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domingo, 11 de março de 2012

A música e os músicos segundo Tolstói

            Já faz um tempo que venho caçando ocasião para discutir a opinião de Tolstói sobre a música, usando como referência o primeiro presto da sonata a Kreutser de Bethoven no conto com o mesmo nome. Injustiça, talvez, atribuir ao autor a opinião de um de seus personagens. Afinal, é a opinião de um personagem suspeito. Para quem não leu e não se importa de ouvir parte do enredo, falamos de um marido enganado, e enganado por um músico. É um personagem com motivos para odiar a influência da música sobre a sensibilidade do animal que é o homem, e sobretudo do animal que se torna a mulher. A má fama dos músicos pelas casas de família do século XIX até que não devia ser incomum, porque não só por gasto de tempo esta deixou de difamá-lo: essa reputação do sedutor amigo da noite e finório, erudito dos segredos da persuasão, sábio de botequim e malandro. Tolstói descreve o inimigo dos lares personificado em seu conto como, além de alguém com alta afinação e possuidor daquilo a que chamam “tom”, um homem “com seus olhos de amêndoa, úmidos, lábios vermelhos, sorridentes, bigodinho com fixador, penteado da última moda, (...), com um traseiro particularmente desenvolvido, parecendo de mulher, como, segundo dizem, existem entre os hotentotes. Estes, segundo se diz, também são musicais”. Mas essa imagem heterogênea e rica de miscigenações linguísticas é uma distração. O personagem é uniforme, reflete o modo como o autor compreende mais intimamente a imagem da música, como esta se moveria nos salões se tivesse pés, e como se pentearia se tivesse cabelos e bigodes lisos. É a música a inimiga do personagem ciumento. É a música que empina aos seus intérpretes o traseiro, o pronunciando como um acento melodioso de consequências desastrosas para a fidelidade dos casais. Mas por que mais um russo traído deveria ser o mensageiro de um ódio à música que vem mais vocal que o de Platão? O filósofo convocou a sua perseguição como um assunto da república, pois hipnotizar pessoas indefesas e dominar a sua vontade é um desserviço à razão. A música inaugura um fluxo de tonalidades que infringe a razão, tira o julgamento da sensibilidade, prostrando o ouvindo sob o julgo de sensações que não são dele, que não têm presença em sua alma, que vêm de fora, como o honroso fantasma de invocações primais. Não é por acaso que as orações e preces sejam originalmente musicais. Pela música o ouvido, as mãos, os olhos, a boca e os pés, aprendem a imitar, e pela imitação sistemática chega à simulação de estados: se convence, se contradiz, se nega, afirma, acredita, em suma, pensa e sente, e sem o ter feito de fato, mas apenas por ter imitado, seguindo a cadeia do fluxo musical, como faria o corpo enquanto dança.  Basta uma digna distribuição de acentos e ênfases, declives e aclives sonoros, para criar o simulacro de uma verdade, para dispor da mesma força de um argumento, sem que de fato o conteúdo do argumento seja avaliado – é apenas a sua superfície tônica que seduz, arrasta, inclina. E por isso diz Tolstói: “a música obriga-me a esquecer-me de mim mesmo, da minha verdadeira condição, ela me transporta a outra, que não é minha: sobre o influxo da música, tenho a impressão de sentir o que, de fato, não sinto, de compreender o que, a bem dizer, não compreendo, de poder o que, na verdade, não posso”. Há o drama dos românticos, sentimentais e moralistas nessa abordagem. E, no entanto, ela poderia ser a mais correta e justa. A mesma compreensão, sem o drama do traído nem a severidade do filósofo, captura a particularidade da música em sua expressão mais elementar: sua potencialidade para incentivar imagens, invocar espíritos, ampliar a visão, em uma palavra, dilatar os poros intuitivos. Assim se corrobora o dito de que é a “janela da alma”. Porém, de fato, ela apela a nossa dimensão animal mais do que a qualquer outra, embora toque essa animalidade inspirada que pode desaguar em uma loucura inteligente, e que será sempre um empecilho à fidelidade das esposas, pois deixa a verdade e o certo nas mãos do que decide o alegre violeiro de traseiro loquaz – embora este não decida nada por si mesmo, sendo não mais que um serviçal dos tons.       

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