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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Sr Pablo Neruda e as reflexões que ele me inspira

Sr Pablo Neruda é outro grande escritor que me ajudou a sedimentar a confiança em uma das teses diletantes que acalento com mais carinho. Porque é uma tese, e porque digo que é minha, não se segue que é original. A presunção da originalidade é só uma expectativa serpentina, que serve para desanimar as ambições modestas. Dar o crédito a quem falou primeiro por um lado é impossível e, por outro, enganoso: isso acontece porque a ideia foge do autor e tem a peculiaridade de se expor ao acesso por meios intuitivos independentes da sensibilidade particular de um único homem. Lembremos que pirâmides foram construídas no Egito, mas também no México, embora seja difícil de acreditar que o paradigma cientifico de um único homem tenha ensinado e orientado os preceitos da edificação de ambas – a menos, obviamente, que algum genial ET tenha escrito uma geometria mais fundamental que a de Euclides e divulgado pelos quatro cantos da terra nas eras antigas.
Mas vamos à tese. A prosa (sim, não a poesia) de Pablo Neruda é um verdadeiro milagre da forma, que realmente eleva a literatura ao estatuto de beleza atingido pela pintura e a faz rivalizar com a própria música. Isso me leva a pensar que a linguagem é uma arte de imagens e que a estrutura primitiva das combinações simbólicas não obedecem a um padrão gramatical fixo e nem a um esqueleto lógico canônico. A tradução entre as línguas naturais não se dá pelo emparelhamento justaposto entre sintagmas, proposições, sentenças, etc. Se dá, quando se dá, pela possibilidade de, através de símbolos, lapidar as margens da paisagem intuitiva, selecionando regiões da experiência e dando a povos diferentes, diferentes visões. 
O que lamento é que os gramáticos já tentam (há muito tempo) subsumir essa maneira improvisada e livre de distribuir o peso e graduar a substância do visível, praticado por mestres como Neruda, a regras de sua ciência de velhos enrugados sem criatividade. Fazem então um inventário do que chamam de “imagens do estilo”, as metáforas, metonímias, eufemismos, hipérboles, etc. Assim as tratam como anomalias cobertas pelo seu complexo de regras, inofensivas se utilizadas nos limites da licença poética. Isso pode ser muito útil para cientistas da língua sem talento e nem emoção, porém, esconde a perspectiva do fato de que a essência mesma da língua está aí (e essas imagens não são, portanto, um conjunto de exceções usadas por boêmios ociosos e poetas): a sintaxe outra coisa não é que a distribuição de peso pela estrutura seletiva que administra a relevância significativa. O vem depois é semântica - mas os dicionários são um feto tardio, completamente dependente do pai sintático que lhe nutre, lapida e decide a forma. Esta predominância da sintaxe sobre a semântica está presente tanto nos hieróglifos que combinam imagens de homens com bicos de papagaio, até na linguagem do cinema, que seleciona os ângulos para marcar o passo da argumentação narrativa. E isso não é uma simples questão de imaginação gratuita; mas sim de estilo. O estilo disciplina a imaginação. 
Ora, de que outra maneira isso seria feito melhor do que pelo modo de Neruda e Guimarães Rosa? São os mestres do estilo os verdadeiros pais da cultura, os juízes das perspectivas e inclusive da ciência – que só surge depois, como um corolário da metafísica e sua respectiva tentativa de colonizar a linguagem ordinária, lhe roubando a riqueza e a ambigüidade enquanto a torna rígida e precisa até o limite do matemático. Porém, mesmo os cientistas se enroscam com suas ambigüidades periódicas, e novamente são os bruxos do estilo que vêm para lhes salvar.  
Essa é a tese que sustento, que não é lá muito original, mas não importa: pois embora me ocorra o nome de um ou dois autores que lhe dariam suporte, não sei até onde esse suporte seria integralmente tolerante como é o amor de mãe e prefiro, dessa forma, ficar com a responsabilidade do que digo toda para mim. Quanto ao mestre Neruda, que me inspirou essa postagem e reflexão, vai aí uma citação que mostra a voracidade de sua criatividade estilística e a abismal energia de suas imagens. É uma tradução para o português, mas a construção não perdeu muito. Trata-se de um prefácio a Juan Rejano, onde faz uma homenagem a este cujo teor eu, coitado, gostaria de imitar para fazer a ele:
“Quando se refizerem as medalhas destruídas pela noite pestilenta destes tempos, só malferida pelas marcas valorosas da batalha espanhola e da eslava, recolheremos entre lodo e cinzas as lágrimas desta poesia, sua cauda de cristais, de tal maneira que estaremos orgulhosos pensando como passou a gaivota deixando uma estrela de platina sobre o céu escuro da tempestade terrestre, e escarvaremos essa minuciosa moeda,  flagrância estrita e esplendor, como um documento de antigos heróis, de muita idade, de muita aflição, de muita primavera também: sonetos, canções, edificados na pedra fresca do tempo ensangüentado. (...) Esta poesia não começa: havia um expectante lugar em nosso idioma para a sua diamantina estrutura.”(Neruda, 2002. P. 27)
E não haveria um lugar expectante na cultura também para as ondas de tons subsistentes propagadas por Pablo Neruda?

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