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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Montaigne e suas histórias

O autor dos Ensaios nunca pára de me surpreender com o volume inesgotável de contos, sua inclinação para testemunha, registrando causos que vão desde relatos populares até  detalhes de batalhas épicas. Comungando da intimidade de provincianos de feira como da de reis antigos e generais ilustres, Montaigne é o verdadeiro contador de estórias, o pescador do universo filosófico. Com efeito, seria preciso muito ouvido, muito tempo dispensado ao mundo, para colecionar tanto assunto e matéria de sucessos dispersos e desconectados. Talvez não bastassem menos que cinco ouvidos, tímpanos esponjosos para a voz de mais de um mundo, uma vocação extradimensional. E não era o autor o dono exclusivo de uma sensibilidade caótica, como ele mesmo reconhece ao se identificar com um escritor de rapsódias? Mas sobretudo, que fez delas o seu talento, ajudando a parir um gênero literário, uma nova maneira de tabalhar nessa oficina de recortes, cola, costuras de letras, imagens e formas. Sua mais extraordinária ferramenta de espírito é justamente essa receptividade para o fragmentário, sua fecundidade de perspectiva e ubiquidade regional. Quem tem ouvido para tantas vozes não pode jamais ser um provinciano.
E é por isso que muita gente há de ficar cismada, pasma, de ler as pitorescas coisas que esse aristocrata do século XVI tinha para contar. Seu exemplo deixaria sempre um pouco constrangidos esses historiadores das ideias que nos garantem que até o conteúdo da imaginação tem data de vencimento e de nascimento. O que diria, pois, do que tinha Montaigne a dizer de suas formigas? Está documentado em um de seus ensaios que, observando os dois formigueiros sedidados em seu terreno, acompanhou o cadáver de uma formiga do formigueiro A ser carregada ao formigueiro B – o contador não diz nada sobre a morte da conduzida. Em seguida jura ter observado uma comissão de membros do A indo negociar o cadáver, levando folhas e gravetos como um gênero rudimentar de propina para o resgate. Tudo isso é contado sem a menor sombra de absurdo. De modo que fico a imaginar que espécie de sensibilidade e inteligência era essa. Sua interpretação meio louca dos fatos passados no microcosmos de seu quintal deveria ser o indício de uma mente aberta até demais, até o ponto de deixar os pressupostos rigorosos da ciência parecendo preconceituosos e intolerantes.
             Em outro momento soletra a bonita estória de um leão e um desertor, cuja veracidade ele assevera como um caso comum e difundido na tradição popular da antiga Roma. Durante uma das campanhas de César, um soldado mais cheio de espírito artístico que gana de guerra abdicou de sua farda e cargo, fugindo pelo deserto. Seu destino, porém, não foi favorável e uma tempestade o forçou a improvisar pouso em uma providencial caverna onde, despertado no meio da noite, assombrado pela sombra difusa de uma criatura movimentando-se nas trevas, terminou descobrindo em sua companhia um leão enorme . O acuado cavalheiro não tinha para onde fugir, e com surpresa verificou que o felino não o assediava como um prato de boquinha da madrugada. Sua feroz catadura dissolveu-se em uma misteriosa fisionomia de súplica. Aproximando-se como um gato serpenteando a calda amistosa, deu a ele a pata dianteira como uma dama esperando a cortesia de uma etiqueta. Hesitando um pouco, porém sem alternativa, avaliou as condições muito avariadas da pata do leão, vítima de um espinho que havia se encravado com a intensidade trágica de um prego da cruz. O solidário ex-soldado de temperamento sensível cuidou das chagas do leão e, dizem, viveu com ele pelos próximos anos, compartilhando comida e bebida, até que foi capturado pelos policiais do exército que patrulha os rastros dos desertores. De volta a Roma como um cativo, sua sentença era o coliseu. Passou um ano preso esperando a prodigiosa lista de espera para uma audiência pública com o dedo polegar de César. Quando finalmente chegara sua vez de ser comido pelos leões, a platéia histérica do grande circo de horrores romano com surpresa observou que a investida do animal contra o cativo indefeso desembalou inexplicavelmente a apenas um passo de distância de seu almoço. Frustrados em sua ambição de sangue, uivaram contra a clemência audaciosa do irracional, protestando aquela abstinência repentina, aquele arbítrio disciplinado da fome animal. Quem perdoa é só César! Os que morrem na arena apenas o saúdam - aqui acabam seus direitos. Maior foi a surpresa quando homem e animal entraram em uma estranha carreira de abraços e afagos, ronronando um e chorando o outro com a energia sensível de velhos conhecidos que se haviam dado por mortos. A emoção da audiência não podia ter sido maior em um desfecho de Eurípedes, e o grande polegar do imperador se pronunciou virado para o céu, expressando grande entusiasmo e correspondendo ao desejo do povo.  Montaigne conta, com seu habitual tom de normalidade e indiferença, que leão e homem foram libertados e viveram o resto de seus dias de mortais na Roma como dois amigos inseparáveis, verdadeiros retratos de uma fábula impossível, muito estimados e celebrados pela vizinhança como personagens autênticos de um final feliz.

Um comentário:

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