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terça-feira, 3 de abril de 2012

A convalescência do Samba - crônica sobre a saúde de Ismael Silva

         Ali por volta de 1924, em algum hospital instalado na cidade do Rio de Janeiro ou Niterói, estrebuchava de dores, diz-se que à beira da morte, um humilde sambista. Que fosse sambista a essa época é coisa para confundi-lo com o próprio início do samba. Falamos de uma época inacessível ao nosso intelecto, quando uma diversidade de ritmos africanos migrados da Bahia lutava para naturalizar uma identidade carioca, e que mal sabiam se passariam do próximo ano, quanto mais que teriam um nome tão ilustre e uma dinastia de rebentos tão duradoura. 
                O humilde instalado em seu leito mortuário provavelmente não desconfiava de seu papel no desenrolar dessa história. Como poderia? Mestre Ismael Silva. Por pouco então a natureza não ceifara esse tesouro de uma cultura em gestação. Nossa sorte consiste em que, vez ou outra, coincidem os interesses dessas duas dimensões, e a doença desiste sem prejuízo da ideia que ela apagaria dos registros. Viveu muito, graças a deus. Gravou até vídeo. Hoje em dia posso ver vídeos no youtube com o mestre em pleno embalo de locomotiva, fôlego cheio de energia, mostrando com os braços a origem simbólica de suas melodias. É possível desenterrar de seus gestos, o sotaque do seu corpo, a raiz dos tons que o moço ventilara ao mundo. E que conjunção mágica de acentos na sua assinatura!
                Lembro-me de escutar “Se você jurar...” a primeira vez em uma festa de pandeiro e tamborim da Lagoa da Conceição, e no furdunço de vozes e doces euforias, distinguir muito mal a letra. A força da melodia, portanto, me tinha indefeso. A voz e a língua, o português miscigenado do país com nome de árvore, somava-se ao acento da melodia para desfalecer minha alma naquele misto de alegria e tristeza indefinível dissolvido numa solução harmônica que caracteriza uma das mais fortes contribuições do samba para o estilo. E Ismael o tinha como ninguém. Vinícius de Morais dissera que “a grande força do samba [de Ismael] é a melodia”. De fato, o é. Difícil imaginar maiores evoluções das escalas enfáticas em uma música tão suave e simples.  É como se um carro freasse e fizesse curvas de surpresa. Por isso que o seu samba é seguido pelo próprio estômago, que não menos que o pé calcula tonturas e enjoos no interior da alma. Mas paramos de falar da substância do samba, que é inefável, “nem se atreva a me dizer”.
                Diz a anedota que o moço doente de 1924 foi interrompido em sua cama de hospital pela notícia de que um tal Alcebíades Barcelos o queria ver. Aquele que viria a ser posteriormente autor de “Escola de Malandro” – junto com Noel – provavelmente seguiu algum escrúpulo de deixar entrar alguém na sua paz. Visitas de hospital, o malandro sabe, só compensa a aporrinhação se for para cobrar dívida. Mas se a morte o esperava tão de perto, que mal havia em dar uma última chance aos seus credores? Ismael o deixou falar, e recebeu a notícia de que Francisco Alves queria comprar a sua música “Não me faz carinhos...” por cem mil réis. Não faço ideia de como converter esse número para um valor atual. Mas certamente era dinheiro para motivar um doente malandro, um incentivo moral que dava à cultura uma oportunidade nova contra as garras da natureza severa. Porque se diz que depois disso o mestre regenerou, como jurou em sua música (desde que ela jurasse lhe ter amor). Virou a página do hospital para a rua, vendeu sem ciúmes a cobiçada melodia e convalesceu com honras.
                A anedota continua, contando que Ismael, bom novamente, na sua famosa escola de samba do Estácio – (o mestre se nomeia ironicamente o inventor das escolas de samba) – foi surpreendido com uma turma de pagode por um carro suspeito espreitando a esquina da música como se procurasse por alguém. Polícia? Até quem não devia nada ficou tenso, paralisado como um lagarto esperando a águia passar. Estacionado, o carro deu saída ao próprio Francisco Alves. Este foi cercado pela turma atônita e sem cerimônia de celebridade agarrou o violão, dando ao niteroiense e o seu bando uma de suas noites mais inesquecíveis, de samba vivo, pujante, anunciador, que foi até a emergência da alvorada. Ao fim, aproveitando o encantamento, o visitante ofereceu a Ismael seu contrato. A parceria todos nós conhecemos. Silva, fiel, teve a energia de não esquecer Newton Bastos na assinatura do novo projeto. E atrás dessa alvorada inesquecível, outras tantas se seguiram. Nossos ouvidos gemem de saúde graças a esse episódio de convalescência.  

2 comentários:

  1. Para colocar um pouco de água na sua conversa ,há pesquisas cientificas como ''teses acadêmicas ''..em que os pesquisadores juram que o samba nasceu em São Paulo no vale do tietê, precisamente em em SALTO de PIRAPORA, já li sobre o assunto ,e não sou ùnico ..e também já ví num show do Martinho da vila, ele mesmo dar esse depoimento dizia ele.'' nós os sambistas não temos certeza de uma identidade do samba quanto a sua regionalidade'' e foi enfático quanto ao local de oriegem ser duvidoso....para mim isso é tudo... .. sem o samba não posso ficar...que venha de qualquer lugar...
    tony-dartes

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  2. Bem interessante tony. Quero ler também sobre isso, vou pesquisar. Gosto das estórias, e um pouco de incerteza é sempre bom... Abraço.

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