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domingo, 4 de dezembro de 2011

Mais sobre a defesa de uma nova emancipação da filosofia (sobre os efeitos administrativos de um anti-naturalismo)

Existe uma economia geral dos sucessos do conhecimento: consiste na totalidade dos modos como ele valida a si mesmo ou administra recursos de validação, instituindo moedas fundamentais do comérico acadêmico, a saber, paradigmas fundados em instituições universitárias poderosas. Em algum ponto da história esse processo geral tinha pressupostos metafísicos mais nítidos; sua ligação com a religião, com os interesses do Estado, ou simplesmente a sua raíz linguística era mais transparente. A filosofia em todas as suas nuanes foi por muitos séculos a disciplina onde se discutia todas as formas dessa transparência, fosse fundando novas metafísicas, fosse discutindo ideias políticas ou os pressupostos epistemológicos e linguísticos subjacentes a um padrão paradigmático bem sucedido – hoje a Física, a Química, a Antropolgia, etc. Até pouco tempo atrás, a natureza geral da negociação entre a produção de conhecimento e seus instrumentos de validação faziam parte de uma mesma mistura, de modo que não se distinguia ciência da filosofia do mesmo modo como hoje se tornou trivial. Newton fazia um tratado de filosofia natural. O conteúdo das teorias era imiscuído com a semente da especulação filosófica, de modo tão inseparável, que seria difícil filtrar onde terminava um e onde começava o outro. Mas o tempo passou, os próprios filósofos começaram a desconfiar demais de si mesmos e reconhceram sem demora que toda aquele dejeto metafísico não passava de um reflexo objetivo das formas da experiência humana. O positivismo logo se aproveitou de tal constatação, pedindo sem reserva a emancipação completa das ciências. E mesmo agora que não se encontra mais positivistas pela rua ou pelos corredores, a ciência se acostumou tanto com o seu confortável lugar que não admite mais qualquer interferência externa à sua metodologia. Suas bancas e departamentos universitários são verdadeiras máfias a serviço de um paradigma, uma zona de conforto muitas vezes degradante. O naturalismo filosófico predominante nas últimas décadas é reservado o bastante para não defender teses positivistas, mas preserva e protege as suas conquista ao questionar o suposto poder de um método alternativo e alienígena que pretendesse dar regras primitivas – como categorias puras – para ler a experiência e interpretar a cultura, controlando de fora a economia inteira do comércio acadêmico do conhecimento. Isso seria quase como um socialismo! Um despeito, um ataque dos inimigos da sociedade livre. Abaixo à filosofia!  Assim são suas palavras de ordem: “nós cientistas fazemos nossa própria revisão. Não existe lógica, gramática, metafísica ou epistemologia, a não ser a epistemologia consorciada com a nossa própria metodologia. O essencialismo e a analiticidade são mitologias opressoras! Se precisarmos de apoio, temos tudo de que precisamos na própria ciência. Apelamos à teoria da evolução, à psicologia, à psicanálise, até à antropologia. Em último caso, tudo se explica pelas teorias mais gerais da Física, a mãe ciência. Não temos a explicação para tudo, mas não precisamos dela. Revisamos a nós mesmos”. E, no entanto, não vejo hora melhor para atacar esse funesto naturalismo, reivindicando contra ele uma tese administrativa. Não tenho propensão para revolucionário e provavelmente nunca irei me engajar em lutas. O que não me custa a despesa de pedir uma volta da filosofia em versão administrativa, uma plantação severa de instituições que zelem pelo interesse filosófico – regulada por pessoas saídas do curso de filosofia – em todas as camadas da academia. É natural que isso soe falso e um pouco pretensioso. Hoje, no entanto, não vejo nada mais ao qual pudesse aplicar minha energia e estou bastante disposto a me engajar nisso, pelo menos elaborando textos de blog - o que é um início.

sábado, 12 de novembro de 2011

A situação política do departamento de filosofia na universidade


Por filosofia não se entende mais o mesmo que na Grécia antiga, na Idade Média e nem mesmo no século XIX. É verdade que essa disciplina talvez seja hoje mais ou menos como um país sucateado ao qual permitem continuar com o nome, porém não tem mais exército e nem consciência de sua própria unidade. É uma peça de museu conservada por condescendência. Para não aprofundar o assunto, especulo que a perda de sua peça mais fundamental de artilharia foi a causa principal dessa tolerância condescendente com que é abordada nos departamentos da universidade. Que peça? A metafísica. Desde que Kant fez sua cirúrgica incisão nas asinhas dessa – a salvando, porém, do ataque de açougueiro de Hume, que queria comê-la no jantar – é impossível formular as suas questões sem um laivo de vergonha íntima. Quem irá aprofundar os interesses da razão até suas perguntas mais fundamentais, agora, especulando sobre deus, a liberdade, a alma, etc? Ninguém. A não ser os religiosos e seus derivados, que sempre tiveram a vantagem da falta de vergonha.
O projeto de Kant era tão prometedor, limpando o terreno rugoso e ilusório das pseudo-questões, encarregando a filosofia com novas maneiras de cuidar dos interesses da razão, uma função  talvez muito mais nobre como fiscalizadora “Crítica” dos fins da Cultura, que não se podia imaginar – pelo menos à época – que os positivistas o usariam de pretexto para reivindicar a autonomia vingativa das disciplinas científicas! – ciência entendida, agora, pela ênfase no seu caráter tecnológico (o que não é menos verdade nas ciências humanas). E isso, não se enganem, é uma questão apenas colateralmente filosófica. A manobra foi política. As repercussões dessa conquista ainda são sentidas hoje nas universidades: matemáticos, engenheiros, químicos, físicos, antropólogos, cientistas econômicos e sociais, historiadores e psicólogos, gritaram a sua independência e fazem dela o seu proveito político e administrativo - embora os benefícios intelectuais sejam bem mais suspeitos.
Porém, quando se pretende arquitetar, avaliar, julgar e criticar – assim como superar eventuais crises – os resultados cognitivos dessas disciplinas, os seus especialistas tentam sozinhos e a trote de cavalo, com grande estardalhaço de suas ferraduras, aprofundar a compreensão de suas perguntas e problemáticas. Procuram pontos cegos, investigam a história dos sucessos e fracassos, entram no debate da validade e projetam achar os pressupostos epistemológicos e semânticos de sua metodologia. Mas, quando fazem isso, estão justamente cuidando novamente dos fins últimos da razão. Será que estão fazendo infame "filosofia", ainda que como um barbeiro dançando balé? Mas isso é questão de nomenclatura. Chamem como quiser, a verdade é que existe e nunca deixou de existir – mesmo nas épocas de crise mais dramáticas – as perguntas que revelam um interesse da razão com seus próprios fins arquitetônicos mais típicos. Se elas são feitas através de metafísica vulgar, popular, ou através de epistemologia e uma compreensão da bases metodológicas, isso é outra questão. Eventualmente um grande gênio surge nas ciências tecnológicas, como alguns lógicos do nosso departamento saídos do curso de Engenharia, e o seu desembaraço técnico é tão grande porque a sua sensibilidade já ultrapassou desde o começo o paradigma particular de onde nasceu: o seu contato com a ciência já é sempre, também, filosófico, isto é, coincide com um envolvimento radical dos desafios da razão pura – da Cultura - que ele enfrenta. Ele nunca especula no vazio, como os matemáticos sem uma compreensão de número, os historiadores sem uma compreensão de história, os antropólogos com uma versão técnica de homem. Acaba, entretanto, mofando no departamento de Filosofia, embora sem prejuízo de sua celebridade, pois ninguém poderia prestar atenção a ele na engenharia – seu nicho original.
Apresento um quadro exagerado, propositalmente. Na realidade, há mais miscigenação de interesses e intersecção de negociações entre a filosofia e as ciências na universidade do que deixei parecer acima. Principalmente nas ciências humanas, estuda-se muita filosofia e os professores de ciências sociais e psicologia não ignoram essa necessidade. Muitas vezes, ainda assim, sinto como se essa condescendência não fosse uma homenagem, mas uma trapaça: é porque se equilibram em paradigmas imaturos e metodologicamente flexíveis que exploram uma aliança oportunista com a filosofia, de onde retiram apoio ad hoc sempre quando se sentem em perigo. Não é se de se esperar de trapaceiros como esses que, se um dia puderem consolidar seus paradigmas com tanto sucesso como os físicos, vão abandonar sem escrúpulos a sua muleta filosófica? Uma coisa que aprendi é que somente o próprio interessado deve cuidar dos interesses. O interesse da filosofia não será melhor considerado do que dentro do seu próprio departamento, por mais defeituoso, vaidoso, imaturo que seja. Não será preciso que, em uma resposta também política, o departamento de filosofia assuma suas responsabilidades e explore a dependência dos outros cursos com relação a ele? – pois é óbvio que essa dependência existe, mas por não ser explorada, ocasiona esse festival febril de besteiras intelectuais frequentes quando um químico, um historiador e um antropólogo se aventuram a criar e especular com mais ousadia sobre o próprio campo.
Ora, os cursos técnicos e científicos em geral mudam a sua abordagem quanto mais se tornam acadêmicos em sentido estrito, isto é, quanto mais escalam os compartimentos institucionais da academia, indo para o mestrado, o doutorado e a carreira universitária. Essa mudança de abordagem é proporcional a um gradual acréscimo de dependência e imaturidade, pois é deste momento da escada em diante que vão deixando o terreno seguro de seu paradigma e se expondo ao mundo da cultura e dos conflitos da razão em sua expressão selvagem. É natural: quanto mais o interesse técnico declina em favor de um interesse puramente cultural, mais inútil se torna tudo o que ele aprendeu. Nesse momento aparece claramente a dependência com a filosofia, que os filósofos de hoje – maus políticos, coitados – não exploram.

Naturalmente, para quem quer sair da universidade e correr para alguma empresa ganhar dinheiro de verdade, não precisa se preocupar com isso. Mas para quem almeja seguir a carreira intelectual, deveria – e muito  - considerar tal preocupação,  e se não o faz, é apenas por ausência de pressão de quem deveria lhes pressionar. O departamento de filosofia deveria de uma vez por todas assumir a sua responsabilidade na liderança da Universidade; e deveria meter o nariz com uma impertinência épica em todos os outros departamentos, plantando fiscalizadores que selecionassem com o rigor devido a ambição de ser “doutor”, ou philosophical doctor. Esse projeto levaria os filósofos a serem os legítimos chatos da universidade, a pedra no sapato monumental de todo cientista medíocre que almejasse ter um título gratuito de doutor no seu currículo. Não importa. Se a responsabilidade não for deles, será de quem? Não há outros mais interessado nem mais imbuídos com a responsabilidade de salvar a cultura do interesse mesquinho, seja do dinheiro, seja da simples vaidade gratuita de pseudo-intelectuais com sede de títulos.
A sociedade não precisa de tanta gente instituída na academia. Se quiser ser doutor filosófico (Phd), é preciso saber aprofundar filosoficamente as questões de sua própria disciplina, tratar com desembaraço suas questões, entender a raiz e se expor aos desafios mais elevados da Cultura. É preciso mais que isso: pagar tributo a quem pensou a nossa cultura de maneira mais radical: Platão, Aristóteles, Kant, Frege, etc. É preciso passar pelo crivo Crítico. Se não, há sempre uma opção: sair na graduação e render seu tributo à sociedade com seu trabalho. É tão digno quanto. Esse projeto parece inviável? Sim, mas apenas porque o departamento de filosofia tem uma tradição de docilidade e inofensibilidade marcante. Um conjunto de investidas, debates, meteção de nariz, nos levaria direto para uma posição estratégia na estrutura acadêmica, e não deixaria nenhum curso fora de nossa abrangência. Acuados, tentariam se defender apelando para recursos técnicos, e assim acusariam mais ainda suas fraquezas, mostrando que são tão competentes quanto pedreiros intelectuais, operários de ideias, como Quasimodo em Notre Dame: sabe tudo dentro de sua igreja, mas lá fora é como um tubarão em poça d´água. Pode parecer utopia, inviável do ponto de vista financeiro, mas eu penso que não: é mais fácil do que se pensa. Quem já viu a insegurança dos professores dos outros departamentos toda vez que um filósofo está presente na banca, sabe pelo cheiro de medo que a universidade não esqueceu essa dívida remota, e teme mais que tudo uma cobrança. É hora de cobrar. E não se trata de poder pelo poder: é questão de responsabilidade, dever; reassumir a posição que lhe convém como guardiã da cultura.


Apêndice

Agora uma questão técnica. A dependência entre as ciências e a filosofia parece ter uma estrutura simples, principalmente quando lemos teorias como a fenomenologia de Husserl e os projetos epistemológicos de Carnap. Mesmo as teses de Quine, que relativizam enormemente a força dessa dependência, clamando inclusive por uma naturalismo que enfraquece a influência da filosofia no pastoreamento das ciências, mesmo essas teses apresentam um quadro por assim dizer simples. Chamo-lhes de simples pois tratam a coisa teoricamente e não investigam a distribuição política das vozes envolvidas no diálogo moderno. É preciso entender que na universidade hoje há departamentos cujos alunos e professores que nunca estudaram  sequer uma página de metafísica e epistemologia que, não obstante, sofrem a influência invisível de pressupostos não científicos. Como não sabem o que esperar deles, os mais inteligentes arrumam um jeito de agregá-los à sua rede teórica como se fossem da mesma natureza que todo o resto. Não fazem a separação entre filosofia e ciência. Isso leva a pensar que, na prática, a estrutura da negociação entre ciência e filosofia é bem mais complexa do Husserl, Carnap ou Quine deixam transparecer. No fundo, mesmo sem terem uma ideia dessa negociação, a prática a agrega e a torna invisível. Ora, a minha questão é, portanto, prática e segue para a política. Os autores mencionados deixam justamente de estudar a influência que a omissão ou a ação política tem no desenrolar desse diálogo. Por isso a minha proposta nesse post não é teórica. Não venho aqui sustentar um anti-naturalismo, um anti-positivismo ou uma volta aos preceitos Críticos de Kant. Venho na verdade defender que existe um espaço de negociação político que simplesmente não está ocupado: o dos filósofos. Ora, não seria preciso plantar autoridades institucionais para justificar a voz essa parte da discussão que, por falta de imposição, está calada? Acredito que, embora se saiba obviamente que um país de terceiro mundo tem influência sobre o sucesso de um de primeiro mundo, essa interdependência se torna invisível e irrelevante se não se criam vozes políticas, entidades institucionais (a ONU, etc) que zelam por seus interesses. É o mesmo que acontece com a filosofia hoje na universidade. Por algum motivo o filósofo se resignou com seu lugar subalterno. Mas eu acredito que com um pouco de "meteção de nariz", estaríamos claramente no centro da azáfama e, até mesmo, no lugar de liderança da universidade. Obviamente a dependência das ciências com a filosofia é bastante fraca na graduação dos cursos; mas, como eu disse em cima: quanto mais sobem os cargos, mais essa dependência começa a ficar visível e, acredito, é nesses pontos que quem sai do departamento de filosofia deveria cravar suas unhas e assumir um pedaço da fatia de voz. Para quem acredita que estou sendo muito ambicioso: ora, isso é uma tese administrativa! Obviamente, gênios que não precisam de universidade, autodidatas de elite, esses não precisam se subordinar a medidas administrativas que servem justamente para distribuir o policiamento intelectual e garantir - para os não gênios - um padrão de aproveitamento intelectual. Ora, um autodidata genial incluiria maneiras de reproduzir o diálogo entre a filosofia e a ciência dentro de si mesmo. Já na academia, é preciso criar, impor e até lutar pelo lugar no diálogo. Nesse nível administrativo, meu projeto é tão viável como o que está em vigência hoje: a liberdade irrestrita de pseudo-cientistas e a omissão filosófica. Portanto, não sustento aqui uma tese epistemológica sobre as maneiras como um autodidata ideal acumularia conhecimento. Minha tese se aplica à estrutura administrativa da universidade e a alunos e professores que se utilizam das garantias e regras acadêmicas para otimizar a produção de conhecimento.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

“Quanto mais conheço os homens, mais estimo os animais.”


 “Quanto mais conheço os homens, mais estimo os animais.”. Esta não é uma frase de que me posso gabar, não me pertence. Mas seu revestimento e efeito perfumado levam a julgar que o seu autor, Alexandre Herculano, não a construiu para guardar com direitos autorais, mas para vê-la gravitando de boca em boca sem fiscalização. Deixando-lhe intacto o mérito como epigrama espirituoso, empresto aqui o poder sugestivo de sua sua imagem e ajudo a propagar o seu resíduo semântico, seu célebre "significado", acrescentando com modéstia a sutileza furtiva de uma versão da minha própria boca - mais o assentimento e apoio de minha própria sensibilidade.

 

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A discussão da racionalidade e os animais (não humanos)

Em um de seus polissêmicos ensaios dizia Sr. Michel de Montaigne, o aristocrata francês lendariamente encerrado em sua torre, que como nós, os animais não humanos são dotados de paixões, sentimentos de solidariedade e mesmo a capacidade de inferir. Entre um de seus exemplos, recitava o do célebre cachorro que, tendo de escolher um entre três caminhos para perseguir um criminoso, precisou cheirar apenas dois para decidir-se pela terceira – e não farejada – rota. O comportamento do cão ilustra o uso de uma forma de tirar conclusões de premissas. Imediatamente surge a ideia de que o bicho não está preso a representações parciais e contingentes do instinto, mas pode explorar padrões de generalidade, abstraindo o conteúdo da representação. Dessa ideia alguém poderia sugerir que desvalorizamos os cães. Mas Montaigne é um ensaísta cínico e por mais apreço aos animais que tivesse, suspeito que estava menos interessado em aumentar-lhes o valor que em humilhar a nossa vaidade de “animal racional”. Confesso uma inclinação a compartilhar com ele deste interesse. A lógica é superestimada: o modo como formalizamos um argumento não necessariamente corresponde a um padrão de economia imutável, um reino ideal de arquétipos. Há provavelmente sempre mais do que uma maneira de resolver o mesmo problema e ainda quando há uma mais econômica solução – a mais lógica – há outras maneiras de se formular o problema que a tornam um pouco menos fundamental. A nossa concepção egoísta de racionalidade provém dos quebra-cabeças que nos impomos e, é preciso dizer, o homem foi até hoje um mestre pelo menos em construir labirintos particulares capazes de limitar sua experiência a um padrão de formas fixas. Quem não sabe “ver” dessa maneira é tido como burro, ou irracional. Vão mais longe e dizem: lhe falta espírito, lhe falta deus. Mas o que é deus senão a invenção metafísica que expressa o crédito total de um tipo de experiência? Com essa ideia  o homem fecha o círculo de sua experiência e a glorifica finalmente como Cultura. Pode parecer difícil sair desse círculo e abri-lo a outras espécies. A própria natureza dos órgão vocais, a incapacidade de articulação linguística, parecem desafiar essa ambição. Isso não significa muito, entretanto, uma vez que a mera presença de um gato ou um cachorro dentro de uma casa automaticamente o investe com uma espécie - ainda que pouco pronunciada - de papel subjetivo; muitas vezes o papel dominador. Quem permanece voluntariamente surdo à voz dos animais no mundo, com ou sem verbo, logos, forma, não passa de um procrastinador, muitas vezes oportunista.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Sr Pablo Neruda e as reflexões que ele me inspira

Sr Pablo Neruda é outro grande escritor que me ajudou a sedimentar a confiança em uma das teses diletantes que acalento com mais carinho. Porque é uma tese, e porque digo que é minha, não se segue que é original. A presunção da originalidade é só uma expectativa serpentina, que serve para desanimar as ambições modestas. Dar o crédito a quem falou primeiro por um lado é impossível e, por outro, enganoso: isso acontece porque a ideia foge do autor e tem a peculiaridade de se expor ao acesso por meios intuitivos independentes da sensibilidade particular de um único homem. Lembremos que pirâmides foram construídas no Egito, mas também no México, embora seja difícil de acreditar que o paradigma cientifico de um único homem tenha ensinado e orientado os preceitos da edificação de ambas – a menos, obviamente, que algum genial ET tenha escrito uma geometria mais fundamental que a de Euclides e divulgado pelos quatro cantos da terra nas eras antigas.
Mas vamos à tese. A prosa (sim, não a poesia) de Pablo Neruda é um verdadeiro milagre da forma, que realmente eleva a literatura ao estatuto de beleza atingido pela pintura e a faz rivalizar com a própria música. Isso me leva a pensar que a linguagem é uma arte de imagens e que a estrutura primitiva das combinações simbólicas não obedecem a um padrão gramatical fixo e nem a um esqueleto lógico canônico. A tradução entre as línguas naturais não se dá pelo emparelhamento justaposto entre sintagmas, proposições, sentenças, etc. Se dá, quando se dá, pela possibilidade de, através de símbolos, lapidar as margens da paisagem intuitiva, selecionando regiões da experiência e dando a povos diferentes, diferentes visões. 
O que lamento é que os gramáticos já tentam (há muito tempo) subsumir essa maneira improvisada e livre de distribuir o peso e graduar a substância do visível, praticado por mestres como Neruda, a regras de sua ciência de velhos enrugados sem criatividade. Fazem então um inventário do que chamam de “imagens do estilo”, as metáforas, metonímias, eufemismos, hipérboles, etc. Assim as tratam como anomalias cobertas pelo seu complexo de regras, inofensivas se utilizadas nos limites da licença poética. Isso pode ser muito útil para cientistas da língua sem talento e nem emoção, porém, esconde a perspectiva do fato de que a essência mesma da língua está aí (e essas imagens não são, portanto, um conjunto de exceções usadas por boêmios ociosos e poetas): a sintaxe outra coisa não é que a distribuição de peso pela estrutura seletiva que administra a relevância significativa. O vem depois é semântica - mas os dicionários são um feto tardio, completamente dependente do pai sintático que lhe nutre, lapida e decide a forma. Esta predominância da sintaxe sobre a semântica está presente tanto nos hieróglifos que combinam imagens de homens com bicos de papagaio, até na linguagem do cinema, que seleciona os ângulos para marcar o passo da argumentação narrativa. E isso não é uma simples questão de imaginação gratuita; mas sim de estilo. O estilo disciplina a imaginação. 
Ora, de que outra maneira isso seria feito melhor do que pelo modo de Neruda e Guimarães Rosa? São os mestres do estilo os verdadeiros pais da cultura, os juízes das perspectivas e inclusive da ciência – que só surge depois, como um corolário da metafísica e sua respectiva tentativa de colonizar a linguagem ordinária, lhe roubando a riqueza e a ambigüidade enquanto a torna rígida e precisa até o limite do matemático. Porém, mesmo os cientistas se enroscam com suas ambigüidades periódicas, e novamente são os bruxos do estilo que vêm para lhes salvar.  
Essa é a tese que sustento, que não é lá muito original, mas não importa: pois embora me ocorra o nome de um ou dois autores que lhe dariam suporte, não sei até onde esse suporte seria integralmente tolerante como é o amor de mãe e prefiro, dessa forma, ficar com a responsabilidade do que digo toda para mim. Quanto ao mestre Neruda, que me inspirou essa postagem e reflexão, vai aí uma citação que mostra a voracidade de sua criatividade estilística e a abismal energia de suas imagens. É uma tradução para o português, mas a construção não perdeu muito. Trata-se de um prefácio a Juan Rejano, onde faz uma homenagem a este cujo teor eu, coitado, gostaria de imitar para fazer a ele:
“Quando se refizerem as medalhas destruídas pela noite pestilenta destes tempos, só malferida pelas marcas valorosas da batalha espanhola e da eslava, recolheremos entre lodo e cinzas as lágrimas desta poesia, sua cauda de cristais, de tal maneira que estaremos orgulhosos pensando como passou a gaivota deixando uma estrela de platina sobre o céu escuro da tempestade terrestre, e escarvaremos essa minuciosa moeda,  flagrância estrita e esplendor, como um documento de antigos heróis, de muita idade, de muita aflição, de muita primavera também: sonetos, canções, edificados na pedra fresca do tempo ensangüentado. (...) Esta poesia não começa: havia um expectante lugar em nosso idioma para a sua diamantina estrutura.”(Neruda, 2002. P. 27)
E não haveria um lugar expectante na cultura também para as ondas de tons subsistentes propagadas por Pablo Neruda?

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O antídoto da filosofia

               O caráter dogmático, perseverante, radicalmente abismal e dramaticamente insolúvel das aporias filosóficas que vigem no mundo desde os gregos – e que talvez encontrem um ou outro análogo circunstancial nas doutrinas orientais como o budismo (e outras com as quais não sou familiar) – por mais que também a mim irritem profundamente, têm a seu favor pelo menos um indisputável fato: são as que mais afiadamente penetram a estrutura das questões e problemáticas. Matem-me também antes de me incomodar com a barba e as unhas ancestrais que não param de crescer no interior das tumbas dos grandes e milenares filósofos: Platão, Aristóteles, Kant, etc. E eu serei o último a mudar meu voto pela não exumação de seus cadáveres! Deixemo-los lá, aproveitando o sono da sesta irreversível. Mas, quando vejo como se debatem os professores e especialistas para entender sua própria época, repetindo fórmulas e sem a mínima compreensão de como administrar o envolvimento pessoal com os problemas, não tenho dúvida: ressuscitem os filósofos! Já é tempo.  Se possível, treinem novos filósofos, ou alguma espécie ligeiramente equivalente a eles adaptada aos novos tempos.
                Não prego aqui nenhuma anacrônica volta a questões muito cerimoniosas, como a do ser, de deus, da alma ou da liberdade. Refiro-me ao fato de que hoje a grande massa de acadêmicos e pretensos críticos não sabem senão repetir jargões desgastados, que já perderam há muito tempo qualquer vestígio de conexão com uma região da experiência. Já não afetam o homem, e este já não sofre por elas, não as compreende intimamente e não as integra à sua vida, de modo que não passam de passatempo de jornalistas e de acadêmicos ociosos.
           É normal culparem-se os bancos, o governo, ou o sistema econômico, pela atual crise. Mais de uma vez, no entanto, os analistas procuram definir melhor os fundamentos doutrinários que solidificam suas interpretações. Essa "descida aos primeiros princípios" não vêm com a carga de uma curiosidade metafísica, mas simplesmente o interesse, muito comum, em incrementar a credibilidade de suas teorias. Tenta-se achar, assim, o fundamento das leis econômicas e, como num círculo ao infinito, culpa-se então a psicologia de massa e, com diferenças na margem de atraso, chegam enfim à sociologia. Ou apelam para o conjunto misterioso de pressupostos – econômicos, psicológicos, metafísicos, etc – contidos na famigerada palavra “capitalismo”. E todos vão muito satisfeitos de terem entendido os mecanismos da inflação, enraizados em valores subentendidos na moral ou em erros institucionais, como o sistema bancário. Todos sabem tão firmemente a solução que o verdadeiro escândalo é, de fato, o problema nunca se dissolver. Já vi até mesmo dizerem que o problema é o papel-moeda, pedindo pela anulação dessa nefasta instituição: como se o problema do tempo, da historicidade da experiência, e todos os outros dos quais o dinheiro não é senão uma expressão circunstancial – na medida em que através dele administra-se justamente o atraso e o adiantamento das negociações humanas – pudessem magicamente sumir se alguém resolvesse voltar à instituição do ouro (ou à troca de mercadorias). 
                E a advertência que lanço aos últimos ingênuos, a lanço também aos preguiçosos intelectuais que usam o “capitalismo” como recurso metodológico ad hoc para explicar seja a regra, seja a anomalia. São posturas diferentes, mas a ingenuidade é a mesma, provém da mesma raiz. Naturalmente, não me refiro aqui ao gênio de K.Marx que, por bem ou por mal, pertence ao gênero dos filósofos aludidos no início desse post, e vinha de uma problematização radical e filosófica da economia – herdada de Hegel – que os economistas, sociólogos e historiadores de hoje não conseguem, malfadado esforço de cegos, sequer começar a visualizar. 
                  Nesta impossibilidade, comum aos mais dispersos setores acadêmicos – inclusive o departamento de filosofia – encontra-se a primeira fase da cadeia de obstáculos que precisa ser superada: a cegueira completa do cientista, do acadêmico e do pensador (mesmo o cronista e o boêmio) moderno a respeito da raiz filosófica subjacente a suas crises metodológicas. Enquanto a ciência carregar esse ar doce, esse sorriso infantil no rosto plácido, todos estarão sujeitos à opressão das teorias técnicas e suas soluções oportunistas e ocasionais, válidas até onde vai o paradigma. Mas a reconciliação da ciência com a problematização da metafísica, do alcance da razão, é justamente a reconvocação da problematização filosófica, e fico em dúvida se para isso temos saúde. Para isso dependemos de um novo filósofo, uma espécie de modesto messias. Permaneço em dúvida sobre se é possível treinar as próximas gerações para não serem estultos – como nós ficamos.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O caso (nunca encerrado) do Naturalismo

Nós, homens, invariavelmente ficamos velhos e com a velhice, moderamos nossa opinião. Porém, nem sempre é saudável guardar cancerigenamente um juízo que anseia por sair radical e pesado, com a força incidente de uma pedrada. Há algumas vertentes teóricas vivas atualmente que chegam a gastar o fundo do bolso da minha paciência, principalmente porque guardam um ar pacífico e descansado, como se houvessem arrumado ingresso para alguma Shangri-la ficcional muito disputada. Na verdade, são versões novas do famigerado naturalismo. Ademais, porque são baseadas em desencaminhamentos de leituras, pecado que só os leigos têm a desculpa de cometer. A nova discussão da neurociência a respeito de problemas como o da “consciência” e do “espírito” é o exemplo disso. Arrumaram um jeito de reavivar essa discussão milenar, e com ar muito satisfeito de quem tem um ponto de observação privilegiado – proporcionado talvez pelos progressos da ciência – acreditam que podem por um golpe de tinta ou da tecla “enter” decidir e resolver esse que, mais que um problema, é um embaraço metafísico insolúvel. As críticas que poderia fazer a eles são muitas, mas, francamente, não acredito que eles mereçam a homenagem de uma discussão moderada e séria. Isso diminuiria a pedra de escândalo que eles representam. Basta lhes lembrar Tolstói, em uma citação que já usei para outros propósitos nesse mesmo blog: “Não há alma nem liberdade, porque a vida de um homem se traduz no movimento dos músculos e os movimentos destes estão submetidos às atividades dos nervos. Eis o que dizem, escrevem, imprimem sem suspeitar que há mil anos todas as religiões e todos os pensadores não só reconheceram  como nem sequer se lembraram de ter negado essa mesma lei da necessidade que com tanto zelo tratam de demonstrar agora por meio da fisiologia e da zoologia comparadas. (...)A pergunta de como se pode concordar a lei da necessidade[natural] com a lei da liberdade [cultura] não pode resolver-se através da filosofia nem da zoologia comparadas (...) Os naturalistas e seus adeptos que esperam resolver esse problema fazem-nos lembrar pedreiros a quem tivessem mandado rebocar um dos lados da parede de uma igreja e, aproveitando a ausência de contramestre, num excesso de zelo, rebocassem as janelas, as vigas, as imagens e as paredes (Tolstoi, Guerra e Paz, 2007, p.1466/67).” O tom do autor me agrada enormemente, pois não se humilha a um diálogo de igual para igual, e mantém a altura, tratando de ridicularizar e expor o que é ridículo. Eu, de minha parte, não almejo mobilizar uma campanha para que cientistas fossem estudar livros de metafísica, ou pelo menos sobre a história da epistemologia. Não, nem iria tão longe. Seria mais fácil apenas apontar para o fato de que, quando um neurocientista escreve um tratado reducionista e naturalista defendendo que “a cultura e a consciência não passam de secreções do cérebro”, esquece a obviedade de que essa mesma teoria científica – elaborada por uma lógica e uma metodologia – são produtos da consciência e da cultura e, portanto, seguindo sua mesma regra, são redutíveis a “secreções do cérebro”. Ora, fiel à mesma regra, o seu próprio livro e todos os seus artigos acadêmicos não são senão “secreções do cérebro”, e sua contribuição cultural e acadêmica é nula como a nutrição de um vegetal. Por que, então, o "pequeno gênio" se dá o trabalho de escrevê-las, pensá-las, examiná-las e avaliá-las? O fato de que ele a escreve conscientemente e com uma pretensão de verdade, com uma lógica e um valor metodológico, entra em direta contradição com sua própria tese. E vamos mais além: todas as leis neurológicas retiradas de princípios mais firmes de outras ciências mais abrangentes, como a Biologia, serão, por essa lógica profana, meras secreções do cérebro – sem valor teórico, lógico, metodológico, cultural.  Supondo que algum ousado realmente estivesse disposto a defender a teoria de que todas as teorias, inclusive as da Biologia, estão submetidas a leis naturais - por exemplo, as da evolução - ele deveria ser capaz de explicar como a própria teoria da evolução escapa a essa regra, ou expor a que nova regra natural a teoria da evolução se subordina, o que o levaria a uma regressão ao infinito. O naturalismo científico tem uma semente de estupidez, embora seus defensores não sejam estúpidos e nem vegetais, e a pior ramificação desta é a cegueira, a ausência de desconfiança geral desses cientistas a respeito da atitude filosófica que eles mesmos incorporam e pressupõem para investir crédito metodológico em seus paradigmas. Oscilam entre uma ingenuidade dogmática e um cinismo cético, mas escondem isso de si mesmos. E veja que aqui nesta crítica não incluo o brilhante (dessa vez sem ironia) Quine, que no seu naturalismo não é ignorante da discussão filosófica em que está inserido e nem descuidado quanto ao terreno dramaticamente lamacento da metafísica que está atravessando. Além disso, Quine escapa à redução ao absurdo pois é um holista, e fica alheio justamente de uma teoria natural - como substituta de uma epistemologia fundacionista - que tentasse explicar a natureza e o caráter de validade das outras ciências. Refiro-me a uma classe remanescente do positivismo, que ainda ganha nobels e tem prestígio acadêmico, embora sejam vítimas de um simples desencaminhamento teórico de calouros. Nesse assunto, por sinal, mesmo os religiosos estão mais avançados que os naturalistas e podem olhar os seus erros de cima, com pena e ironia. O que disse aqui, selecionando a neurociência como alvo, vale com o mesmo tom para o reducionismo psicológico, antropológico, e daí por diante.E agora algum malicioso poderia perguntar-me: "Lucas, você acredita mesmo que existe um mundo platônico onde as ideias competem, concorrem, se refutam e verificam, complementam e solidarizam, movimentando a cultura e a história? Acredita que existe em nós um órgão capaz de localizar as essências, o mito do 'olho do espírito', acessível àquele que vive a retidão moral e a pureza espiritual?" Ora, obviamente essa pergunta é para me pôr em embaraço. Não acredito em nada disso, mas sei que essas estão entre as questões insolúveis que fazem parte da inclinação inevitável da razão à metafísica. E sei que, a experiência dessa reincidente tentação a se colocar questões impassíveis de resolução, isso, sim, NÃO é uma secreção do cérebro. Nossos problemas existenciais definitivamente não aceitam o reducionismo: a "experiência" é e sempre será um mistério, mais fácil de ser elucidada pela literatura e a poesia que por um microscópio de laboratório.