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domingo, 4 de outubro de 2015

Sementes de intuição

A janela aberta do quarto deixava entrar uma ideia ou outra, ressabiadas e tímidas como as brisas do mormaço. O painel que se dilatava pela veneziana aberta com sorte pintava a passagem de uma candidatura ao belo, embora em sua fugitiva natureza e independência. Não raro a atenção se dirigia a um prédio, ou a uma rua do bairro comercial, onde pessoas encenavam todos os dias mais um capítulo da pressa humana, o seu lépido e ocioso passo de lugar qualquer para lugar nenhum. Mas iam e vinham como em dança de ratos no laboratório, sugerindo ao pesquisador apenas simulacros de experiências controladas, nada de espontâneo e livre, nem de levemente despeitado e delinquente. Nenhuma fonte de inspiração.

            Diante do tribunal da vida, que é curta, é um luxo indesculpável recusar a ocasião de uma viagem que cai do céu como uma mensagem gratuita da providência. Ignorar os seus favores chega a ser uma arrogância. O que piora a reputação da ousadia é que ela é uma perfeita infração da política dos modestos. Uma espécie de superstição: pois esta é também um luxo, um capricho de quem acha que pode dispensar a inteligência. Quando a janela do quarto é a única ventilação da alma, nunca é demais advertir: algo está errado. Nada compara o efeito de uma viagem para difundir sementes no jardim da experiência.
Tércio chegou, entrou e sentou-se, esperando alguém que não lhe fosse estranho. Apenas por acaso a sua ruim pontualidade não fora mais atrasada que a dos demais, que ousaram não entrar senão antes que a hora exata os obrigasse. Haviam se acercado aos poucos e se deixado à porta. Porém havia pretextos para estar dentro, mais do que para estar fora: o frio do exterior carcomia a malha da pele sem nem aquela justa piedade das traças, que dão aos livros pelo menos tempo suficiente para se preservarem nas memórias de um leitor.
            Mais fácil era erodir-se em paulatino esquecimento pela exposição àquela extinção glacial.
            Mas o povo ficava lá fora falando, falando, e lá dentro sozinho parecia até mais inverno. Por um minuto, Tércio ponderou se tinha feito bem em lançar mão das malas e colocar-se à disposição de uma viagem desconhecida mesmo depois de seu único contato advertir-lhe a ausência. Não demorou, porém, a que chegasse um rosto familiar. Cassiano era seu amigo quase tanto quanto Patrick, ou seja, pouco, mas a sua presença o abrigava da pior solidão: a do estranho em lugar de familiares. Já se pode agora deixar para trás esse primeiro minuto de tensão dentro do ônibus. De agora em diante tinha casa: o amigo servir-lhe-ia como as linhas de um papel para retificar sua caligrafia e torná-lo legível a todos os outros. Era sua ponte de contato e seu ponto de apoio. Com esse pequeno traço de ansiedade não precisava mais se preocupar.  

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