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domingo, 21 de agosto de 2011

Sobre a suposta 'Treta' entre o homem religioso e o científico



Esse post nada mais é que a exposição de uma curta coleção de oportunas citações. Oportunas com relação a quê? Como resposta a uma nova campanha de inteligência estreita que vai singelamente, com um ar de modéstia e indiferença, reivindicando um arrogante valor de triunfo. Comportam-se com a condescendência de quem ensina crianças, e, no entanto, ninguém sabe por que estão sempre tão incomodados e cheios de energia impaciente para responder ao que eles consideram tão inferior. São compostos de filósofos, cientistas e acadêmicos de todas as espécies. Sua origem é pródiga, porque nascem de um pressuposto de linguagem, um modo específico de falar, pensar, dialogar. E não me atrevo a indicar-lhes um nome abrangente, porque assim correria o risco de errar por generalização. Mas sei e não omito que são pacientes de uma das certezas do nosso tempo, que já dura e amadurece em versões cada vez mais confiantes e temerárias desde o século XIX. Estão em todas as partes, são desde criadores de stand up comedy até cientistas renomados, e, ainda com facilidade, se espalham pelos degraus menos prestigiados do grosso populacional. O característico no seu comportamento é um sentimento coletivo de inteligência que eles compartilham, dividem entre si, aquela complacência de quem sabe alguma coisa a mais. A irreverência é uma das suas armas, e eventualmente chegam a explorar esse talento tão bem que encantam. Para fazer-lhes justiça é preciso dizer que são engraçados e perspicazes, o que não muda o fato de assim vingarem-se do fato de serem muito grosseiros para abordar temas e problemas que ultrapassam os seus limites. Mas “de que serve hábeis sabichões e inábeis e honestos empíricos e mecânicos forçarem uma aproximação, como hoje é tão comum, tentando penetrar com ambição plebéia essa ‘corte das cortes’?” (Nietzche, 1998, p.121). Como lhes falta toda sutileza, adoram chutar cachorro morto, pois ali eles brilham: ridicularizam as pessoas religiosas, que são alvos fáceis e não podem se defender senão com sua fé ou com argumentos muito toscos. Ora, o que eles definitivamente não entendem na natureza do homem religioso é “quanta sabedoria existe no fato dos homens serem superficiais”. O que leva o homem a adotar uma interpretação religiosa da existência é justamente o “temor daquele instinto que pressente que não é bom ter a verdade cedo demais, antes que o homem se tenha tornado forte, duro e artista o bastante” (Nietzsche, p. 62). É forçoso reconhecer então a que instinto esse homem sarcástico e risonho obedece. Isso é simples, ele mesmo não esconde: é o instinto à verdade. É nesse envolvimento com a verdade que se situa a sua sensação de superioridade. É, porém, nessa mesma sensação que reside a sua falta de elevação, que se denuncia a sua guerra ao sentimento artístico, à máscara, ao flerte da cultura com o mundo natural. Nas suas econômicas leis usadas para ligar todas as cadeias de fatos em uma explicação global esconde-se a sua própria maneira de abstinência, a sua não-religiosa forma de limpar o mundo de sua beleza e abundância: “A esses pesquisadores compete tornar visível, apreensível, pensável, manuseável, (...), abreviar tudo o que é longo” (Nietzsche, 1998, p.118). A obsessão com a verdade é, antes, “a fé em uma valor metafísico, um valor em si da verdade”. (Nietzsche, Genealogia da Moral, 2007, p.139). É com a fidelidade a esse sentimento, que trás consigo o orgulho infantil de pertencer ao grupo da humanidade que usa a lógica e a razão, que evolucionistas hoje mostram as armas contra os cristãos, em uma vergonhosa luta que se assemelha a um jogo de futebol de crianças de doze anos, onde todas correm ao mesmo tempo atrás da bola e deixam o campo mal distribuído e a povoação dos pontos essenciais desmarcada. Confiam na aleatoriedade das direções da bola para marcar um gol por acaso; e não raro não sabem distinguir quem é do próprio time e quem é do outro. Pouco escandaliza que marquem gols-contra com frequência. Essa disputa recicla uma guerra antiga em que nem todos foram ainda vingados e é de supor que existe muita amargura, repressão, desejo de desforra escondido aqui. Afinal, cientistas foram queimados, amordaçados, calados. Se nos atermos a esse desejo de vingança e a essa animosidade infindável entre o homem da batina e o curioso experimental, portanto, não vamos chegar a lugar algum. Desviarei a atenção para uma única passagem veemente e espirituosa de Tolstoi, onde este arrebatou toda essa enferrujada discussão, em que não se sabe bem o que se disputa, e a vitória não tem valor nem prêmio a não ser uma satisfação narcisista e uma vingança mesquinha. Porque, afinal, além desses despojos emocionais, o que ganha um biólogo ao refutar um religioso? Será mesmo que o último é uma ameaça ao primeiro? Será que eles, de fato, disputam o direito da mesma coisa? De forma alguma. Aqui não temos senão uma confusão de esferas de investigação. Citemos o russo: “pois o fato de que, do ponto de vista da observação, a razão e a vontade não passam de secreções do cérebro, e o homem, seguindo a mesma regra, pode proceder de animais inferiores num remoto período de tempo desconhecido, não faz mais que explicar, por um lado novo, uma verdade não disputada a milhares de anos por todas as religiões e todas as teorias filosóficas... Que os homens descendam do macaco num remoto período desconhecido de tempo é tão compreensível como o fato de terem sido formados de barro num período determinado (no primeiro caso, x é o tempo; no segundo, o processo).” (Tolstoi, Guerra e Paz, 2007, p.1496 – [essa numeração parece, mas não é uma data!]). A mágica dessa citação é mostrar como é supérflua a disputa que hoje se faz em torno dessas infames polêmicas. Tão supérflua que a vitória de um lado não dá recompensa nenhuma, nem prova nada contra o outro. A desmistificação da crença nessa diferença entre ciência e religião precisa ser encorajada porque, apesar da aparente facilidade da demonstração de sua inutilidade, ambas ainda se combatem hoje acirrada e inflamadamente. Já passou da hora de ver que a ciência não é antagonista do ideal religioso, e nem o ideal religioso antipatiza com o ideal científico. Ambos convergem com relação ao destino perseguido, a saber, o ideal ascético, de redução, negação do que é grande e abundante; abreviação e economia de explicações. A relação da ciência com “o ideal ascético [da religião] não é antagonística em si, ela antes representa, no essencial, a força propulsora na configuração interna deste.” (Nietzsche, 2007, p. 141). De fato, não nos enganemos mais sobre a dependência nítida que a ciência tem de formas mitológicas de orientar a formalização de sua verdade, maneiras de enriquecer os seus pressupostos, sem os quais ela restaria sempre exposta e frágil, à beira da falência de seu crédito hipotético. Toda forma de metafísica, popular ou acadêmica, é uma maneira de antecipar a verdade com um molde subjacente, fortalecendo e adaptando o homem e a cultura para o seu acolhimento.  “Não existe, a rigor, uma ciência ‘sem pressupostos’, o pensamento de uma tal ciência é impensável: deve haver antes uma filosofia, uma ‘fé’, para que a ciência extraia dela uma direção, um sentido, um limite, um método, um direito à existência.” (Nieztche, 2007, p. 139).

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