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domingo, 18 de março de 2012

Vento Sul

Quando os galhos dos coqueiros são arrastados no ar em direção ao sul, é que o vento norte comanda o leme das nuvens. Da minha janela eu sei então que a praia Brava não dá a luz senão a lombadas bastardas, fecundada pela fúria do “maral” madrasto. Ao mesmo tempo o canto esquerdo do Santinho prospera em uma trégua de “terral”. Se o sopro caprichoso resolver encabeçar para nordeste não sobra praia do norte para surfar, porque o leste daí é apenas uma questão de tempo, e é um castigo: ao vir com força, saqueia até um pouco da beleza do mar, arruinando o seu penteado de chapinha.
            Se assim encrespado continua a sugerir paixões, é apenas porque é o mar, e na minha ilha linda não é o prejuízo de alguns cachos que vai empobrecer a imensa franja ondulada do oceano.
            Rapunzel vaidosa, dificilmente erra na cor. Está tingido de um azul e verde regular. Embora não seja particularmente caribenho, vence com grande margem as águas injetadas de barro de rio do norte e nordeste do país. Quando dorme, é como uma criança sem pesadelos. Mas eventualmente acorda de um sono pesado com uma tonelada de desejos reprimidos, remoendo as inigualáveis profundidades, e projetando sobre a superfície sua carga espumante de problemas não resolvidos. A Joaquina é então a melhor aposta. Com muita sorte sua estrutura oceanográfica permite abrigar uma estória havaiana no cenário florianopolitano. Quem se lembra dos raros swells da Joaca, quem entrou no mar de jet ski e quem se arriscou na braçada, tem mais a contar do que eu, que assisti a famosa lestada com vento oeste de 2005 das pedras.
            E quando falamos de tantos mistérios e elementos, não podemos deixar de falar do vento sul, cuja trajetória esconde conspirações em gestação nas proximidades da solidão polar. Quem vai saber o que se discute por lá? Os locais o tratam familiarmente, já sabem que três dias serão ceifados quando ele chega, trazendo um frio de inverno ou de verão, espalhando sementes de um humor novo – pois os ventos trazem humores. Zunindo como um torpedo, faz as águas do Campeche desfalecerem como paçocas desmaiadas no polegar, esfarelando a água em pó, forçando a greve de surfistas do norte e do sul. Joaquina, Mole, ou Praia Brava e Matadeiro, são boicotadas em grupo. Somente algum segredo entre pedras e lajes – que não denunciarei – resiste ao despovoamento. Toda a comunidade espera, espera, subordinada à agenda de lufadas do imprevisível. Já se sabe que o tempo é dele, três dias ceifados.
            Quando a noite chega, ele uiva, facultando imagens poéticas pelas frestas das persianas. Uiva como um cão apaixonado acusando o próprio sofrimento. Os primeiros fantasmas da minha infância foram talvez provocados pelo canto de mágoas desse hóspede indisciplinado, que me fazia imaginar por trás da janela do quarto a presença de um fôlego vivo, o hálito de alguém forçando sua história pelo filtro de cada estreito hiato das portas e janelas. É o vento castigando as gerações com sua vaidade de experiente. E minha imaginação, assim, deve muito a ele. Sou-lhe grato, sobretudo, pelos exageros inflacionando minha concepção de realidade e sem os quais eu talvez fosse tão simplório quanto um cientista. 
               Essa ilha que é território de seu domínio, há muitos e muitos séculos, foi esculpida pelas mesmas carícias mágicas que deram paternidade às bruxas. Há nessa ilha açoriana, como em nenhuma outra, sulcos profundos e rugas marcantes, cavidades que não esquecem. O vento sul soprou incansavelmente sobre a sua alma erodida. 

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