mais interior e mascarado, mais intenso e confinado, um brilho que anuncia ambições menos ordinárias e projetos despojados de vulgaridade. Adivinha-se em seu ventre o feto de muitos futuros. Conto Diogo Araújo entre um desses motivos de um pueril peito estufado. Não me confundam com um amigo antigo: não tenho esse interesse distorcendo o elogio. Quando o conheci, tinha apenas uma ideia vaga do valor de sua energia, do tom que predomina em seus segmentos de voz, de verbo, logos. Hoje só posso invocar sua presença mediante a imagem de um solitário beduíno colhendo inspirações evanescentes através das enxadadas de seus passos no deserto. Desenterrando histórias dos grãos de datas ancestrais. E seu avanço entre o assédio de monstros de areia me assombra com a estatura de uma tarefa. Não sou um amigo autorizado pelas camadas do tempo, mas desculpo minha vaidade de querer ser, entre ele e eles, um alvo da mesma regra, abarcado pela mesma universalidade restrita, seleta, terráquea, embora apontada para a lua de sua plataforma espacial. É uma ideia que incendeia as turbinas. Um pedaço ainda precoce de projetos abstratos tomando a forma de cultura. As poesias de Araújo mostram, mais do que poderia eu propagandear, o talento da visão, da dilatação e manipulação das bolhas intuitivas, a suavidade na composição das imagens, a capacidade de ser um hospedeiro das formas. Quem puder conferir, não se faça de intimidado: http://aspipas.blogspot.com.br/search/label/Cantos%20do%20Matita%20Per%C3%AA. Minha admiração é um investimento. Não preciso de pretexto para bajular quem o merece, mas também não faço nada de graça: um futuro próximo guarda um sucesso que me enaltece como um dos primeiros anunciadores. 

domingo, 18 de março de 2012

Vento Sul

Quando os galhos dos coqueiros são arrastados no ar em direção ao sul, é que o vento norte comanda o leme das nuvens. Da minha janela eu sei então que a praia Brava não dá a luz senão a lombadas bastardas, fecundada pela fúria do “maral” madrasto. Ao mesmo tempo o canto esquerdo do Santinho prospera em uma trégua de “terral”. Se o sopro caprichoso resolver encabeçar para nordeste não sobra praia do norte para surfar, porque o leste daí é apenas uma questão de tempo, e é um castigo: ao vir com força, saqueia até um pouco da beleza do mar, arruinando o seu penteado de chapinha.
            Se assim encrespado continua a sugerir paixões, é apenas porque é o mar, e na minha ilha linda não é o prejuízo de alguns cachos que vai empobrecer a imensa franja ondulada do oceano.
            Rapunzel vaidosa, dificilmente erra na cor. Está tingido de um azul e verde regular. Embora não seja particularmente caribenho, vence com grande margem as águas injetadas de barro de rio do norte e nordeste do país. Quando dorme, é como uma criança sem pesadelos. Mas eventualmente acorda de um sono pesado com uma tonelada de desejos reprimidos, remoendo as inigualáveis profundidades, e projetando sobre a superfície sua carga espumante de problemas não resolvidos. A Joaquina é então a melhor aposta. Com muita sorte sua estrutura oceanográfica permite abrigar uma estória havaiana no cenário florianopolitano. Quem se lembra dos raros swells da Joaca, quem entrou no mar de jet ski e quem se arriscou na braçada, tem mais a contar do que eu, que assisti a famosa lestada com vento oeste de 2005 das pedras.
            E quando falamos de tantos mistérios e elementos, não podemos deixar de falar do vento sul, cuja trajetória esconde conspirações em gestação nas proximidades da solidão polar. Quem vai saber o que se discute por lá? Os locais o tratam familiarmente, já sabem que três dias serão ceifados quando ele chega, trazendo um frio de inverno ou de verão, espalhando sementes de um humor novo – pois os ventos trazem humores. Zunindo como um torpedo, faz as águas do Campeche desfalecerem como paçocas desmaiadas no polegar, esfarelando a água em pó, forçando a greve de surfistas do norte e do sul. Joaquina, Mole, ou Praia Brava e Matadeiro, são boicotadas em grupo. Somente algum segredo entre pedras e lajes – que não denunciarei – resiste ao despovoamento. Toda a comunidade espera, espera, subordinada à agenda de lufadas do imprevisível. Já se sabe que o tempo é dele, três dias ceifados.
            Quando a noite chega, ele uiva, facultando imagens poéticas pelas frestas das persianas. Uiva como um cão apaixonado acusando o próprio sofrimento. Os primeiros fantasmas da minha infância foram talvez provocados pelo canto de mágoas desse hóspede indisciplinado, que me fazia imaginar por trás da janela do quarto a presença de um fôlego vivo, o hálito de alguém forçando sua história pelo filtro de cada estreito hiato das portas e janelas. É o vento castigando as gerações com sua vaidade de experiente. E minha imaginação, assim, deve muito a ele. Sou-lhe grato, sobretudo, pelos exageros inflacionando minha concepção de realidade e sem os quais eu talvez fosse tão simplório quanto um cientista. 
               Essa ilha que é território de seu domínio, há muitos e muitos séculos, foi esculpida pelas mesmas carícias mágicas que deram paternidade às bruxas. Há nessa ilha açoriana, como em nenhuma outra, sulcos profundos e rugas marcantes, cavidades que não esquecem. O vento sul soprou incansavelmente sobre a sua alma erodida. 

domingo, 11 de março de 2012

A música e os músicos segundo Tolstói

            Já faz um tempo que venho caçando ocasião para discutir a opinião de Tolstói sobre a música, usando como referência o primeiro presto da sonata a Kreutser de Bethoven no conto com o mesmo nome. Injustiça, talvez, atribuir ao autor a opinião de um de seus personagens. Afinal, é a opinião de um personagem suspeito. Para quem não leu e não se importa de ouvir parte do enredo, falamos de um marido enganado, e enganado por um músico. É um personagem com motivos para odiar a influência da música sobre a sensibilidade do animal que é o homem, e sobretudo do animal que se torna a mulher. A má fama dos músicos pelas casas de família do século XIX até que não devia ser incomum, porque não só por gasto de tempo esta deixou de difamá-lo: essa reputação do sedutor amigo da noite e finório, erudito dos segredos da persuasão, sábio de botequim e malandro. Tolstói descreve o inimigo dos lares personificado em seu conto como, além de alguém com alta afinação e possuidor daquilo a que chamam “tom”, um homem “com seus olhos de amêndoa, úmidos, lábios vermelhos, sorridentes, bigodinho com fixador, penteado da última moda, (...), com um traseiro particularmente desenvolvido, parecendo de mulher, como, segundo dizem, existem entre os hotentotes. Estes, segundo se diz, também são musicais”. Mas essa imagem heterogênea e rica de miscigenações linguísticas é uma distração. O personagem é uniforme, reflete o modo como o autor compreende mais intimamente a imagem da música, como esta se moveria nos salões se tivesse pés, e como se pentearia se tivesse cabelos e bigodes lisos. É a música a inimiga do personagem ciumento. É a música que empina aos seus intérpretes o traseiro, o pronunciando como um acento melodioso de consequências desastrosas para a fidelidade dos casais. Mas por que mais um russo traído deveria ser o mensageiro de um ódio à música que vem mais vocal que o de Platão? O filósofo convocou a sua perseguição como um assunto da república, pois hipnotizar pessoas indefesas e dominar a sua vontade é um desserviço à razão. A música inaugura um fluxo de tonalidades que infringe a razão, tira o julgamento da sensibilidade, prostrando o ouvindo sob o julgo de sensações que não são dele, que não têm presença em sua alma, que vêm de fora, como o honroso fantasma de invocações primais. Não é por acaso que as orações e preces sejam originalmente musicais. Pela música o ouvido, as mãos, os olhos, a boca e os pés, aprendem a imitar, e pela imitação sistemática chega à simulação de estados: se convence, se contradiz, se nega, afirma, acredita, em suma, pensa e sente, e sem o ter feito de fato, mas apenas por ter imitado, seguindo a cadeia do fluxo musical, como faria o corpo enquanto dança.  Basta uma digna distribuição de acentos e ênfases, declives e aclives sonoros, para criar o simulacro de uma verdade, para dispor da mesma força de um argumento, sem que de fato o conteúdo do argumento seja avaliado – é apenas a sua superfície tônica que seduz, arrasta, inclina. E por isso diz Tolstói: “a música obriga-me a esquecer-me de mim mesmo, da minha verdadeira condição, ela me transporta a outra, que não é minha: sobre o influxo da música, tenho a impressão de sentir o que, de fato, não sinto, de compreender o que, a bem dizer, não compreendo, de poder o que, na verdade, não posso”. Há o drama dos românticos, sentimentais e moralistas nessa abordagem. E, no entanto, ela poderia ser a mais correta e justa. A mesma compreensão, sem o drama do traído nem a severidade do filósofo, captura a particularidade da música em sua expressão mais elementar: sua potencialidade para incentivar imagens, invocar espíritos, ampliar a visão, em uma palavra, dilatar os poros intuitivos. Assim se corrobora o dito de que é a “janela da alma”. Porém, de fato, ela apela a nossa dimensão animal mais do que a qualquer outra, embora toque essa animalidade inspirada que pode desaguar em uma loucura inteligente, e que será sempre um empecilho à fidelidade das esposas, pois deixa a verdade e o certo nas mãos do que decide o alegre violeiro de traseiro loquaz – embora este não decida nada por si mesmo, sendo não mais que um serviçal dos tons.