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quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O antídoto da filosofia

               O caráter dogmático, perseverante, radicalmente abismal e dramaticamente insolúvel das aporias filosóficas que vigem no mundo desde os gregos – e que talvez encontrem um ou outro análogo circunstancial nas doutrinas orientais como o budismo (e outras com as quais não sou familiar) – por mais que também a mim irritem profundamente, têm a seu favor pelo menos um indisputável fato: são as que mais afiadamente penetram a estrutura das questões e problemáticas. Matem-me também antes de me incomodar com a barba e as unhas ancestrais que não param de crescer no interior das tumbas dos grandes e milenares filósofos: Platão, Aristóteles, Kant, etc. E eu serei o último a mudar meu voto pela não exumação de seus cadáveres! Deixemo-los lá, aproveitando o sono da sesta irreversível. Mas, quando vejo como se debatem os professores e especialistas para entender sua própria época, repetindo fórmulas e sem a mínima compreensão de como administrar o envolvimento pessoal com os problemas, não tenho dúvida: ressuscitem os filósofos! Já é tempo.  Se possível, treinem novos filósofos, ou alguma espécie ligeiramente equivalente a eles adaptada aos novos tempos.
                Não prego aqui nenhuma anacrônica volta a questões muito cerimoniosas, como a do ser, de deus, da alma ou da liberdade. Refiro-me ao fato de que hoje a grande massa de acadêmicos e pretensos críticos não sabem senão repetir jargões desgastados, que já perderam há muito tempo qualquer vestígio de conexão com uma região da experiência. Já não afetam o homem, e este já não sofre por elas, não as compreende intimamente e não as integra à sua vida, de modo que não passam de passatempo de jornalistas e de acadêmicos ociosos.
           É normal culparem-se os bancos, o governo, ou o sistema econômico, pela atual crise. Mais de uma vez, no entanto, os analistas procuram definir melhor os fundamentos doutrinários que solidificam suas interpretações. Essa "descida aos primeiros princípios" não vêm com a carga de uma curiosidade metafísica, mas simplesmente o interesse, muito comum, em incrementar a credibilidade de suas teorias. Tenta-se achar, assim, o fundamento das leis econômicas e, como num círculo ao infinito, culpa-se então a psicologia de massa e, com diferenças na margem de atraso, chegam enfim à sociologia. Ou apelam para o conjunto misterioso de pressupostos – econômicos, psicológicos, metafísicos, etc – contidos na famigerada palavra “capitalismo”. E todos vão muito satisfeitos de terem entendido os mecanismos da inflação, enraizados em valores subentendidos na moral ou em erros institucionais, como o sistema bancário. Todos sabem tão firmemente a solução que o verdadeiro escândalo é, de fato, o problema nunca se dissolver. Já vi até mesmo dizerem que o problema é o papel-moeda, pedindo pela anulação dessa nefasta instituição: como se o problema do tempo, da historicidade da experiência, e todos os outros dos quais o dinheiro não é senão uma expressão circunstancial – na medida em que através dele administra-se justamente o atraso e o adiantamento das negociações humanas – pudessem magicamente sumir se alguém resolvesse voltar à instituição do ouro (ou à troca de mercadorias). 
                E a advertência que lanço aos últimos ingênuos, a lanço também aos preguiçosos intelectuais que usam o “capitalismo” como recurso metodológico ad hoc para explicar seja a regra, seja a anomalia. São posturas diferentes, mas a ingenuidade é a mesma, provém da mesma raiz. Naturalmente, não me refiro aqui ao gênio de K.Marx que, por bem ou por mal, pertence ao gênero dos filósofos aludidos no início desse post, e vinha de uma problematização radical e filosófica da economia – herdada de Hegel – que os economistas, sociólogos e historiadores de hoje não conseguem, malfadado esforço de cegos, sequer começar a visualizar. 
                  Nesta impossibilidade, comum aos mais dispersos setores acadêmicos – inclusive o departamento de filosofia – encontra-se a primeira fase da cadeia de obstáculos que precisa ser superada: a cegueira completa do cientista, do acadêmico e do pensador (mesmo o cronista e o boêmio) moderno a respeito da raiz filosófica subjacente a suas crises metodológicas. Enquanto a ciência carregar esse ar doce, esse sorriso infantil no rosto plácido, todos estarão sujeitos à opressão das teorias técnicas e suas soluções oportunistas e ocasionais, válidas até onde vai o paradigma. Mas a reconciliação da ciência com a problematização da metafísica, do alcance da razão, é justamente a reconvocação da problematização filosófica, e fico em dúvida se para isso temos saúde. Para isso dependemos de um novo filósofo, uma espécie de modesto messias. Permaneço em dúvida sobre se é possível treinar as próximas gerações para não serem estultos – como nós ficamos.

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