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terça-feira, 17 de maio de 2011

Vai aí uma apresentação técnica da minha dissertação (já que ninguém foi à defesa). Não tem nada de muito atraente, mas assim como ser feio nunca foi motivo para alguém ficar em casa sábado à noite, também eu não tenho pretexto para não publicar minha apresentação num blog, por indiscreto que isso seja. Acredito que a modéstia é um luxo de quem já tem fama. Aos coitados como eu, não há vergonha alguma em fazer uma auto-publicidade. Arrogância seria pressupor que ninguém poderia fazer um uso, às vezes melhor do que eu mesmo, disso aqui; afinal, é o temível Kant, explicadinho em miúdos. Alguém pode fazer proveito. Depois, o blog é um bom jeito de guardar um registro on-line para mim mesmo. Assim, pois, aqui a tenho: a dissertação apresentada sob o título de “Kant e a nova abordagem da Filosofia” é basicamente uma apresentação do problema da Crítica da Razão Pura à luz da reconstrução do seu sentido histórico.

O problema da obra é permutável com o problema da metafísica (que significa o problema da razão pura) e o seu sentido histórico corresponde ao seu papel específico no final da linha conduzida pelos antecessores. Por isso, em grande parte, esta dissertação trata do modo como as questões da filosofia transcendental modificam e englobam as interrogaçõe de Descartes, Leibniz, Locke, Hume, entre outros. A rigor, o processo observado utiliza diversos instrumentos argumentativos. Kant em parte refuta o racionalismo e o empirismo, em parte aproveita de ambos seus melhores pontos, administrando sutilmente os elementos disponíveis a fim de construir uma visão nova de toda a problemática, conhecida por dialética, e expressão máxima das ilusões da razão pura que caracterizam a metafísica.

Essa versão do problema, por sua vez, acompanha uma abordagem nova da metafísica, e uma subseqüente mudança de atitude filosófica. Uma vez que a filosofia é a idéia de uma ciência que explora a relação de todos os conhecimentos com os fins essenciais da razão humana (A839/B868), podemos concluir que a idéia dessa ciência assumirá um valor diferente para cada maneira de considerar a razão humana e seus fins essenciais. Com efeito, o racionalismo e o empirismo têm diferentes visões dos limites e do alcance da razão humana. Por conseguinte, chegam a diferentes perspectivas de filosofia. Para o primeiro a filosofia é dogmática, isto é, compromete-se com a soberania incontestada da razão pura no envolvimento com seus fins essenciais. Para o segundo a filosofia é cética, isto é, não acredita no alcance incondicional da razão pura sem interferência dos sentidos.

Através da caracterização dogmática e cética Kant descobre um sentido filosófico correspondente ao modo como se admite o alcance da razão pura para condicionar o conhecimento. Desse modo, o centro da questão torna-se a respeito dos limites do conhecimento. E a questão chave usada por Kant para discuti-la é a questão sobre a possibilidade dos juízos sintéticos a priori, que dão conhecimentos pertencentes à classe da Física, da Matemática e da Metafísica – em oposição aos conhecimentos analíticos da Lógica e aos contingentes dos juízos sintéticos a posteriori. Para resumi-lo, a possibilidade dos juízos sintéticos a priori depende de uma doutrina sobre a forma da experiência, explorada por Kant em duas fases. Na Estética Transcendental e na Dedução das categorias puras. O seu nome é idealismo transcendental. O característico nesta doutrina, como argumentamos no trabalho, é a mudança de foco para a ideia de forma, em oposição a uma abordagem simplesmente material da questão do alcance do conhecimento. Esse deslocamento permite a Kant explorar uma nova dimensão da discussão, inacessível a seus antecessores: a dimensão transcendental do problema da razão pura.

A razão não é mais considerada dogmaticamente (como se alcançasse a matéria da coisa em si) e nem ceticamente (como se dependesse irremediavelmente da matéria contingente dos sentidos). A dimensão transcendental da razão pura descortina a perspectiva puramente formal da coisa em si, isto é, esta considerada unicamente como uma realidade transcendental, fonte de ilusões dialéticas – e incognoscíveis do ponto de vista empírico (que é o único relevante para a ciência). Assim a questão material da coisa em si é trocada pela questão formal a respeito das condições de possibilidade de alcançá-las. O idealismo transcendental não é senão a contraparte do realismo transcendental, e é compatível com um realismo empírico, que por sua vez é a contraparte de um idealismo empírico. Essa troca conclui o que chamamos de subsunção sistemática de problemáticas da modernidade e, segundo argumentamos, ela é um modo de radicalizar a problemática da metafísica – e da razão pura – até ela assumir um valor novo.

Parte central da dissertação aqui apresentada é pressupor um sentido histórico da questão cartesiana. Adotamos uma metodologia que considera a linha de Descartes, Leibniz, Locke e Hume, onde o último com seu ceticismo representa o passo mais próximo da radicalização completa do problema e por isso esse é o responsável por acordar Kant de seu sonho dogmático. O problema cético, no entanto, precisa também ser radicalizado até não parecer um simples problema empírico acerca do alcance psicológico do conhecimento, mas sim um problema mais amplo a respeito da tendência inevitável da razão pura a transcender seus limites. Semelhante golpe de visão global acaba por demarcar todo o horizonte dramático do contexto da metafísica. Tendo estendido dessa maneira os limites da problemática moderna, pressupomos que se chegaria a uma revolução copernicana da filosofia, uma abordagem crítica do problema da razão pura, e uma subseqüente atitude transcendental a respeito da metafísica.

Isso, no entanto, faz com que a metafísica se confunda parcialmente com as características transcendentais, e perca resquícios da sua carreira ontológica antiga, bem como a teológica. E assim, a idéia da filosofia como a ciência que administra a relação de todos os conhecimentos com os fins últimos da razão pura sofre um último condicionamento. Kant chamou de filosofia transcendental uma espécie de sucedânea da metafísica no sentido crítico de sua exploração da razão pura, e são as características dessa qualificação transcendental que nos interessará discutir no fim da dissertação. Assim, o nosso problema é uma reprodução do problema de Kant, interpretado como uma subsunção sistemática das questões modernas até devolvê-las um caráter radical, que explora uma nova vocação à metafísica, como Filosofia Transcendental.

Enquanto os dois primeiros capítulos são uma apresentação da linha de problemáticas que culmina no desafio cético de Hume, e finalmente é englobado por Kant em uma dedução transcendental dos conceitos puros, o terceiro e último trata de explorar essa nova caracterização da filosofia, decorrente da maneira transcendental de substituir a metafísica, e a maneira crítica de abordar a razão pura. O idealismo transcendental, como doutrina subjacente a essa nova abordagem da filosofia, tem um sentido epistemológico supostamente óbvio, uma vez que sacrifica a cognoscibilidade da coisa em si em favor de uma doutrina das condições empíricas do conhecimento. Porém, o que está por trás da cortina da experiência não é rigorosamente impenetrável: como vemos no ideal da razão pura, existe um sentido prático diretamente proveniente da realidade noumenica, que nos dá inclusive comandos morais e justifica a fé. Portanto, não é tão óbvio assim que a coisa em si seja um mero modo de consideração transcendental do objeto, que no nível de reflexão empírico tivesse realidade plena. Esse impasse reflete o embate entre Strawson e Allison. A nossa dissertação adotou a argumentação de Allison de que o idealismo transcendental de Kant não implica um psicologismo (fenomenalismo), mas rejeitou a sua interpretação meramente epistêmica, pois nela o peso da problemática da coisa em si é diminuído até não sobrar senão uma espécie de metodologia da ciência empírica.

O capítulo três – e último – tenta discutir o caráter do idealismo transcendental pelo seu valor para modificar a abordagem da metafísica e, consequentemente, a própria filosofia. Portanto, por um valor maior do que o de ser uma mera propedêutica da ciência. Discutimos a visão de Lebrun e Bonaccini, para quem a problemática da coisa em si guarda uma inevitável aporia, o que corresponde ao fato de que o problema da razão pura é uma dialética inevitável. Discutimos também a visão de Heidegger em A tese de Kant sobre o ser, onde é proposta a interessante tese de que a lógica transcendental e os postulados do pensamento empírico em geral são maneiras de explicar as modalidades do ser e, portanto, a doutrina transcendental é uma adaptação da ontologia para um conceito pós-científico da filosofia. Nossa interpretação, coincidindo com Bonaccini, Lebrun e Siemec, adota a posição de que a filosofia transcendental não é nem primariamente ontológica, nem primariamente epistemológica, mas, porém, a antiga problemática metafísica está presente no modo de pensar epistemológico transcendental, que não é, portanto, uma mera propedêutica da ciência.

Na última subseção discutimos a coincidência entre o caráter da filosofia transcendental e a sua vocação não natural, usando o apoio de Husserl em A idéia da Fenomenologia. E concluímos a dissertação com a ideia de que a solução kantiana do problema da metafísica envolve a o postulado de seu caráter não natural e essencialmente problemático, motivo pelo qual não goza do mesmo sucesso das ciências empíricas e a lógica. A nova abordagem da Filosofia derivada dessa caracterização da metafísica é essencialmente não dogmática e nem cética, porém, não é especialmente epistemológica ou ontológica, e nem pertence a uma região própria. O importante é ter em mente que Kant preserva a filosofia como filosofia primeira, pois o peso e o valor de seu questionamento não se pode reduzir a uma abordagem natural e a uma propedêutica da ciência.

É viável se perguntar se dessa maneira a própria história da filosofia não é a narração dos diferentes modos como a metafísica é colocada em questão durante as passagens de épocas e gerações. É compreensível que em uma época obcecada pelos resultados práticos da ciência experimental, esse questionamento tenha o caráter de uma procura por fundamentos seguros e objetivos para o conhecimento. A diferença entre uma fase ontológica, outra epistemológica e ainda outra lingüística seria fundamentada em um traço comum e mais geral que elas próprias: o modo como cada época se questiona a respeito das aporias, dilemas, antinomias e paralogismos inevitavelmente presos àquele que as pensa (para Kant, este seria o ser racional, e estas questões seriam justamente as da metafísica). Isso simplificaria a explicação do fato de que as discussões desde Platão quase sempre mudaram pouco, porém degradaria também nossa compreensão teórica da filosofia, a diminuindo a um gênero não acadêmico ou intelectual: algo como um conjunto teórico de questões que nascem não de uma leitura sistemática ou uma formação universitária, mas de um ato, uma atitude, ou uma perplexidade metafísica: “Metafísica enquanto filosofar, nosso agir próprio, humano” (HEIDEGGER, 2006, p. 5).

terça-feira, 10 de maio de 2011

Aos interessados na minha dissertação.

Como invocar a relevância atual de Kant? É certo que ao grosso numérico da humanidade não faria falta saber o que Kant falou, problematizou ou resolveu. Mas isso talvez diga mais respeito à natureza de sua sensibilidade do que ao valor daquilo a que são insensíveis. Se estivessem interessados em mapear com maior amplitude os seus próprios problemas, tornar-se-iam imediatamente passíveis. E isso significa: mapear os seus problemas domésticos, políticos, privados, públicos etc. Todos os problemas, pois sem exceção expressam algum nível do envolvimento que pedem à razão para a sua resolução. Naturalmente, as questões científicas parecem ser as mais imediatamente afetadas pelo desempenho e a competência da razão; mas, a rigor, nenhum problema simples ou complexo escapa à sua influência. Razão não é mais do que o tribunal último de todas as contendas. Como invocar, pois, a relevância atual de Kant? Se alguém que vai apresentar uma dissertação de mestrado sobre a obra mais importante desse filósofo serve para alguma coisa, deveria ser para isso. Ora, a doutrina de um filósofo só pode ser exposta fiel e academicamente ao se confiar na possibilidade de recriar a paisagem de seus enfrentamentos, os interesses e os personagens da disputa. Abdicamos, pois, à parte acadêmica e fiel, para sugerir uma paráfrase mais apelativa à narração: um paralelo com um palco atual, onde os personagens somos nós mesmos. Se abstrairmos, pois, o contexto histórico de Kant e avaliarmos os seus problemas tal como ainda hoje eles estão presentes, poderíamos traçar o esboço de um análogo campo de batalha dizendo: a crise da razão pura e a aporia da coisa em si (os dois problemas capitais da Crítica da Razão Pura) vivem na nossa obsessão, tão atual quanto nunca, a esgotar absolutamente a fundamentação que condiciona nosso conhecimento. O que é a raíz de uma ambição ao controle absoluto do mundo que nos circunscreve. Essa primeira obsessão dá lugar a nossa tendência a materializar toda abordagem metafísica em dogmas regionais das ciências naturais, que precisam da autoridade dogmática da razão pura para fundamentar suas certezas. Em seguida, gera uma reação cética a esses dogmas e às subsequentes crises de metodologia enfrentadas pelas ciências de tempos em tempos. Kant ensinou a abordar a metafísica sem uma filosofia dogmática e com isso, sem exposição aos ataques da filosofia cética. Dessa forma, inaugurou a possibilidade de uma filosofia que revelasse a “coisa em si” como um fetichismo atávico da razão pura, uma mania de conter as coisas em nossas mãos, disposicioná-la à nossa abordagem controlada, não fragmentada, reduzindo a natureza aos limites culturais da representação, ou seja, da experiência possível. A própria metafísica, em todas as suas expressões (religiosas, morais, etc) não passaria de quartel general ideológico a serviço desse fetichismo com a idéia de “coisa”. É devido a Kant que sabemos que essa “coisa” (ou "objeto") é apenas um dogma que traduz o conjunto de elementos estruturais usados pela subjetividade para reduzir a natureza à experiência humana. A credibilidade desses elementos, por sua vez, é demarcada por meios que Kant não discutiu, preferindo as instituir como faculdades do entendimento humano alcançáveis através de uma analítica do entendimento e uma dedução das categorias puras do conhecimento, no que ficou conhecido por vários nomes: idealismo transcendental, psicologia filosófica, fenomenologia pura, etc, todos nomes associados a uma tese comprometida com a existência de juízos sintéticos a priori. A nós, que não compramos essa parte do kantismo, é possível especular com sugestões óbvias como o fetichismo com a idéia de “coisa” se instaura: as instituições políticas, por exemplo, são formas de distribuir o crédito que estrutura as reivindicações de verdade no mundo da cultura, selecionando as experiências ricas e as pobres, as que a História agrega e as que ela rejeita. As “coisas” do mundo e as verdades científicas que nelas se fundamentam vão assim se formando estruturalmente pela história, que não é senão a narração dos Sujeitos cuja experiência colonizou espiritualmente as outras. Aqui, porém, já estamos um pouco mais longe de Kant, seguindo o caminho de Hegel, Marx e que foi retomado mais recentemente por pós-estruturalistas como Foucault, etc. Lembremos, pois, Kant como o centro irradiador de toda essa filosofia repetida aos quatro cantos por cientistas sociais, psicólogos, historiadores, etc. Espero ter conseguido assim invocar o valor da Crítica da Razão Pura aos olhos dos que a negligenciam e dos que tem mais o que fazer do que se embrenhar nela, pelo que não os culpo, embora nunca sejam mais do que dezessete gatos pingados que me assistem neste blog. E o fazem sem nenhuma obrigação, pelo que não deixo de ser-lhes grato. Aos amigos a quem eu nunca me dignei a falar dela, fiquem aqui com o seu esboço. Faço assim também um treino antecipado à defesa, que agora não pode mais atrasar. Chama-se “Kant e a nova abordagem da Filosofia”. Abraços, obrigado.


sexta-feira, 8 de abril de 2011

Notas sobre a suposta diferença de esferas entre Cultura e Autoridade


Sublinharei de saída os traços de uma importante diferença entre saber e autoridade: o primeiro é amparado em uma boa disposição das luzes, uma completa liberdade dos quadrantes dialéticos que participam do diálogo e da discussão que o gera, pois a sugestão de perspectivas, sejam para pior ou para melhor, só pode contribuir positivamente para o desenvolvimento das ciências e das artes (embora a primeira com uma metodologia mais rígida que a segunda). Já a autoridade não tem a mesma tolerância, pois seu objetivo não é outro senão o de preservar e proteger as regras. Mesmo quando uma mudança é proposta para melhor, na ordem política, ela é suspeita. Isto se dá porque a autoridade não julga sobre o valor do conteúdo da mudança, mas é um índice de rigor do próprio julgamento. Qualquer mudança de perspectiva é um desacato da autoridade. Tal desigualdade seria o fundamento de um suposto rompimento originário entre a academia - a escola - e a política. Há, no entanto, infiltrações entre estes dois setores, da cultura (saber) e da política (da autoridade): frequentemente o concurso das idéias é selecionado e filtrado pelo peso do interesse político. O que os intérpretes da História da cultura, do espírito, não podem ignorar – não sei quantos ainda ignoram, mas me expresso assim para dar valor de novidade ao texto – é que a dialética pretensamente neutra das idéias é na verdade subjacentemente orientada por uma dramaturgia de batalhas pelo direito à autoridade. Entenda-se como uma complexa guerra que está acontecendo a todo o momento por detrás da suposta discussão limpa e clara entre doutrinas, e que transforma a nossa noção simples de espírito em outra, menos teológica, mais política. Menos divina, mais prática e corrupta. A rigor, a interação entre poder e saber é extremamente mais complexa do que a suposta por filósofos de há muitos séculos, como Bacon, que ingenuamente achava que descobrir causas e formas da natureza daria um controle operatório que se traduziria em poder. Mal desconfiava as influências do poder sobre o próprio saber, e o palco dos conflitos de crédito subjetivo onde se desempenha a narração da cultura. Conheço de ouvir falar e leituras esparsas teorias novas e movimentos recentes – pós-estruturalismo – que valorizam e levam em conta essa forma de abordar o problema; e que discutem a força da idéia de assinatura, bem como a de autoridade, compreendidas como modificações estruturais da idéia de subjetividade; exploram a força destas idéias para levantar a importância das questões sobre os pressupostos morais, históricos, econômicos e antropológicos subjacentes à teoria do conhecimento e à filosofia (entendida como a suposta guardiã da cultura). No entanto, não estou apto a falar sobre elas e prefiro conservar-me apenas atento às ligações entre meus estudos e estes, antes de achar o momento oportuno de estudá-los concretamente.

quinta-feira, 7 de abril de 2011


Complementar à última reflexão, uma nova será acrescentada sobre os problemas óbvios envolvidos na distribuição da autoridade - em uma relação de discípulo e mestre – em questões de cultura e saber. Penso que, na instituição do dimensionamento da autoridade dentro da sala de aula, subentende-se que o que dá valor à opinião do aluno é o fato do professor aprová-las, não a sua fecundidade ou riqueza interpretativa. E como o professor frequentemente tem uma perspectiva fechada, um modo intuitivo particular de estabelecer a relevância das questões discutidas, a aula passa longe de uma exposição de temas, e se aproxima muito mais de uma divulgação de charadas pessoais, uma apresentação de conceitos distorcidos pela sua própria visão e uma exigência de que os alunos pensem através deles. Os "sem luz" (origem ltina da palavra 'aluno') são irrevogavelmente abandonados aos labirintos pessoais de um outro, muitas vezes mais desnecessariamente intrincados do que a questão propriamente dita, seja ela newtoniana ou darwiniana. Por isso alguns sádicos se divertem em emaranhar seus pupilos em problemas insolúveis, que traduzem sua maneira particular de abordá-lo, e que a todos os outros soam como ardilosas armadilhas; pegadinhas do Faustão. Como se não fosse o bastante, os próprios vestibulares adotam o mesmo procedimento, o oficializando. Não é uma surpresa escandalosa diagnosticá-lo como um desacato à própria instituição da inteligência, que só deveria justificar-se como andadeira provisória a uma faculdade de julgar ainda tateante, constituinte de uma fase imatura da inteligência presente nos alunos, uma fase de lusco-fusco, onde a necessidade de lanternas fosse preemente antes que o dependente possa enfim emergir em sua própria aurora. Talvez fosse desculpável também em uma época onde esta relação não fosse forçada, e o diálogo entre os dois elos desta corrente florescesse mutuamente, como era, ou parecia ser, entre os gregos. Porém não é isso que se passa nas instituições de ensino médio atuais: e na verdade apenas é pintado como uma desvantagem aos alunos que estes abdiquem um dia das muletas, recompensando quem sabe usar as mesmas do professor, e criando uma atmosfera de desencorajamento incoercível sobre o que tenta pensar sem a peça de maquinaria postiça dos artifícios.

terça-feira, 5 de abril de 2011


As discussões sobre os problemas escolares que estão hoje em moda levam em conta diversas perspectivas, porém poucas a encaram pelo seguinte horizonte: a problematização do próprio conceito de escola entendida como centro de massificação do conhecimento. Fala-se muito de fracasso escolar, por exemplo, mas nunca se contesta a idéia de sucesso superficial que lhe serve de contraste: o sucesso em assimilar conteúdo sem forma? Adquirir fórmulas sem a capacidade de aplicá-las através de um juízo? O sucesso prosaico do aluno vaidoso, geralmente de caráter análogo ao do professor, que “não se esforçam pela sabedoria, mas pelo crédito que ganham dando a impressão de possuí-la” (Schopenhauer). Sei: sabedoria, conhecimento, pensamento, juízo, são ideais muito ambiciosos, margeiam perigosamente ilusões da metafísica. Eu mesmo me pergunto se existem. Contudo, vale mais supor que existem e ambicioná-los do que cinicamente fingir-se em sua posse, sem estar. Nas escolas o troféu é destinado aos que melhor conseguem repetir tecnicamente a perspectiva do professor. Neste tipo de contexto, nunca se encara a perspectiva do aluno supostamente fracassado como se fosse ele o realmente desejável, o único que ainda valesse mais que um papagaio no cenário estudantil moderno. O único a quem o próprio temperamento blindou às recompensas ignóbeis que convidam à ignorância, e a quem mesmo a perspectiva de uma vida fracassada foi incapaz de dissuadi-lo da resistência heróica a participar desta indústria de técnicos. Como contraponto a esta abordagem predominante na pedagogia, diligente em assimilar os excluídos, entusiastas de um paralelo com as instituições democráticas, para quem o bem coincide com inclusão, e para quem os excluídos não passam de coitados a quem se deve piedade, como contraponto ofereço algumas leituras (as que eu conheço): a coleção de pauladas que Bacon aplicou à escolástica e à academia platônica, assim como a outras escolas antigas, que "apesar das demais disparidades, eram professorais e favoreciam as disputas, e suas doutrinas eram (como bem disse, não sem argúcia, Dionísio de Platão) palavras de velhos ociosos a jovens ignorantes" (Bacon, 1979). As mordidas de Montaigne à idéia de instituição escolar e os seus professores, tomando como ponto de partida os próprios sofistas. Schopenhauer no famoso “Sobre eruditos e a erudição” e Nietzsche em “Schopenhauer educador”.

Sobre a sutileza dos literatos



“...não é improvável que a literatura vá sempre render insights mais profundos para aquilo que se chama a pessoa humana plena do que qualquer outro método experimental pode esperar conseguir.”(Noam Chomsky)

E continua:

“Mas esses insights não provam nada, só nos revelam coisas que podemos entender intuitivamente tão logo as percebamos. É por isso que elas são frequentemente tão pungentes e tem tanto efeito sobre nós.”

Nunca tive dúvidas de que a característica que distingue um bom literato é, seja o que for, algo muito diferente daquelas de um espírito positivo e experimental. Lendo Kant um dia desses, tive a impressão de ter encontrado um adjetivo adequado para exprimir as qualidades desses mestres das imagens e das formas retóricas. Eles são “sutis!”, entendendo-se por sutileza a perfeição subjetiva do conhecimento. Segundo Kant, “Sutil é o conhecimento de uma coisa por alguém que nela descobre o que habitualmente se furta à atenção dos demais.” (Logik, AK55).

Não sei o quanto a sutileza é importante para o cientista, uma vez que esse se caracteriza justamente por ter seu objeto tão bem definido que nenhum aspecto suscetível apenas de percepção privada, ou de um apontamento habilidoso, sugestivo, tenha para ele qualquer importância. Soma-se a isso a certeza de que, do ponto de vista objetivo, opor arrazoados e sutilezas de fonte subjetiva pode levar a uma indesejável dialética, uma ilusão no coração da razão provocada por se tomar “fundamentos meramente subjetivos por objetivos e, por conseguinte, confunda-se a mera aparência da verdade com a própria verdade”(Logik, AK56). Não obstante, nada me furta a confiança de que as obras literárias sejam permeadas dessas sutilezas, e que elas são mesmo essenciais para a idéia que fazemos da literatura; de fato, uma obra literária “rude”, destituída de uma sutil delicadeza para penetrar na “alma” da história,só pode ser uma obra ruim, não mais que um recorte vulgar de muitas experiências combinadas grosseiramente. As verdadeiras obras literárias são fragmentos de destacamentos subjetivos operando sobra a situação real, construindo ilusões tão consistentes quanto poderia se imaginar dentro do escopo facultativo do hábil e malicioso gênio maligno de Descartes.

Mas, supondo que essa pergunta fosse importante, qual seria exatamente o talento do gênio cartesiano? É imitar, simular consistência e coerência ao ministrar elementos de percepção provenientes de uma sensibilidade apurada, como quem sabe ressaltar nas coisas seus traços mais marcantes para então repeti-los e reproduzi-los em sua própria obra, sua grande ilusão. E qual o estado que, combinando com o gênio maligno, o escritor compartilha? É a sutileza. E, afirmo, um análogo ao estado dionisíaco: “de modo que ele descarrega de uma vez por todas os seus meios de expressão e, ao mesmo tempo, põe para fora a força da simulação, da imitação, transfiguração, transformação, toda espécie de mímica e atuação.”(Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos). Aquele estado em que se torna sensível aos traços da realidade que à maioria passa mdespercebidos, aqueles mesmos traços que, disse acima, autorizam a construção imitativa de sua própria obra, só são experimentados em um estado dionisíaco. É impossível que um escritor, conjugando desse estado, não saiba ler cada insinuação maliciosa que a realidade lhe faz; é impensável que alguém como Allan Poe não fosse capaz de mimetizar e reagir à realidade, emprestando a ela toda a plenitude de seu estado embriagado. O literato “não ignora nenhum indício de afeto” (Nietzsche, mesma obra). Sua operação é flertar com a realidade, capturando os sinais que ela lhe passa, e demandando dessa ‘mulher’ uma resposta sensual – ele não se satisfaz com menos do que transformá-la, dilatá-la, para que daqui por diante ela nunca mais seja a mesma.

segunda-feira, 14 de março de 2011

A experiencia e o experimento

Costuma-se chamar de laboratório a um local equipado, uma sala, um complexo de salas, um prédio inteiro de recreação onde cientistas de áreas diversas reproduzem os critérios de experimentação pós-Galileu que ganharam prestígio e autoridade como reação – talvez muito prestimosa (dentro de uma perspectiva) – às especulações cegas e descabeçadas da escola anexada aos interesses da igreja medieval. Experimentação, diga-se com mais precisão: controlada. O laboratório garante o controle da experiência. Eu, por minha parte, fiado na liberdade de divulgar opiniões por um blog, me credito a dizer que o principal em um laboratório é controlar a experiência, e que o tamanho da sala, a qualidade técnica dos aparelhos, e mesmo a competência da equipe são laterais. Se alguém completamente aleatório costuma sair de sua cama e encarar o mundo conforme regras que reduzem a sua experiência a um conjunto elementar de dados, eu não hesitaria em declará-lo vivendo em um laboratório. Toda demarcação de um limite para a experiência, um limite espacial, um limite temporal, um limite de pressupostos, é um controle laboratorial, que permite selecionar o que é relevante a um paradigma. E o que é a crise da metodologia científica senão uma disputa sobre os limites da experiência? – e, por conseguinte, um torneio dissimulado para premiar o melhor laboratório. Ora, os pressupostos que movimentaram a ciência pós-Galileu, nesta fase das negociações, ficam ameaçados de serem trocados por outras ideologias. Digamos de outra maneira. Aquele espontâneo entusiasmo do início da modernidade, aquela confiança no futuro do conhecimento amparado nos colos da ciência, toda aquela convergência de sucessos orientados para o triunfo da verdade, torna-se: uma simples e pobre mitologia pragmática, dirigida pelos interesses econômicos. Espero manter afastado de mim qualquer familiaridade com a raça marxista, embora, por força daquela bonita justiça que se faz a um inimigo, não possa deixar de tributar-lhes o devido valor. De fato, como eles já nos avisaram, o controle da experiência já hoje não serve senão a propósitos econômicos. E isso para mim não tem a menor importância, e continuaria a não ter, se por outra conseqüência não houvesse algo de pior auspício: a domesticação da cultura aos limites de um aprendizado de laboratório.